Movies

Conduzindo Madeleine

Passageira idosa e taxista estressado tornam-se cúmplices durante extenso trajeto cheio de lembranças e afetos em Paris

Texto por Abonico Smith

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Dirigir estressa. Que o diga o taxista Charles. Por precisar ganhar dinheiro para pagar dívidas e levar comida para esposa e filha em casa, guia seu táxi por Paris seis dias por semana e muitas horas a cada dia, sempre com os nervos à flor da pele. Reclama de tudo e de todos, xinga clientes, pedestres, ciclistas e motoristas sem parar. Seu dia a dia não parece ter muitas nuances diferentes da previsibilidade e do constante estado de nervosismo. Até uma chamada incomum para atender uma passageira cair no seu colo.

Madeleine Keller é uma tagarela senhora de 92 anos que solicita um táxi para realizar um trajeto longo e incomum. Ela sai de sua casa com destino a uma casa de repouso para idosos. Com um bom dinheiro em mãos, não se furta em pagar o necessário para Charles. De taxímetro ligado (e autorizado para isso) desde antes de buscá-la, o chofer vai pegá-la do outro lado da cidade. Depois, atendendo a pedidos, aumenta o percurso para que a senhora possa visitar locais do passado, relembrar coisas da família e da vida e ainda esticar o tempo no que for possível, para chegar o mais tarde que der ao seu destino final.

Conduzindo Madeleine (Une Belle Course, França/Bélgica, 2022 – Califórnia Filmes), exibido antes por aqui no Festval Varilux, chega agora ao circuito nacional de cinema mostrando o improvável encontro esses dois personagens. Basicamente a trama vai se desenvolvendo durante o trajeto pelas ruas da capital francesa, com direito a flashbacks elucidativos. Neles, Madeleine (Line Renaud nos dias atuais e Alice Isaaz quando jovem) vai contando a Charles (Dany Boon) muito dos perrengues que vivera quando moça. A morte do pai durante a Segunda Guerra. A primeira paixão. O primeiro beijo. Os bailes da juventude. A gravidez inesperada e a maternidade ainda solteira. O namorado egocêntrico que, sem parar, abusava dela física e psicologicamente. A hora da vingança contra ele. A injusta pena imposta ela pela justiça por isso.

Pouco a pouco, o estressado motorista vai ficando para trás, dando espaço a um curioso e atencioso homem, cada vez mais envolvido com a peculiar experiência de vida da simpática idosa que acabou por se tornar um símbolo da resistência feminina contra os abusos da totalmente dissimulada sociedade daqueles tempos mid-century, regida sempre de acordo pelo impiedoso patriarcado. Carregadas de dramaticidade, as relembranças de Madeleine vão provocando profundas mudanças em Charles, mesmo com o pouco tempo de convivência entre os dois. O filme, então, vai se tornando um tocante road movie pelas charmosas ruas parisienses. A pequena bolada que ele vai ganhar pelo extenso e duradouro percurso com a passageira já passa a não importar tanto. Espectadores assistem a uma rápida conversão do motorista em cúmplice da senhora, que, ao mesmo tempo, passa a retribuir com gratidão a atenção dada por ele. Sobretudo depois de uma cena-chave em que ocorre uma perigosa ultrapassagem de um sinal vermelho. Os dois, uma com o dobro da idade do outro, tornam-se cúmplices a ponto de já não se saber mais quem conduz quem, metaforicamente falando. Contribui para isso a química entre Renaud e Boon, que já trabalharam juntos antes (na comédia romântica A Riviera Não é Aqui, de 2008) Com uma história simples, cativante e afetuosa, Conduzindo Madeleine provoca sério risco de derramar lágrimas em espectadores mais incautos quanto ao envolvimento de emoções. Só que não toca na tangente no melodrama e ainda proporciona alguns momentos de humor. Sem falar nos pontos de reflexão a respeito de mudança dos tempos, necessidades pessoais e também as dificuldades que cada um enfrenta no decorrer de sua vida.

Movies

Não Tem Volta

Em ritmo frenético de redes sociais, comédia com Manu Gavassi mira na descoberta das dores de amores pela geração Z

Texto por Frederico Di Lullo

Foto: Star Distribution/Divulgação

Quem nunca sofreu por amor? Talvez o assunto mais abordado na história da música, do cinema e da literatura é o que permeia a comédia, ora meio romântica, ora meio dramática Não Tem Volta (Brasil, 2023 – Star Distribution/Disney), que já estreou nos cinemas brasileiros.

