Representante sueco ao Oscar deste ano traz forte disputa de poder dentro de uma das mais prestigiosas universidades do Egito
Texto por Carolina Genez
Foto: Pandora Filmes/Dilvugação
Adam (Tawfeek Barhom), filho de pescador, recebe uma bolsa de estudos para uma das mais prestigiosas universidades da cidade do Cairo, Al-Azhar, o epicentro do poder do islamismo sunita. Porém, ainda com pouco tempo dentro da instituição de ensino, o Grande Imã – a maior autoridade religiosa no Egito – acaba falecendo. Assim começa a disputa de quem irá ocupar o cargo, à qual Adam acaba sendo levado.
Segundo o diretor e roteirista Tarik Saleh, que nasceu na Suécia e tem raízes paternas egípcias, a ideia para Garoto dos Céus (Walad Min Al Janna, Suécia/França/Finlândia/Dinamarca, 2022 – Pandora Filmes) nasceu quando ele releu o livro O Nome da Rosa, de Umberto Eco, e começou a pensar sobre como seria essa história em um contexto mulçumano. Apesar de ter pensado no filme sobre a obra de Eco, as histórias são bem diferentes.
A trama envolve justamente por conseguir trazer uma história recheada de suspense e mistério – o longa inclusive foi um dos destaques da premiação de Cannes de 2022 onde acabou levando a estatueta de melhor roteiro. Além disso, a obra consegue trazer bastante da cultura árabe para o espectador, como as tradições, regras, política, religião e o cotidiano da universidade. A relação entre a política e religião, inclusive, é mostrada de maneira explícita, evidenciando não só sua importância dentro da universidade, mas no país como um todo, impactando todas as vidas, até daqueles que nem tinham tanta conexão assim, como o próprio protagonista. Saleh ainda consegue ser mais abrangente e tocar em assuntos como o extremismo, a manipulação, a fé e o próprio destino.
Apesar de possuir todos esses detalhes, muito pode acabar se passando despercebido aos brasileiros, não só por falta de contextualização sobre aquela cultura e conhecimento do público, mas também pelo grande número de informações disparadas em duas horas de duração (o que provoca confusão em diversos momentos). A narrativa é interessante, mas pela falta de tempo para a quantidade de informações, boa parte acaba pouco desenvolvida e aproveitada. Mesmo com este percalço, entretanto, o filme consegue se sustentar e entregar uma história com diversas reviravoltas.
Um fator que auxilia muito na conexão do brasileiro com o longa é a sua ambientação, já que o filme se passa em um contexto atual. Além disso, a obra transporta quem está no cinema para dentro da realidade dos personagens, onde paredes têm ouvidos e o perigo é sempre iminente. Por conta da sensação de alerta, Garoto dos Céus também consegue imprimir ótimo ritmo, deixando o espectador na ponta da cadeira e se preparando para o que pode acontecer.
No decorrer do filme, acompanhamos a visão de Adam, descobrindo tudo juntamente com o personagem. Ele não só é arrastado para dentro do jogo de poder, como também passa por um período de amadurecimento e crescimento. Na primeira metade, o jovem tem pouco desenvolvimento e falta de personalidade. Na segunda, porém, Adam muda e estabelece conexões com o espectador.
Garoto dos Céus é o representante sueco para uma vaga para o Oscar de filme internacional (o longa ficou entre os finalistas para as cinco indicações, que saem no próimo dia 24). Envolta em um mistério muito interessante, a história vale a pena ser assistido pela narrativa envolvente e também por conseguir trazer muito sobre a cultura árabe. Mesmo que de forma atropelada.
Quinze anos depois britânicos retornam ao palco da Pedreira Paulo Leminski como uma das maiores bandas de rock do mundo
Texto e foto por Abonico Smith
Antes de entrar na resenha propriamente dita, vai aqui uma proposta de uma ligeira brincadeira que envolve imaginação, projeção e percepção sobre a vida. Pense em como você era e onde estava quinze anos atrás. Agora pense em você daqui a quinze anos, lá no ano de 2037. Muita diferença em relação ao você de hoje?
