Music

Skank

Oito perguntas sobre o presente e o futuro da banda mineira que se despede do público neste domingo após 32 anos de carreira

Samuel, Lelo, Henrique e Haroldo (da esq. à dir.)

Texto e entrevista por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Resta um. Apenas unzinho. Domingo próximo será o último dia. Às 19h do dia 26 de março de 2023, Samuel Rosa (guitarra, violão e vocais), Henrique Portugal (teclados, violão e vocais), Lelo Zaneti (baixo e vocais) e Haroldo Ferreti (bateria) sobem pela última vez ao palco juntos. Será o derradeiro show do Skank, após uma carreira contínua e muito bem-sucedida (tanto criativa quanto comercialmente) de 32 anos. Depois deste show, quem não viu in loco não terá mais tal chance. Daí só recorrendo a gravações em áudio e vídeo.

O local escolhido para o gran finale não poderia ser mais especial: o Mineirão, a maior arena a céu aberto de Belo Horizonte, a cidade que deu a banda ao mundo. O mesmo local que, no final do ano passado, assistiu lotado à emocionante retirada dos palcos de Milton Nascimento, outro ícone da música mineira. No caso do Skank, entretanto, há uma conexão a mais com o mundo do futebol. Além do grupo ser dividido meio e meio entre torcedores fanáticos dos dois maiores times de lá (Samuel e Henrique são Cruzeiro; Lelo e Haroldo, Atlético Mineiro), os integrantes passaram os primeiros anos da carreira vestindo camisas de muitos clubes nacionais em concertos, videoclipes e programas de televisão. Outra curiosidade: a primeira apresentação ao vivo do quarteto, em 5 de junho de 1991, contou com apenas 37 “testemunhas” comprando ingresso. Tudo devido ao fato de São Paulo e Bragantino estarem decidindo o Brasileirão naquela mesma noite.

show deste domingo no Mineirão colocará um ponto final na extensa turnê de despedida que já passou por diversas capitais e grandes cidades do país no último par de anos. Na verdade, o adeus estava programado para casar com a comemoração de trinta anos de existência da banda, em 2021. Contudo, a pandemia da covid-19 e a paralisação de quase dois anos na produção e realização de eventos culturais acabou provocando o adiamento da tour para os dois anos seguintes.

Mondo Bacana – que teve a sorte de acompanhar de perto a trajetória que rendeu treze discos (nove gravados em estúdio e mais quatro ao vivo) e seis DVDs – entrevistou o grupo nesta reta final. Henrique – que, assim como Samuel, participava do embrião que formou o Skank, um quarteto chamado Pouso Alto – respondeu a oito perguntas que pontuam não o passado, mas o presente e o futuro do Skank e seus membros. Afinal, é hora de se festejar um ciclo que termina e o próximo que estará se abrindo a cada um deles.

Março de 2023 foi o último mês de shows do Skank, depois de 32 anos de estrada. A cada dia que passa mais perto fica o fim. Como estão os corações e mentes dos quatro integrantes nestes dias derradeiros? Como está sendo encarar um encerramento de um ciclo tão grande?

Os shows têm sido uma verdadeira celebração. Estamos focados em nos divertir com nossos fãs e não sentimos essa melancolia de fim de um ciclo, porque foram anos muito gratificantes para nós quatro. Estamos vivendo as emoções, pedidos de música, particularidades de cada cidade. Temos a sensação de dever cumprido, por seguirmos juntos por tanto tempo e somos orgulhosos do legado que deixamos para os nossos fãs.

Muito se brinca que no Brasil as bandas de rock não costumam acabar oficialmente. Algumas dão um tempo, aproveitando para se reunir esporadicamente em turnês especiais pelo Brasil, outras se arrastam por um período, sendo postas em segundo plano diante de carreiras e projetos solo de seus integrantes. A pergunta que não quer calar: será mesmo o fim oficial do Skank ou, graças à amizade entre vocês, a porta estará ainda aberta para uma possível reunião no futuro?