Dirigida por César Rodrigues (conhecido pelo trabalho em Modo Avião e Vai Que Cola: O Filme), o filme conta a história de Henrique (Rafael Infante), um rapaz que, depois de perder Gabriela (Manu Gavassi), toma a decisão de tirar a própria vida. Para isso, contrata uma agência especializada no assunto.

Tudo ocorria bem. No entanto, sua grande paixão retorna à vida para continuar o que tinha acabado. Só que existe um porém nessa história: os matadores de aluguel disseram que, caso fossem contratados, não haveria forma alguma de voltar atrás.  E é assim, nessa trama até meio descompromissada, que inicia a história do filme. Com cortes e cenas que tranquilamente poderiam ser reels de Instagram ou TikTok, o longa vai de se desenvolvendo.

Filmado e editado no exato padrão de uma hora e trinta minutos de duração, Não Tem Volta progride na narrativa flertando com diversos gêneros, mas nunca esquece a comédia como eixo centralizador. Reações, comoções e situações inusitadas levam o enredo num ritmo frenético que mais parece um feed: uma hora estamos no Rio Janeiro, em outra estamos em Salvador.

Em suma, uma produção padrão, que cria identidade, curiosidade e o principal: entretenimento. É isso que, hoje em dia, muitas pessoas procuram, dentre centenas de opções em telas, aparelhos celulares e computadores.

E, como a voz doce e delicada da Manu Gavassi, o filme também viabiliza o seu segundo propósito: atinge em cheio a descoberta pela geração Z de seus respectivos dilemas afetivos. Afinal, quem nunca sofreu por amor?

Movies

Nosso Amigo Extraordinário

Misteriosa criatura que literalmente cai do céu transforma o dia a dia de um idoso rabugento em tocante drama de premissa sci-fi

Texto: Abonico Smith

Foto: Synapse/Divulgação

Na língua inglesa, o termo stranger designa tanto “estranha/o”ou “estrangeira/o”. Pode ser algo ou alguém que chega de outro lugar ou mesmo da própria região mas que não seja codificável de alguma forma para a gente. E é justamente esta ambiguidade de significados que faz esta palavra ser a grande norteadora de um filme como Nosso Amigo Extraordinário (Jules, EUA, 2023 – Synapse), que estreou nesta quinta-feira nos cinemas brasileiros.

Primeiro conhecemos Milton Robinson (Ben Kingsley), que representa o estranho. Aos 78 anos, ele vive sozinho em uma pequena cidade do oeste do estado da Pensilvânia. Viúvo, ele não fala com o filho por causa de divergências parentais do passado. A filha Denise, veterinária, é o seu único elo familiar, embora as conversas sejam poucas, praticamente por telefone e à base de algumas turras. A idade avançada ainda dá indícios de que desenvolve sinais de Alzheimer, como uma constante apresentação de repetições e esquecimentos. Sua vida consiste basicamente em ficar em casa assistindo a alguns programas de televisão e se reunir periodicamente com outros moradores da região em uma assembleia pública para sugestão de ideias que possam vir a causar algum tipo de benfeitoria para o município. Contudo, ninguém parece levá-lo muito a sério, sobretudo quando abre a boca para dizer alguma coisa.

O cotidiano de Milton começa a ganhar um novo sentido quando em uma noite, de uma hora para a outra, desaba um OVNI no quintal de sua casa e uma criatura alienígena se vê presa e perdida na Terra, sem poder fazer muito para voltar logo para casa. De aparência humanoide, cor cinzenta e temperamento pacífico e amigável, ela não emite qualquer som. Apenas se comunica com Robinson por meio de olhares expressivos e poucas movimentações corporais. Também não existe nela indicação de gênero sexual. Por isso, o batismo de Jules – dado por uma amiga de Milton que acaba descobrindo a/o “hóspede secreto” – lhe cai bem. Afinal, este nome de origem francesa é neutro, serve tanto para o masculino quanto o feminino.

Jules comanda uma revolução na vida do aposentado. Aos poucos, sua rabugice, em muito provocada pelo sentimento de solidão, transforma-se em amizade. Quem também experimenta a mesma sensação são duas amigas de mesma faixa etária (porém de pensamentos, progressista e conservador, completamente em oposição uma da outra).Elas não só descobrem o grande segredo do protagonista como também passam a dividir confidências de vida e nutrir amor pela criatura que literalmente caiu do céu. O ser alienígena passa a atuar como uma espécie de psiquiatra: dá ouvidos para as confissões e lembranças dos terráqueos e, assim, faz com que eles se sintam melhor ao passar a limpo tudo o que sentem com as pessoas e as coisas ao redor deles. Tudo porque agora já possuem uma companhia para conversar e que lhes dê a devida atenção.