Pois bem, ver o Arctic Monkeys tocando na Pedreira Paulo Leminski no último dia 8 de novembro provocou este exercício de memória. Quando o quarteto inglês subiu ao palco da mais bela arena a céu aberto do sul do país esta não era a estreia em tal espaço. Alex Turner e seus fieis escudeiros já haviam tocado ali em novembro de 2017, com uma das atrações da etapa curitibana do falecido Tim Festival. Assim como nos dias de hoje um sideshow de um grande festival nacional.
Três dias antes eles haviam sido headliners do primeiro dia da primeira edição do Primavera Sound São Paulo. Um cenário diferente daquele primeira vinda à capital paranaense. Agora os Monkeys são uma das mais importantes bandas de rock do mundo. Uma década e meia atrás, com dois badalados e já grandiosos álbuns na carreira, eram a grande aposta da música britânica naquela época. As letras de Turner, bastante incensadas pela imprensa musical. Quatro garotos de vinte e poucos anos com um indie rock avassalador, pungente e urgente como um quase hardcore. Com o acréscimo de uma habilidade lírica pouco vista para moleques daquela idade. Tanto que, apesar de ainda estarem em início de carreira, já ocupavam na grade do line up daquele dia em Curitiba um espaço mais importante que a veterana Björk, por exemplo (a mesma que, por sinal, tocou horas antes dos ingleses no mesmo Primavera Sound SP).
Portanto, os astros que hoje se aproximam da quarta década da idade estão, se comparados com aqueles mesmos de uma década e meia atrás um tanto mais seguros do que são no momento e do lugar que ocupam dentro do mundo musical. Alex Turner tem presença de palco monstruosa, já um tanto liberto da obrigação de sempre tocar sua guitarra, transforma-se naquele rockstar marrento, exalando propositalmente sensualidade, para fazer os hormônios das teenagers e pós-adolescentes da plateia passarem do ponto de ebulição, gerando na plateia da Pedreira gritos constantes, típicos de uma juventude feminina diante de um ídolo do rock desde os tempos de Elvis Presley e dos Beatles.
No palco, Turner não só corresponde como também provoca e excita. Bastante. No figurino retrô, nas poses um tanto quanto teatrais, no jeito de se comportar no palco e se portar por trás do microfone. Parece muito concentrado em representar essa figura, o que suscita também um certo desconforto em quem quer de um show algo maior do que um mero jogo sexual entre ídolo e fã.
Musicalmente, Arctic Monkeys é sinônimo de uma grande banda. Primeiro pelo fato do quarteto nunca se prender a uma zona de conforto. Depois de alcançado o estrelato de forma até precoce, não se pode acusá-lo de comodismo. A cada novo disco, uma tentativa de se reinventar e trilhar por novos caminhos. Até chegar ao novíssimo álbum, disponibilizado nas lojas e plataformas de streaming na semana anterior da vinda da banda ao Brasil. Sétimo álbum em vinte anos de carreira, The Car é uma bela proposta de se chegar à excelência de um pop refinado, com pitadas de falsetes, grooves e orquestrações, na melhor tradição sixtie britânica. Uma evolução do predecessor, Tranquility Base Hotel + Casino, e direcionamento bem diferente dos outros anteriores, que flertavam com o stoner, o psicodélico, o hard rock e até mesmo o heavy metal.
O que faz chegar ao ponto exato para se costurar um repertório fantástico passeando por todos os sete álbuns da carreira e criando um belo mosaico do que são esses vinte anos de trajetória. Na Pedreira foram 21 canções distribuídas de forma nada desigual. Forma cinco dos dois primeiros álbuns, da série de arranjos quase como um rolo compressor hardcore com os instrumentos atuando juntos e sem dar muito tempo para a respiração ao acompanhar os vocais urgentes de Turner. Outras cinco da etapa seguinte, quando a banda embarcou nas viagens quase solitárias do deserto californiano para gravar mais dois discos com uma psicodelia que nunca seria encontrada no velho continente europeu. Mais cinco só de AM, o disco divisor de águas da carreira, aquele capaz de fornecer sucessos avassaladores, daqueles de fazer qualquer arena cantar em uníssono e entrar em transe enquanto isso. Aliás, este é aquele disco que diz muito sobre o set list de uma banda. Afinal, normal é deixar, hoje em dia, hits lá do início da trajetória, mas é impossível subir ao palco sem tocar clássicos como “Arabella” (com direito a final emulando o riff contagiante de “War Pigs”, do Black Sabbath), “R U Mine?” ou “Do I Wanna Know?”. Do período mais recente, requintado e luxuoso, seis canções foram pinçadas para completar a noite: os dois singles doTranquility Base Hotel + Casino mais pérolas complexas que ainda estão para ser digeridas pelo público (ainda mais quando executadas ao vivo, com o apoio de mais três músicos recrutados para a turnê) como “Sculpture Of Anything Goes”, “Body Paint”, “There’d Be A Mirrorball” e a faixa-título.