Nós decidimos parar agora para que cada um possa ter tempo para se dedicar a projetos pessoais que a agenda intensa do Skank impedia. Mas a nossa música continua por todos os lados e de fácil acesso. O Skank sempre vai existir, independente de nós estarmos juntos tocando o Brasil. Enquanto todos ouvirem nossas músicas, estamos existindo.

Haverá algum produto especial extraído desta turnê de despedida? Algum filme, documentário, disco ao vivo?

Estamos registrando todos os shows e no Mineirão será feita uma bela produção para o encerramento deste ciclo.  O que faremos com estas imagens só será decidido depois da turnê.

Cada um de vocês quatro já definiu o que fará da vida após o fim do Skank? Vão continuar atuando no território da música? Alguma coisa já pode ser adiantada sobre a nova fase pós-Skank? No caso do Samuel, há alguma chance de rolar uma turnê a dois violões com o parceiro de composição Nando Reis (que acabou de fazer algo assim com a Pitty)?

Estamos focados ainda na turnê e nos organizado e programando nossos trabalhos solos. Alguns de nós já tem coisas paralelas à banda e vamos seguir trabalhando com outros amigos, com outros projetos. A gente entende que agora é o momento de cada um devolver para a música tudo o que ela nos deu durante todos esses anos.

Depois do sucesso e desfile de hits dos primeiros discos da banda, o Skank tomou uma decisão interessante: usar o dinheiro da gravadora que seria para gravar em bons estúdios na construção e realização de um estúdio próprio da banda. Se não me engano, ficava no terreno da casa do Haroldo. Este estúdio ainda existe e é utilizado? Agora, com a separação, será usado também para novos trabalhos e gravações musicais dos quatro integrantes?

Esse estúdio que você está se referindo era o Maquina.  Na verdade os donos eram eu, Haroldo e o Lelo. Mas já o vendemos há algum tempo.  A vida intensa na estrada com o Skank impossibilitava a gestão dele.  O Haroldo, viciado em estúdio, já montou outro só pra ele. Inclusive o Skank tem ensaiado neste local.

Nos dias de hoje, a música parece ter perdido a condição de finalidade e se transformado em apenas um meio. Tanto que festivais não vendem mais música há tempos, vendem experiências. Os mais jovens estão perdendo o costume de sair à noite para se comungar com outras pessoas desconhecidas ou conhecidas e ver uma banda tocar ao vivo em pequenos espaços. Nas plataformas digitais, a frieza do algoritmo substitui o aconchego do amigo ou irmão mais velho para apresentar aquilo que você ainda não conhece e deveria ouvir… Como é fazer música em tempos de streaming, quando um rápido clique no botão pode alterar e encurtar o tempo de audição de uma faixa, até em questão de segundos, e velocidade voraz para uma não tão paciente assim GenZ?

Depois de passar por tantas mudanças, continuo acreditando que o mais importante é que a música seja boa. As mudanças tecnológicas acabaram mudando a forma como as pessoas escutam música. É uma geração que tem pressa para assimilar informação e quando algo não agrada eles mudam para o próximo. Isso mudou também o jeito de compor e produzir canções.

Como o Skank vê o espaço para o segmento pop/rock dentro da música nacional de hoje? Pergunto isso o domínio arrasador do sertanejo que se refletiu por cerca da última década e meia parece estar se diluindo e sendo combatido, no gosto da GenZ, pela presença do funk e do pop mais dançante e com grooves (Anitta, Pabllo Vittar, Gloria Groove, Ludmilla). De alguma forma isso anima vocês para um futuro mais próximo de quando as gerações 1980 e 1990 do rock vieram com tudo no mercado fonográfico nacional?
O rock já teve um papel importante na sociedade que era questionar os valores sociais. Hoje em dia, este papel é do hip hop. O Brasil nunca foi um país forte no rock. Temos e tivemos alguns expoentes, mas sempre enxerguei um movimento pop/rock forte e poucas bandas de rock puro. Somos um país de misturas culturais, com uma grande força na parte rítmica.

