Lembranças do dia em que o craque argentino disparou em campo e a trave me salvou de uma surra na arquibancada do Morumbi

Texto por Fábio Soares
Fotos de Juha Tamminen/Reprodução
Visto do balão da infância de sujeitos sub-50 como eu, o mundo maradoniano era mágico. Empezando no Mundial de 1986 no México, à atmosfera de sonho dos lances impossíveis nos certames italianos de 1987 a 1990, seu futebol tinha traços de Chaplin a mim. Real desenho animado bem ali, diante de meus olhos em finais inesperados. E que ótimo que era assim.
Quando sozinho e com uma só perna despachou o imundo time da CBF comandado por Lazaroni da Copa do Mundo de 1990, tive ali uma certeza: com o Palmeiras amargando a draga de uma fila sem fim (até então com 14 anos sem título!), seria eu Maradona FC “sea lo que sea”, por qualquer parte ou modalidade, em qualquer buraco em que ele fosse jogar.
Veio o ano de 1991 e com ele, sua longa suspensão por uso de cocaína. Em litígio com o Nápoli, transferiu-se para o Sevilla, da Espanha, em 1992. Na Andaluzia, reencontraria Carlos Bilardo, seu comandante no êxito mexicano seis anos antes. O início de temporada foi irregular, entretanto, com vários quilos a mais e turras contra a diretoria. Maradona estava em outro planeta, com a cabeça longe dali. Um planeta alucinógeno em que a euforia estava em voga. Euforia sintética que o perseguiria até sua morte. No início de 1993, ele teve uma ideia genial financeiramente falando: emprestaria sua imagem ao clube espanhol numa excursão à América do Sul. Em troca, todos os direitos televisivos dos embates seriam depositados em sua conta bancária. O Sevilla tinha escolha? Bem, religiosos (não o meu caso) dizem que não se pode dizer “não” para Deus, mesmo que este Deus seja o mais mundano de todos.
O início de 1993 trazia o São Paulo Futebol Clube como atual campeão mundial de clubes. Por ser amigo de longa data do capitão são-paulino Raí, coube a ambos a organização de um amistoso em março de 1993 no Morumbi, com o Sevilla entregando as faixas do título do mundo ao tricolor paulista. E foi aí que enlouqueceu um certo moleque, às vésperas de completar 17 anos e com a cútis castigada pela acne, soube da realização do jogo. Afinal, era a chance de ver seu super-herói in loco. Bem, o moleque era eu. E as espinhas em seu rosto também era comigo.
O dia do jogo teve como cenário um sábado carrancudo e nublado. Com ingresso de arquibancada na mão, infiltrei-me no meio da torcida inimiga com um só pensamento: não poderia me denunciar. Que ficasse quieto no meu canto e que vivo dali saísse. Arquibancada lotada, taça do mundial são-paulino desfilando pela pista de atletismo mas eu estava me lixando pra tudo isso. Só tinha olhos pra um elemento em meio àquela alegria alheia. E dane-se aquela alegria toda. Não era pra mim. Não era para isso que eu estava ali.
O jogo começou e Pintado, volante tricolor da época, não entrou no clima do amistoso. Inexato afirmar se foi ordem do técnico Telê Santana mas o cão de guarda não descolou de Maradona em momento algum. Aos 32 anos, visivelmente acima do peso e com clara dificuldade de se livrar da marcação, Diego até que tentou jogadas de efeito e lançamentos “jardeanos”. A falta de ritmo de jogo pesou. E as duas feijoadas que ele deve ter devorado no almoço daquele sábado nublado também.
Não demorou muito para o São Paulo abrir o placar com Raí após lançamento de Palhinha. Festa nas arquibancadas e a já esperada provocação ao astro pelo seu vício em drogas sintéticas. “Nasceu na Argentina, morou em Barcelona. Cheira cocaína, seu nome é Maradona”, entoava a massa tricolor num irritante falso moralismo.
Veio o segundo tempo e minha maior preocupação, a de me autodenunciar em território inimigo, certamente não aconteceria com a pífia atuação de Diego Armando. A cada vez que pegava na bola, vaias ensurdecedoras insistiam em ecoar por todo o Morumbi. “Otários! Cês tão diante de Deus!’ praguejava em pensamento aquele espinhudo moleque solitário. Até que, aos 22 minutos, o improvável aconteceu: numa das parcas vezes em que pisou na área adversária, Maradona recebeu a pelota de um ainda fedelho Simeone, usou a marcação como apoio e inapelavelmente girou de perna esquerda um pouco antes da marca penal. Seria o tão sonhado gol maradoniano assistido por mim “ao vivo”, o insano momento que eu aguardava desde junho de 1986. Armei o punho direito para gritar gol no mesmo átomo de segundo que a bola caprichosamente beijava a trave esquerda do goleiro Zetti, corria por trás de seu corpo e parava nos pés de Cafu. Se fosse cardíaco, teria um infarto ali mesmo. Se tivesse gritado “gol”, seria massacrado por uma onda de cascudos e catiripapos da hinchada ao meu redor. Com o coração disparado, pus-me a mirar Diego pelo restante da partida. Algo me dizia que não poderia arredar pé dali. Algo me dizia que seria a última vez.
Fim de jogo. Uma cortina de repórteres cercaria o astro maior daquela tarde. Do ponto de onde estava na arquibancada, pude ver o último ato de Maradona: driblar a imprensa para dar um abraço em Telê. Logo depois, rapidamente desceu as escadas rumo aos vestiários.
A primeira e última vez que vi Deus em ação chegava ao fim. Na volta pra casa, tentei processar o que havia visto. O maior de minha geração diante dos meus olhos por 90 minutos. Meu amigo imaginário. Aquele que para sempre seria um de nós.
A noite finalmente dava lugar àquele dia nublado e tinha que ser assim, num carrancudo cenário. Porque a verdadeira dramaticidade dos mais sinceros tangos jamais ornaria com dias de sol.
>> Diego Armando Maradona faleceu por volta do meio-dia de 25 de novembro de 2020, aos 60 anos de idade, em sua casa, em Buenos Aires. A autópsia revelou que o ex-jogador e ex-técnico da seleção argentina de futebol, que havia sido operado no cérebro, três semanas antes, sofreu uma parada cardíaca provocada por insuficiência respiratória e um edema agudo no pulmão.
>> Eis abaixo o mais ESPETACULAR documentário sobre Maradona que já vi! As legendas estão em inglês, mas o áudio está em espanhol. Dá pra entender bem e as imagens de arquivo são de chorar! O cara postou no YouTube há alguns dias e, como as regras da plataforma são rígidas, é bem capaz de derrubarem. Assista enquanto é tempo…