Nessa noite quem foi ver os britânicos ainda foi brindado com a oportunidade de ter uma grande banda como atração de abertura. Quem tocou também foi o Interpol, formação de carreira já tão longeva quanto os Monkeys e com o mesmo número de álbuns na discografia. Coube ao trio americano (que vira quinteto ao vivo) dar o pontapé inicial da noite com um repertório calibrado de 13 peças. Três delas retiradas do mais novo álbum (The Other Side of Make-Believe, lançado no meio deste ano) e oito dos incensados dois primeiros discos (entre estas, “Untitled”, “Evil”, “C’Mere”, “PDA” e “Slow Hands”). Tocando sabiamente numa dimensão espacial mais reduzida de palco (os músicos todos lá na frente, bem próximos uns dos outros, como se fosse em um clube indie do Brooklyn nova-iorquino, de onde a banda saiu para conquistar o planeta) e com uma atmosfera soturna proporcionada pela combinação de muita fumaça e predominantes luzes azuis e vermelhas, nem parecia que os guitarristas Paul Banks e Daniel Kessler mais o baterista Sam Fogarino encaravam uma Pedreira Paulo Leminski numa noite muito fria de primavera.
O Interpol mandou ver um puta show de abertura, digno de qualquer outra noite em local fechado e de capacidade bem menor. O que enaltece ainda mais a grandiosidade do Arctic Monkeys nos dias de hoje. Muito provavelmente algo que Alex Turner, Jamie Cook (guitarra), Matt Helders (bateria e backings) e Nick O’Malley (baixo e backings) não poderiam sequer imaginar há quinze anos.
Set List Arctic Monkeys: “Sculptures Of Anything Goes”, “Brainstorm”, “Snap Out Of It”, “Crying Lightning”, “Don’t Sit Down ‘Cause I’ve Moved Your Chair”, “Why’d You Only Call Me When You’re High?”, “Body Paint”, “Four Out Of Five”, “Arabella”, “Potion Approaching”, “The Car”, “Cornerstone”, “Do I Wanna Know?”, “Tranquility Base Hotel + Casino”, “Pretty Visitors”, “Do Me a Favour”, “From The Ritz To The Rubble” e “505”. Bis: There’d Better Be a Mirrorball”, “I Bet You Look Good On The Dancefloor” e “R U Mine?”.
Set list Interpol: “Untitled”, “Toni”, “Evil”, “Fables”, “C’mere”, “Narc”, “Passenger”, “The Rover”, “Rest My Chemistry”, “Obstacle 1”, “The New”, “PDA” e “Slow Hands”.
Novo filme fala sobre o luto pelo protagonista mas peca ao se estender em personagens demais e tramas paralelas subdesenvolvidas
Texto por Andrizy Bento
Foto: Marvel/Disney/Divulgação
“Só as pessoas mais feridas podem ser grandes líderes”
Sequência do grande sucesso de público e crítica Pantera Negra, de 2018, este Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever, EUA, 2022 – Marvel/Disney) deveria ser um um filme sobre Shuri, uma produção que se dedicasse a mostrar o crescimento da personagem interpretada pela atriz Letitia Wright, que se obriga a amadurecer após inúmeras perdas. Toda a tragédia em seu entorno daria consistência à jornada da heroína e seria enredo suficiente para um longa, tendo como mola-mestra o luto pela morte do irmão, o rei T’challa (Chadwick Boseman). Uma base lúgubre, triste, mas funcional e eficiente para situar a heroína no panteão de super-heróis que é o MCU (Universo Cinematográfico da Marvel). Porém, é Hollywood e Wakanda Para Sempre faz parte de uma safra de produtos que ultrapassou o nicho ao qual era destinada no passado. Não apenas os fãs de quadrinhos de super-heróis consomem esses filmes hoje em dia. Já há um tempo eles abrangem o público em geral.