Vocês são herdeiros e discípulos diretos do Clube da Esquina, grupo/disco que recentemente ganhou o primeiro lugar em uma votação de especialistas e imprensa (da qual eu tenho orgulho de ter participado, aliás) dos melhores álbuns de todos os tempos da música brasileira. Como avaliam este resultado? O tempo é mesmo o melhor curador para que se perceba a qualidade de uma obra musical? Ainda mais em tempos de música digital, que parece ter deixado igual a força de qualquer obra gravada em qualquer tempo e em qualquer geração…

A digitalização da música mudou a relação das pessoas com os artistas. Hoje em dia, as pessoas conhecem mais as canções do que dos artistas que as interpretam. Em compensação, acabou com a temporalidade das canções. Não existe mais o velho e o novo, todos estão iguais. Isto foi ótimo.  A nossa relação com o Clube da Esquina é natural, ainda mais no meu caso pois fui criado no bairro de Santa Tereza aqui em BH. Este é um álbum histórico para a música brasileira. Escutei do ator Matheus Nachtergaele que o mineiro se mistura pouco com outros artistas, só que é muito profundo na maioria das coisas que faz.  Pra mim este álbum é isto. Profundo e intenso.

Movies

Muribeca

Documentário registra a luta dos moradores um conjunto habitacional contra a condenação ao descaso e a demolição de suas memórias de vida

Texto por Frederico Di Lullo

Foto: Descoloniza Filmes/Divulgação

Já nos primeiros minutos de Muribeca (Brasil, 2023 – Descoloniza Filmes), documentário dirigido por Alcione Ferreira e Camilo Soares, entendemos a intensidade e o descaso com a população mais vulnerável. Seja pela citação ao poeta norte-americano T.S. Eliot (“Com tais fragmentos foi que escorei minhas ruínas”) ou pelas filmagens carnavalescas no final dos anos 1990 (que apresenta a felicidade do bloco de moradores), o filme se desenvolve em ritmo acima de tudo melancólico.

E ele carrega afeto, memórias e tristeza. Tudo isso contado pelos moradores da “cidade fantasma” do complexo habitacional Muribeca, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana de Recife. Com depoimentos dados por vários moradores do complexo, Muribeca permeia seu roteiro apresentando a histórias dos mesmos, intercalando com filmagens antigas que mostram o total declínio do local, propiciado pelo descaso público. 

O Conjunto Habitacional Muribeca foi construído em 1982 e contava com 69 blocos de apartamentos, totalizando 2240 unidades. No ano de 1995 foram verificados os primeiros problemas estruturais de diversos blocos e a deterioração foi rápida. Depois anos de disputas jurídicas, a Caixa Econômica Federal foi condenada em última instância a reconstruir os imóveis no mesmo local. Mas isto nunca aconteceu. Em 2019, a 5ª Vara de Justiça Federal autorizou a demolição completa do conjunto e o despejo de todos moradores que ainda moravam no local. Até hoje as organizações de moradores e de comerciantes locais continuam lutando para que a comunidade não desapareça para sempre. 

Entre os moradores que dão depoimentos estão o poeta Miró e o quadrinista Flavão, que também trabalhou como produtor local do documentário. Quando começaram o projeto, os diretores também assistiram a algumas audiências que a comunidade teve com o Ministério Público e conheceram outras personagens que estavam ali, lutando e tentando viver em meio a tanta confusão e insegurança jurídica – além das próprias pessoas que se aproximaram espontaneamente deles interessadas em participar do filme. As entrevistas foram feitas em 2018, e os diretores filmaram a comunidade algumas outras vezes – inclusive logo após o resultado da ordem judicial que autorizou a demolição de todos os blocos do conjunto habitacional.

Por tudo isso, assistir a Muribeca é imprescindível. Necessário se faz para não apenas manter ainda viva as memórias das pessoas que ali instalaram a sua vida. Mas também para sentir na alma aquilo que elas sentem: a dor e a agonia que rapidamente substituíram toda a felicidade do local.

