Documentário disseca a personalidade de um dos mais curiosos e controversos personagens da cultura pop do final do século 20

Texto por Fábio Soares
Foto: Netflix/Divulgação
Quem está na faixa dos 40 anos, como eu, lembra-se bem da invasão dos serviços 0900 no Brasil na reta final dos anos 1990. Eram quilométricos números telefônicos que ofereciam de tudo: sexo virtual, loterias, receitas culinárias, salas de bate-papo e, acima de tudo, previsões astrológicas. E na esteira desta demanda por good vibrations emanadas de call centers, uma figura destacava-se das demais. Um andrógino cujo visual emulava um misto de Clóvis Bornay e Hebe Camargo. Seu nome: Walter Mercado Salinas.
Nascido numa fazenda em Ponce, Porto Rico, em 1932, o pequeno Walter já apresentava distinto comportamento dos demais garotos de sua idade desde pequeno. Não se misturava ou andava a cavalo como os demais. Passava seus dias lendo muitos livros e aprendendo piano, sempre com o incentivo de sua mãe “Ser diferente era um dom, ser comum era a regra. Eu sabia que não era comum”, dizia sobre sua adolescência. Neste período ele descobriu duas de suas grandes paixões: o teatro e a dança. Sua beleza chamou a atenção da Univision, principal emissora portorriquenha, e não demorou muito para que o dândi se transformasse num astro das telenovelas locais.
Sua paixão pelo teatro, no entanto, perdurava. E foi em uma de suas idas a um programa de auditório local para a divulgação de uma peça que o milagre aconteceu: vestido com o figurino do espetáculo, Mercado foi incentivado a falar também de uma outra coisa bem diferente. “Walter, você leu as mãos de todos os integrantes da produção antes de ir ao ar. Fale um pouco sobre astrologia para nossos telespectadores”, disse o apresentador. Como uma metralhadora giratória e com largo e hipnotizante gestual, Mercado percorreu os doze signos do zodíaco falando sobre fé, força e, sobretudo, amor. O público, em casa, foi à loucura! Congestionou as linhas telefônicas da emissora e exigiu o retorno da exótica criatura já no dia seguinte. E o que começou como um quadro fixo de quinze minutos, transformou-se numa atração própria (e diária) com uma hora de duração, quebrando todos os índices de audiência na época.
Sua androginia foi fundamental para transformá-lo num exemplo para a comunidade gay local. Numa Porto Rico devastada por uma sociedade machista e homofóbica, Mercado era o super-herói queer. Com notável coragem, transitava entre a figura do amante latino e da bicha de meia-idade, jamais assumindo publicamente sua homossexualidade e dando um nó na cabeça de seus detratores. “Fazem piadas com minha imagem porque, no fundo, gostariam de ser iguais a mim”, bradava, dotado de fúria dissonante ao seu temperamento. Não se assumir foi o preço a se pagar para se obter a paz. Triste, porém, necessário.
Era a metade dos anos 1970 e a popularidade de Mercado na América Central explodia de maneira vertiginosa, seguindo intacta por toda a década de seguinte. A “mambembice” da TV portorriquenha, entretanto, parecia pouco para seu potencial midiático. Potencial este que chamou a atenção de um sujeito chamado Bill Bakula. Conquistando a confiança de Walter, Bakula levou-o ao mercado que interessava: os Estados Unidos. E não demorou para o astrólogo transformar-se num fenômeno pop junto à comunidade latina. O alcance de seu midiatismo parecia não ter limites: encontrou-se com Bill Clinton e concedeu consultas particulares a Ronald Reagan. Tornou-se celebridade também no Reino Unido e na Península Ibérica. E sua chegada ao Brasil justamente coincidiu com a onda 0900.
Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado (Mucho Mucho Amor: The Legend Of Walter Mercado, EUA, 2020 – Netflix), disponibilizado em julho diretamente em streaming, fornece ao público respostas para um par de fundamentais questionamentos: Walter Mercado realmente era o charlatão alardeado aos quatro ventos e virou motivo de piada em solo brasileiro no final dos anos 1990? Por que ele sumiu da mídia em 2006 e nunca mais retornou aos holofotes até pouco antes de sua morte, ocorrida em novembro de 2019?Durante cerca de uma hora e meia Ligue Djá desconstrói o mito, ao passo que a figura humana por trás do personagem se sobressai. Por baixo de toda sua exacerbada excentricidade, opulência, capas, joias e anéis, havia uma pessoa comum. Um religioso filho de Deus, um fã de Oscar Wilde que no fundo queria ser como Dorian Gray: “Meu retrato envelhecerá, mas não minha imagem”, costumava afirmar o emplasticado comunicador que permanentemente ansiava em emanar sua mensagem, eternamente finalizada com a frase “mucho, mucho amor” (slogan que no Brasil, graças ao serviço 0900 e ao carregado sotaque, transformou-se em português no imperativo “ligue djá”).