Portanto, é necessário fanservice para agradar aos marvetes, introduzindo tudo o que for possível da mitologia dos quadrinhos; contextualizar esse fanservice para atingir os espectadores que não conhecem a base original; e, considerando que a Marvel Studios optou por não escalar um substituto para Boseman (falecido em 2020, vítima de um câncer de cólon) seja por carinho ao saudoso ator ou por preferir não despertar a fúria dos ardorosos fãs, em uma demonstração solene de respeito, compor uma obra cuja essência é o luto pelo rei T’Challa e um tributo a Boseman. Toda a história de sucessão protagonizada por Shuri tem esse sabor agridoce de despedida ao intérprete de Pantera Negra, além de ser intercalada por diversas tramas paralelas. O resultado é um longa sem unidade, que aponta para vários lados. É difícil dar coesão a todos os núcleos narrativos. O diretor Ryan Coogler não parece se esforçar muito para alcançar tal objetivo, contentando-se com épicas cenas de ação e profusas sequências de pesar pela perda de T’Challa. É grandioso na embalagem, porém razoável no conteúdo.
O que fez Pantera Negra se destacar dentre os longas da franquia MCU nos cinemas, levando-o até mesmo a concorrer ao Oscar de melhor filme, era o equilíbrio do conjunto. Coogler apostou em uma lenda fascinante, com cenas de ação certeiras e uma crítica ao imperialismo americano. Em sua essência, a produção de 2018 era feliz e bem-sucedida ao construir nas telas uma mitologia convincente, envolvendo cerimônias ritualísticas e fortes representações culturais que fundamentam Wakanda sem dispensar as boas e velhas lutas coreografadas, explosões e perseguições que fazem a festa dos fãs de blockbusters e ainda trazia uma base política sólida ao discutir racismo e colonialismo. Wakanda Para Sempre apresenta todos esses elementos, mas de maneira desorganizada e totalmente over.
A homenagem a Chadwick Boseman tem início nos créditos de abertura, continua na bela sequência inicial que representa a cerimônia fúnebre e se estende por toda a história. Após a morte de T’Challa, a rainha Ramonda (Angela Bassett) faz o possível para proteger sua nação de poderosos líderes estrangeiros que buscam se apossar do vibranium (metal fictício encontrado em abundância em Wakanda, que possui a capacidade de absorver todas as vibrações em sua proximidade, bem como a energia cinética direcionada a ela e faz com que a terra natal do Pantera Negra seja rica e poderosa), ao mesmo tempo em que tem de lidar com o luto pela perda do filho e tentar uma conexão com a filha, Shuri, que parece ter se fechado em um casulo após a morte do irmão.
Nesse ínterim, entidades do governo descobrem que Wakanda não é o único lugar a possuir vibranium, identificando-o também no fundo do oceano por meio de um detector construído especificamente para rastrear o elemento. A matéria é proveniente do reino submarino governado por Namor (Tenoch Huerta), um mutante com poderes extraordinários derivados de sua herança genética incomum, com fisiologia anfíbia, força sobre-humana, supervelocidade e pés alados que garantem a ele a capacidade de voar. Ao tomar conhecimento do detector de vibranium, Namor entra em contato com Wakanda a fim de solicitar apoio para que capturem a cientista responsável pela invenção. Riri Williams (Dominique Thorne) é uma jovem universitária que não faz ideia que é o principal alvo dessa caçada. Em meio a tudo isso, Shuri precisa encontrar seu lugar entre as lideranças de Wakanda, digladiando com o próprio rancor e sentimento de vingança que a consome.
O elenco numeroso e as diversas tramas paralelas centradas em diferentes personagens tornam os já eloquentes 161 minutos de Wakanda Para Sempre insuficientes para trabalhar tanto material. Por isso mesmo, várias discussões interessantes acabam exploradas de maneira superficial, alcançando um nível muito raso de debate. É o caso, por exemplo, da tão alardeada (ao menos nos materiais de divulgação!) liderança feminina, que ganha pouca substância. Outros temas trabalhados com pouca profundidade neste exemplar afrofuturista da Marvel são justamente a questão racial e o imperialismo americano. Há muita coisa acontecendo na tela e, ainda assim, o roteiro peca ao não se aprofundar em nenhuma delas: a tentativa de focar em Shuri, as introduções de Namor e Riri Williams e o plot envolvendo o agente Everett Ross (Martin Freeman). Todas essas tramas socadas em um único longa tornam o enredo desequilibrado.