Movies

Triângulo da Tristeza

Cineasta sueco volta a criticar acidamente a hipocrisia da sociedade, agora  com trama eat the rich que envolve o mundo da moda e um cruzeiro

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Diamond Films/Divulgação

O cinema do sueco Ruben Östlund é feito para desafiar o espectador. Sua intenção é clara: instigar e provocar reações nada açucaradas com suas sátiras ácidas, recheadas de criatividade. E esse jeitinho sueco de criticar a hipocrisia da sociedade vem lhe rendendo cada vez prestígio entre a classe, sobretudo perante seus colegas europeus. Com Triângulo da Tristeza (Triangle Of Sadness, EUA/Suécia/Reino Unido/Alemanha/França/Turquia/Dinamarca/Grécia/Suíça/México, 2022 – Diamond Films), Ruben repetiu o feito de The Square, de 2017 e levou mais uma vez a Palma de Ouro no Festival de Cannes, tornando-se o nono cineasta a ter duas palmas de ouro na história.

Sim, a exploração dos pobres pelos ricos, da situação oprimido versus opressor, pode ter se tornado um tema batido, só que o modo como Ruben escancara essa disparidade entre os superricos e a classe trabalhadora é, de fato, instigante e capaz de chocar aqueles mais acanhados. Afinal, o sueco coloca no mesmo barco (ou melhor, no mesmo cruzeiro) personagens estereotipados e um tanto caricatos, mas é eficiente ao subverter os papeis e modelos de comportamento, como ao travar o embate entre o magnata russo capitalista Dimitry (Zlatko Buric), dono de uma empresa de fertilizante, e o comandante do navio, bêbado e comunista, interpretado por Woody Harrelson. Os dois protagonizam um dos momentos mais hilários e geniais do cinema recente.

Em comparação a The Square, em Triângulo da Tristeza Ruben fez questão de usar PH beirando a zero. Sua qualidade “cítrica e crítica” já fica evidente nas peças de divulgação do filme. Na conta do Instagram, por exemplo, não escapam vômitos dourados de caviar. “Free botox for everyone” (botox grátis para todos, em português), estampa um cartaz. 

O botox, nesse caso, é para ser injetado sobretudo no chamado triângulo da tristeza, que leva esse nome por conta das marcas de expressão quando contraímos a testa, seja para chorar ou para estampar a insatisfação. Preste atenção, vá na frente do espelho e perceba a medida do seu triângulo. 

Essa explicação do que vem a ser o tal triângulo da tristeza surge logo no início do filme (que, aliás, conta com três atos bem marcados). No início, somos apresentados a uma série de modelos que participam de um teste para estampar uma campanha publicitária de uma loja de roupas. Um deles é Carl (Harris Dickson). Para vender para os ricos, a orientação é fazer cara blasé e acionar a região do triângulo. Para o público consumidor de artigos populares, o modelo deve abusar dos sorrisos radiantes. 

Carl namora a também modelo e influenciadora digital Yaya, interpretada pela atriz Charlbi Dean (que morreu, aos 32 anos, vítima de sepse, em agosto do ano passado, não tendo a felicidade em ver o filme indicado em três das categorias principais do Oscar: filme, direção e melhor roteiro original). 

Questões monetárias e de equidade social e de gênero já surgem como o fio condutor da narrativa no diálogo entre Carl e Yaya a respeito de quem deve pagar o jantar do casal. E o rapaz se sente ofendido porque sua namorada é quem ganha mais e, portanto, ela acha que deveria pagar. No segundo ato, os dois aparecem como convidados de um cruzeiro ao lado de ricaços, entre eles um casal de representantes da indústria bélica. Viciada em likes, Yaya não desgruda de seu celular. Carl lê Dostoievski na beira da piscina. 

Quando o naufrágio dá início ao terceiro ato, Ruben inverte o triângulo (ou melhor, a pirâmide social). O mais forte ali não é quem tem dinheiro, mas quem consegue ser mais forte e se impor. Neste momento, a personagem da filipina Dolly de Leon, de nome Abigail, vai mostrar quem manda na ilha – o que, certamente, deixaria Jean-Jacques Rousseau de boca aberta.

Aliás, foi o filósofo francês quem disse “quando o povo não tiver mais nada o que comer, ele comerá os ricos”. E assim o cinema vai abrindo cada vez mais espaço a uma espécie de subgnênero: o “eat the rich”, que surpreendeu o mundo com Parasita levando o Oscar alguns anos atrás. Ou seja, quando o barco afunda, a conta bancária não faz a mínima diferença.

Movies

Coração de Neon

Filme independente acerta ao fugir da Curitiba para turistas e levar às grandes telas a vida e as ruas periféricas do Boqueirão

Texto por Abonico Smith

Foto: IHC/Divulgação

Estreia nesta quinta-feira nos cinemas de Curitiba e outras capitais brasileiras mais uma produção feita por profissionais da área que são e vivem na capital paranaense. Coração de Neon (Brasil, 2023 – International House of Cinema), entretanto, corre o risco de ser o mais curitibano de todos os filmes que, recentemente, estão colocando a cidade no mapa nacional.

Misturando elementos de drama, comédia e ação, o filme foi rodado em 2019. Correu alguns festivais, ganhando inclusive prêmios em alguns destinados a produções iniciantes, e ganhou diversas matérias em televisões, sites e rádios locais a respeito do fato. A expectativa em torno de sua estreia chega ao fim no dia de hoje, quando muita gente da cidade – especialmente quem mora ou já morou no Boqueirão – pode se ver, enfim, representado na grande telas das salas de projeção.

Mondo Bacana dá oito motivos para você não perder a oportunidade de assistir à obra. Que não fala só de e para quem está na capital paranaense. Consegue transpassar a localização geográfica e contar uma história universal, mas sem abrir mão de pinceladas bem curitibanas. O que ainda é raro de se ver no cinema independente nacional.

Novo polo de cinema

Curitiba , claro ainda está distante do volume de produções de outras cidades brasileiras fora do eixo Rio-São Paulo, como Porto Alegre, Recife ou Brasília, claro. Mas já se começa a perceber uma movimentação mais frequente de produções feitas para cinema, streaming e internet por aqui. Realizadores como Aly Muritiba, Paulo Biscaia Filho, Gil Baroni, Ana Johann, Heloisa Passos, Willy e Werner Schumann volta e meia aparecem com alguma (boa) novidade. Muritiba, inclusive, chegou a quase disputar o Oscar por duas vezes. Agora é a vez do trabalho de estreia em longa-metragem de Lucas Estevan Soares chegar às salas de projeção. Para uma grande cidade que possui boas opçòes de graduação e pós em cinema, é fundamental que se crie um mercado constante de trabalho para profissionais da área

Faz-tudo

Lucas Estevan Soares é quase onipresente na ficha técnica de Coração de Neón. Ele não é apenas o diretor do filme. Assina também produção executiva, roteiro, montagem e trilha sonora, cantando e compondo várias das músicas feitas para esta produção. Não bastasse se virar feito o Multi-Homem dos Impossíveis do desenho animado de Hanna-Barbera, ele ainda é o protagonista da história. Rapaz de versatilidade e talentos distintos.

Cinema de guerrilha

Não foi só Lucas a função de coringa neste filme. Por trás das câmeras, houve um trabalho hercúleo de apenas doze pessoas envolvidas no set de filmagem, o que exigiu acúmulo de funções técnicas. Isso fez com que Lucas cunhasse para a obra o status de “cinema de guerrilha”. Orçamento baixo (R$ 1,6 milhão, segundo o autor), bem verdade, mas diante das condições econômicas do país nos últimos quatro anos (leia-se o período em que houve desgoverno em Brasília e um intencional corte de apoio às artes) foi feito o possível para conseguir a verba necessária para a produção e a pós-produção. Sem falar no fato de que nenhuma grana de captação de qualquer lei de incentivo foi usada aqui. Mas o que poderia se tornar um grande empecilho, na verdade, tornou-se trunfo para Coração de Neonbrilhar na tela imbuído num total espírito punk. Do it yourself no talo, concebido com o que se tinha na mão, muitas vezes recorrendo ao uso da criatividade para driblar a adversidade.