Entendo que Wakanda Para Sempre ocupa uma posição difícil na franquia dos Vingadores. O longa tinha a ingrata função de “substituir” o herói de forma nobre, sem ferir seu legado. Mas toda essa construção aliada à introdução de duas personagens importantes transforma o longa em um bolo de noiva e é justamente o desenvolvimento de Shuri que acaba ofuscado. É até irônico, pois, mesmo sem querer, a personagem já acenava para essa possibilidade desde o ritual de desafio no primeiro longa. A pedra angular deste longa-metragem deveria ser a preparação do terreno para que, aos poucos, Shuri ganhasse protagonismo.
Há um momento em que a princesa pergunta a Namor o porquê de estar lhe contando tudo isso. E eu não resisti e respondi mentalmente: porque filmes hollywoodianos têm a mania de serem expositivos demais e contar origens por meio de flashbacks manjados. A insistência da indústria em subestimar a inteligência do público se baseia na crença de que o espectador não vai ser capaz de acompanhar uma história na tela se tudo não for devidamente explicado.
Se já não bastasse o excesso de tramas que incham o longa, a montagem vacila em diversos momentos, especialmente ao mostrar os desdobramentos de lutas tão definitivas, intercalando ambas e tirando o impacto do desfecho das duas. Como tradição dos filmes do estúdio, este não foge à regra de apresentar embates corporais repletos de cortes secos e abruptos. O design de produção continua primoroso e as cenas pirotécnicas que se desenrolam tanto em terra firme como no mar são empolgantes, embora o longa peque pela falta de contrastes, especialmente nas cenas que se passam no reino de Namor, Talokan. A trilha sonora é composta de vários temas interessantes, mas o conjunto da obra é deveras saturado. Há todo um cuidado em retratar a cultura dos wakandanos, explorando seus costumes e a mitologia dos povos que ocupam aquele território. O mesmo não acontece com os talokans. Mas nem vou reclamar nesse quesito, porque, além da certeza de que Namor regressará, isso só tornaria a produção ainda mais longa e modorrenta. Por falar nisso, a guerra entre as duas nações é maniqueísta e bidimensional, abusando de um artifício muito raso para deflagrar o conflito.
O filme que encerra a fase mais criticada do MCU também é um reflexo da mesma, composta de filmes muito apoteóticos em suas intenções, mas inchados ou apáticos em seus resultados. Wakanda Para Sempre é emocional em diversas passagens, especialmente ao rememorar T’Challa. É conceitual, ao abordar o luto cinematograficamente, mostrando como cada figura do elenco lida com a morte do personagem, do ator e do amigo. Mas não é funcional, não possui um fim, um objetivo. Um demérito irreparável quando nos referimos a obras cinematográficas. Eis um tributo a Chadwick Boseman que não faz a devida justiça a seu homenageado.
Contos de suspense e terror teenager na Califórnia dos anos 1990 chegam à Netflix com carga dramática e esmero estético para fisgar os adultos
Texto por Taís Zago
Foto: Netflix/Divulgação
Os dez episódios da primeira temporada de The Midnight Club (EUA, 2022 – Netflix) são baseados nos contos de suspense e terror adolescente do autor Christopher Pike e em seu livro homônimo publicado em 1994. O showrunner e produtor Mike Flanagan, conhecido por sucessos netflixianos como The Haunting of Hill House (2018), The Haunting of Bly Manor (2020) e Midnight Mass (2021), mergulhou fundo no universo de Pike para, agora, presentear-nos com uma pequena surpresa neste halloween. Aliás, Christopher também participa como produtor executivo
Na Califórnia dos anos 1990 a jovem Ilonka (Iman Benson) acaba de fazer 18 anos. Seu “presente de aniversário” foi uma diagnose de câncer terminal de tireoide. Com isso, a moça ambiciosa vê todos seus sonhos de um futuro brilhante se desmancharem em frente a seus olhos. A única questão para ela se torna o tempo que ainda terá para viver. Sem perder completamente a fé na remissão da doença, ela descobre em pesquisas online (naquela internet discada pré-Wikipedia) a enigmática clínica para jovens com doenças terminais de Brightcliffe e acaba optando por uma internação ao invés de passar seus últimos meses em casa com seu tutor/pai adotivo.