Muito além do olhar do turista

Qual é a imagem que a capital paranaense transmite a quem não vive nela? Curitiba é encarada além de suas fronteiras como uma cidade exemplar, que contrasta com muitas outras regiões e localidades do país. Certo? Não. Jardim Botânico, Ópera de Arame e outros pontos turísticos podem ser muito belos aos olhos de quem vem de fora e anda pelo ônibus verde double decker, mas a cidade não é só isso. Vai bem além e, por isso, mostra-se uma decisão acertadíssima de Soares mostrar o que está na periferia. Para começar, a história se passa toda no bairro do Boqueirão, onde tudo também foi filmado e de onde vieram as origens familiares de Lucas Estevan Soares – muito do que se vê vem de parte da história da própria vida dele. Neste long estão as casas simples de famílias de classe média da região, a torcida organizada e para lá de fanática pelo futebol amador, as furiosas brigas desses torcedores em estações-tubo e terminais de ônibus, as mensagens de amor transmitidas por chamativos carros coloridos, o garoto sonhador que gosta de rock e tem cabelos compridos, o pai empreendedor, a guria casada que leva uma pacata vida de dona de casa, o vendedor de algodão doce que caminha tranquilamente pela rua do bairro e ainda o carro dos sonhos (de comer, claro).

Trilha sonora

Se o filme fala sobre o Boqueirão, claro que não poderia faltar rap nele. E dos bons. O canto falado dos MCs não estampa somente a frente de algumas das camisetas mais bacanas do figurino utilizado por Dinho, o coadjuvante que ancora as ações do protagonista Fernando. Tem também duas faixas incluídas na trilha sonora que dão peso e um charme todo especial a momentos-chaves da trama. Uma delas vem embalada pelas vozes dos irmãos gêmeos PA & PH. A outra é trazida pela libertação feminina cantada em versos e rimas pela brasiliense Belladona. A cantora pode não ser de Curitiba, mas sua canção “Coração de Neon” não apenas se encaixou como uma luva na narrativa como também acabou dando nome ao filme. Ela inclusive veio ao Boqueirão para rodar o videoclipe para a música sob a direção de Soares (que também participa das imagens como ator e ainda empresta o carro carinhosamente chamado de Boquelove em várias cenas). Como já disse Karol Conká – que, por sinal, também veio do Boqueirão, é do gueto ao luxo, do luxo ao gueto.

Violência contra a mulher

Arte é entretenimento mas também pode cumprir uma função bem maior quando possível. Deve servir para questionar e transformar o mundo ao redor. Coração de Neon acerta em cheio ao incluir como cerne de sua trama um dos eventos infelizmente ainda muito corriqueiros na sociedade brasileira: a violência contra a mulher. A cada dia o noticiário da vida real conta a história de muitos feminicídios. Na ficção curitibana, o companheiro ultraviolento, armado e sem o mínimo de equilíbrio emocional no trato com outras pessoas (especialmente se forem do gênero feminino) está presente levando a tensão necessária para várias sequências mostradas em tela. Lógico que a trama gira ao redor de seus atos, que ainda são engrossados por um coro de machismo e misoginia que corrobora com a triste situação. 

Elenco com caras novas

Este não é apenas o filme de estreia de Lucas Estevan Soares. Quase todo o elenco também faz sua primeira participação cinematográfica. São atores vindos do palco curitibano, que sempre foi muito feliz em revelar grandes nomes para a dramaturgia nacional. Se na última década a cidade exportou para as produções de TV, cinema e teatro do eixo Rio-São Paulo, a renovação de bons nomes vem sendo feita para que uma nova geração de qualidade não deixe passar em branco a condição de celeiro que a capital paranaense sempre teve. Tanto que todo ano um grande festival movimenta intensamente os palcos daqui por duas semanas cheias. No caso de Coração de Neon, deve-se prestar atenção aos nomes de Ana de Ferro (que interpreta Andressa, a jovem agredida pelo companheiro com quem divide a casa), Wenry Bueno (o guarda noturno que rivaliza com o trio de personagens centrais da história) e Wawa Black (Dinho, o amigo de fé e irmão camarada de Fernando). Mesmo atuando em poucas cenas, Paulo Matos (Lau, o pai de Fernando e criador do carro que leva as mensagens de amor pelas ruas do Boqueirão) também se destaca.

Iconografia curitibana

Quando se fala em Curitiba é impossível não pensar no Oil Man visto só de sunga pelas ruas mesmo no frio extremo do inverno. Ou no super-herói Gralha. Ou então na capivara, bicho comum nas redondezas do Parque Barigui que se tornou o animal-símbolo da cidade. Agora esta galeria iconográfica ganhou mais um integrante: o antigo corcel azul customizado por Lau e Fernando, carinhosamente chamado por este último como Boquelove. Tanto que Lucas agora leva o automóvel para onde pode, sempre no intuito de chamar a atenção para o filme em eventos pela cidade.

Movies

Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania

Longa-metragem que leva aos cinemas o novo vilão da franquia MCU peca por insistir na saturada fórmula dos filmes da Marvel

Texto por Andrizy Bento

Foto: Marvel/Disney/Divulgação

O filme que abre a Fase Cinco da Marvel Studios é também o 31º a integrar a franquia MCU e o terceiro blockbuster estrelado pelo herói. Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania (Ant-Man and the wasp: Quantumania, EUA/Austrália/Canadá, 2023 – Marvel/Disney) já enfrentou críticas desde muito antes de seu lançamento, ainda no final de 2020, quando uma notícia caiu como uma bomba na comunidade nerd: a de que a atriz Emma Fuhrmann, que interpretou Cassie Lang, a filha de Scott Lang (Paul Rudd) em uma breve passagem de Vingadores: Ultimato seria substituída por Kathryn Newton, pegando a todos, inclusive a própria Emma, de surpresa. A substituição repentina e sem prévio aviso atiçou a fúria no Twitter. Com o filme chegando aos cinemas na primeira metade de fevereiro, nem dá para dizer que as críticas prematuras foram infundadas. A garota comum mas que conseguiu emocionar o público com segundos de tela em Ultimato se converteu em uma rebelde estilosa GenZ que segue os passos do pai em passagens pela polícia, apresentando toda uma nova personalidade. E é defendida por Newton com uma apatia de causar incômodo. Digamos que, se uma certa franquia de filmes baseada em uma série literária que narra o romance entre um vampiro e uma humana fosse produzida nos dias de hoje, Kathryn seria escalada para viver a mocinha, tamanha a inexpressividade da atriz.

No filme da Marvel, que explora especialmente o conceito de família e a relação entre pai e filha em um universo repleto de superpoderes e seres e acontecimentos extraordinários, Cassie Lang é a chave que impulsiona a narrativa, uma vez que a garota prodígio desenvolve uma tecnologia capaz de se comunicar com o Reino Quântico, onde Janet van Dyne, a Vespa original (Michelle Pfeiffer), ficou aprisionada por vários anos e de onde Scott Lang foi libertado acidentalmente por um rato em Ultimato.