Ilonka não conheceu seus pais biológicos e passou a vida sob a guarda do Estado. Novamente ela precisa se adaptar a uma rotina nova, e, pelo menos dessa vez, não vai estar sozinha. Junto a ela, compartilhando a mesma diagnose funesta, estão outros sete jovens: Kevin (Igby Rigney), Anya (Ruth Codd), Sandra (Annarah Cymone), Spencer (Chris Sumpter), Cheri (Adia), Natsuki (Aya Furukawa) e Amesh (Sauriyan Sapkota). Fora esses pacientes, os únicos a habitarem as dependências do casarão de Brightcliffe são o enfermeiro Mark (Zach Gilford, um veterano das produções de Flanagan) e a Dra. Stanton (interpretada por Heather Langekamp que muitos conhecem como a jovem sobrevivente no clássico A Hora do Pesadelo, de 1984)
Como forma de suportar os tratamentos paliativos e os dias longos e arrastados na residência afastada, os jovens “enganam” a morte ao se encontraram todos os dias à meia-noite para beber e compartilhar histórias de terror e suspense semificcionais que eles mesmos criaram. Assim surgiu o Midnight Club, cuja tradição remete aos antigos moradores de Brightcliffe no qual cada encontro é iniciado com um brinde àqueles que ‘já se foram, aos que agora estão, e aos virão’, sublinhando de maneira bittersweet a efemeridade da estadia dos pacientes na clínica.
Mike Flanagan é um especialista na arte de combinar terror com drama de uma forma que oscilamos entre jump scares e lágrimas de comoção. Uma mistura extremamente potente que não deixa ninguém insensível aos acontecimentos narrados. Somos sugados para dentro da história, sentimos medo, tristeza, empatia e ficamos forçados a refletir sobre a condição humana e a fragilidade de nossos corpos em contraste à força de nossos desejos. E essa mistura de sentimentos, quando ainda na adolescência, adquire dimensões dramáticas ainda maiores. Flanagan não nos poupa em nenhum momento. Destrói nossas esperanças para logo após acender uma pequena luzinha no escuro, em forma de um vagalume.
O esmero estético não é pouco. Os cuidados com a ambientação, com locações e figurinos nos transportam parta a metade dos anos 1990. Pensamos em Blair Witch Project, em seitas macabras, rituais proibidos, amores juvenis. O teenage angst encontra o verdadeiro angst. Aquele medo adulto da morte que, geralmente, esperamos sentir apenas nos últimos anos de uma vida bem vivida e rica em experiências. A garotada do Midnight Club não tem tempo a perder – querem amar, querem curtir, querem sentir. Em suas próprias palavras: “o que poderia ser mais assustador do que uma sentença de morte? Isso nós já temos”, afirmam. E isso abre uma infinidade de possibilidades criativas em um mundo de histórias onde a imaginação e a realidade se misturam. Onde o medo não é mais empecilho para quase nada. Principalmente quando se trata de resolver conflitos interpessoais e expor a verdade.
Mike Flanagan e a produtora Leah Fong formam uma dupla forjada num inferno pessoal que encontra em todos nós pelo menos um eco. A colaboração dos dois contribuiu (e muito!) para elevar a qualidade do gênero nas produções da Netflix que, muitas vezes, se parecem com mais com programas modelados para canais abertos, superficiais e sem restrições etárias visando alcançar o maior público possível. Então, The Midnight Club toca fundo. Apesar de ter a mira nos jovens, a série em nada se parece com produções típicas do gênero e é um prato cheio para adultos. Pelo menos para aqueles que ainda nutrem uma nostalgia por filmes do John Hughes ou pelo terror psicológico acima do mero gore. Também é um prato cheio para os saudosistas quarentões que, como eu, viajam no tempo ao escutar L7, Cypress Hill, Stereo MCs ou Blind Melon na trilha sonora.