Ao mostrar sua invenção para o pai, para a madrasta Hope “Vespa” van Dyne (Evangeline Lilly) e para os sogros de Scott, a quem ela agora chama carinhosamente de “avós”, Dr. Hank Pymm, o Formiga original (Michael Douglas) e Janet, Cassie encara a relutância desta última. Embora a misteriosa personagem tenha mantido em segredo o que viveu durante os anos em que esteve presa no Reino Quântico, escondendo a experiência até mesmo de seu marido e filha, ela está prestes a revelar algo que parece ter sido um episódio traumático quando todos são sugados repentinamente para dentro do próprio Reino Quântico. E é neste universo que se desenrola todo o filme. Enquanto Vespas e Formigas tentam escapar do Reino, se deparando com toda a sorte de perigos e criaturas bizarras, temos acesso, por meio de flashbacks, ao background da personagem Janet e descobrimos a razão pela qual ela não queria retornar àquele universo de jeito nenhum.

O longa ainda introduz nos cinemas os vilões Kang, o Conquistador (Jonathan Majors), e Modok (Corey Stoll). Kang já havia dado as caras na série original Loki, da plataforma Disney+, que também integra o MCU. Já no caso do grotesco Modok, trata-se de sua primeira aparição live action. A trama recicla um personagem de Homem-Formiga de 2015, o ex-pupilo de Hank, Darren Cross que se tornou vilão já naquele filme e agora mostra seu terrível destino como um ser aprimorado ciberneticamente e que possui uma enorme cabeça. Assim como em Pantera Negra: Wakanda Para Sempre, que apresenta ao público Talokan, o reino submarino onde vive Namor, Quantumania insere na já vasta mitologia do MCU novos cenários e novas nações, o que expande as possibilidades para o futuro da franquia além de respeitar o legado da mídia original do herói, os quadrinhos.

O grande porém é que o filme dirigido por Peyton Reed (o mesmo dos dois longas anteriores do Formiga) insiste na fórmula saturada da Marvel Studios e se apresenta como uma produção perfeita para a geração TikTok, imediatista, com ânsia de ação ininterrupta e clímax instantâneo e constante. Uma sucessão de rápidos eventos potencialmente grandiosos toma a tela, mas roteiro e direção não se preocupam e nem se esforçam muito em desenvolver uma história, o que torna o conjunto da obra quase esquecível. Lá pelo final do filme, nem lembramos que Bill Murray fez uma participação no longa. E quem se lembra da presença do veterano ator de Os Caça-FantasmasFeitiço do TempoEncontros e Desencontros e outras obras celebradas, pergunta-se apenas o que ele estava fazendo ali, pois seu personagem, Krylar, surge e sai de cena completamente deslocado. Também, pudera: nos quadrinhos, Krylar é pouco conhecido e nem mesmo pertence às histórias do Homem-Formiga.

O resultado é um longa com cara de episódio regular de uma série genérica da Marvel/Disney. A grande batalha final, por exemplo, é entediante, por mais que os investimentos em CGI tenham a pretensão de torná-la apoteótica. A narrativa não se serve dos efeitos especiais – muito pelo contrário, parece ter sido concebida apenas com o objetivo de empregá-los. Quanto à ação, não há senso de urgência, há piadinhas em excesso na vã tentativa de transformar este novo exemplar do Formiga em um filme divertido e familiar, com alto teor de fantasia e sci-fi, só que o longa não tem identidade. Não há nada que o destaque entre seus pares. Para completar, Modok é sempre desnecessário. O ponto positivo é o fato de a Marvel Studios estar, cada vez mais, explorando o conceito de multiverso, que é a tônica das fases quatro, cinco e seis do MCU, compondo, desse modo, a Saga do Multiverso.

Uma curiosidade é que em Quantumania podemos enxergar paralelos entre o MCU e Star Wars. Os seres bizarros apresentados neste filme remetem às criaturinhas esquisitas que vimos especialmente em O Retorno de Jedi. Toda a construção visual do Reino Quântico, de fato, lembra muito o pai dos blockbusters. O próprio Peyton Reed afirmou em entrevistas ser um grande fã do trabalho de George Lucas – portanto, as referências visuais não são à toa. Contudo, outra similaridade entre as obras não é assim tão empolgante: assim como Star Wars, o MCU vem sofrendo um desgaste contínuo e pecando pelo excesso.