Diretor boliviano aposta no retrato das relações metafísicas que sobrevivem à margem da selva de concreto
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Olhar de Cinema/Divulgação
As sinfonias da cidade retratam o movimento das metrópoles, transformando selvas de concreto e engarrafamentos em um ritmo sensível por meio da expressão do cinema. O Grande Movimento (El Gran Movimiento, Bolívia/Catar/França/Suíça/Reino Unido, 2021 – Olhar de Cinema) é o último lançamento do cineasta boliviano Kiro Russo, que foi o centro da mostra Foco da 11a edição do Olhar de Cinema, e se pretende fazer jus ao estilo de Dziga Vertov e Walter Ruttmann. Nele, La Paz é o vetor de uma jornada entre Elder (Julio César Ticona) e Max (Max Bautista Uchasara).
Elder é um dos protagonistas do primeiro longa de Russo, Viejo Calavera, do qual este é uma espécie de continuação, e caminhou sete dias para chegar à capital boliviana protestar por melhores condições para si e seus colegas, mineiros de carvão. Contudo, ao chegar em La Paz, vai em busca de trabalho e adoece por ter inalado muito carvão. A trama é esparsa e bastante aberta: as personagens vêm e vão sem muita explicação, uma característica que ecoa a postura passiva de Kiro Russo, cuja câmera é invisível, paciente e impassível. Seus longos planos frequentemente se alteram por meio de um potente jogo de zooms que aproximam e afastam os objetos sem movimentar a câmera. Também são comuns as instâncias em que Elder ou Max, um misterioso bruxo em situação de rua que vaga as ruas e arredores de La Paz, são enquadrados em meio a multidões, escombros e árvores, parte constituinte de um ruído socioeconômico.
Desafiando o reducionismo do cinema a furos de roteiro e “finais explicados”, Kiro Russo é bastante óbvio em sua temática, mas absurdamente vago em seu roteiro, desenvolvendo a trama com lentidão, num entremeio de cenas cotidianas e repetições de motif constante. Se a primeira parte, por assim dizer, do longa-metragem remete ao estilo de uma sinfonia da cidade, a segunda é o retrato das relações metafísicas que sobrevivem à margem da selva de concreto.
A margem, aqui, é um elemento central: o diretor é explícito ao afirmar, na breve apresentação em vídeo exibida antes do início da exibição em Curitiba, que seu interesse é versar sobre o capital. Contudo, o desempregado e o homem em situação de rua que protagonizam o filme são personagens à margem das relações capitalistas – o proletário em ruína física e o lumpen, já excluído da própria relação de trabalho e existência que configuram o trabalhador. A partir do momento em que deixa de posicioná-los no mecanismo capitalista e individualiza-os, operando uma transição do macro da cidade para o micro de Elder e Max, O Grande Movimento parece afastar-se da pretensão de Russo para embarcar numa situação marginal ao capital. Quando a barreira de classes impede o acesso da população mais pobre da ciência e, principalmente, da saúde, quem é capaz de salvá-la em um momento de necessidade?
Ainda no começo do longa-metragem, Elder é encontrado por Mama Pancha (Francisca Arce de Aro) uma senhora que, embora o protagonista não conheça, afirma ser sua madrinha e grande amiga de sua falecida mãe. É ela que o abriga, encontra bicos para que ele trabalhe e o leva ao médico, a fim de investigar a tosse constante. O doutor, após uma breve consulta, afirma não haver nada de errado e é imediatamente respondido com uma preocupação maternal: pode ser um demônio? Com a escassez de respostas, Mama Pancha une Elder e Max, a quem ajuda quando vê, e busca no misticismo ancestral a salvação de seu afilhado.
Sem teto, comida ou lugar na cidade – afinal, dorme numa floresta próxima à cidade –, Max é a representação pictórica da ancestralidade cultural latino-americana. Sua reza e seu benzimento são a linha de frente do único combate possível pela vida de Elder. Mas o desfecho é trágico. Nem mesmo o resgate da tradição pode curar uma doença, por essência, capitalista. O carvão em pó inalado durante o trabalho de Elder é, como Russo expõe em sua sequência final, o moedor de carne que assola a sociedade em La Paz e a sentencia para o mesmo fim.
Contudo, o simbolismo raso dessa fração final e algumas experimentações no andar do filme tornam sua projeção incerta – O Grande Movimento é um filme divisivo. Seu ritmo lento faz com que os defeitos, que são poucos embora flagrantes, sejam amplificados na mente do espectador e as escolhas de estilo que se repetem transformem-se num marasmo criativo. Mas a paciência faz bem: Kiro Russo traz a reflexão ao centro dessa experiência fílmica, gostemos ou não de seu resultado.