Mais conhecido em Hollywood por outra função nos bastidores de Hollywood, a de produtor (no seu currículo estão longas como Pequena Miss Sunshine, Uma Vida Iluminada e o recente Um Lindo Dia na Vizinhança), o diretor Marc Turtletaub esbarra na tangente da ficção científica para conceber um bom drama sobre o comportamento humano. O roteiro dá umas capengadas, ainda mais na fase em que o governo americano, que procura esconder dos cidadãos a existência do disco-voador visto no céu da cidade, manda os policias locais investigarem (e depois invadirem) a casa de Milton. A trilha sonora assinada pelo alemão Volker Bertelmann, vencedor do último oscar da categoria por Nada de Novo no Front, também exagera nas pontuações do stacatto em demasia para demonstrar toda a tensão vivia pelos quatro personagens principais do ato final.

Uma coisa, porém, é inegável: a grande atuação de Jade Quon como Jules. Debaixo de uma caprichada maquiagem de rosto e corpo (que levava horas e horas para acabar e precisou ser feita trinta vezes no total durante as filmagens), a atriz, de traços e ascendência asiática, um metro e meio de altura e que também é mais conhecida em Hollywood por outra função, a de dublê, se mostra soberba nos olhares e nos gestos econômicos, sutis. Somando-se à experiência e ao talento de Kingsley, provoca uma bela química na tela e mostra que nem sempre o uso de CGI é tão necessário assim para um filme de premissa sci-fi.

Nosso Amigo Extraordinário é obra pequena no orçamento e nas pretensões, mas grande no resultado e nas emoções despertadas em quem a assiste. Pena que o título em português soe tão deslocado (e óbvio demais) ao perder a ambiguidade e o mistério do nome original. Certas vezes, para o bem desta obra, torna-se recomendável manter os trunfos de um idioma estrangeiro e achar estranho que o público brasileiro possa vir a entender.

Music

Vintage Caravan – ao vivo

Trio islandês de stoner rock faz Florianópolis sentir a abertura dos portões do inferno durante uma fria noite de sexta-feira

Texto e foto por Frederico Di Lullo

Já passava das 22h30 do último dia 11 de agosto, quando cheguei no Desgosto Bar para assistir uma das maiores bandas de stoner rock do planeta. Sim, os islandeses do Vintage Caravan voltavam a Florianópolis depois de sete anos, numa nova turnê pelo sul do sul do mundo. Não tinha ido ao bar desde que lá era a casa noturna Treze (bons tempos!) e, sinceramente, me surpreendi positivamente. Toda a estrutura é propícia para criar um ambiente de resistência, com bandeiras do movimento antifascista nacional e de Santa Catarina. Me senti no local certo. Ainda, um ótimo preço para a cerveja Estrella Galícia (que pelo jeito patrocina o local), saindo 3 por R$ 30. E tudo foi melhorando, pois à medida que o local ia se enchendo de hipsters, metaleiros e millennials, rolava Red Fang, The Valley of the Sun, Kadavar e Grand Magus num som ensurdecedor. 

Lá pelas 23h10, quando comecei a ficar um pouco bêbado, entraram no palco o guitarrista Óskar Logi Ágústsson, Alexander Örn Númason no baixo e Stefán Ari Stefánsson na bateria. Então, os portões do inferno se abriram. Literalmente. Desde o momento que soou o primeiro riff de guitarra, os presentes que enchiam a casa ficaram hipnotizados. Não cheguei a acompanhar outras datas do Vintage Caravan desta vez (diferentemente de 2016), mas posso afirmar que o público da Ilha da Magia esteve entre os mais empolgados, entoando os tempos não tão longínquos em que a capital catarinense era, talvez, o epicentro nacional do stoner rock.

Durante pouco mais de uma hora, o power trio calcinou os fãs com um set list baseado em Monuments (o mais recente álbum, lançado em 2021) mas que contou com outras músicas de sua vasta discografia. Começou com “Whispers” e não faltaram clássicos como “Cocaine Sally”, “On The Run” e “Expand Your Mind”, esta executada após uma breve saída pela minúscula porta atrás da bateria.

Em resumo, foi uma ótima sexta-feira. Um show foda, direto ao ponto e que esquentou todo mundo que estava lá naquela fria noite em Desterro Stoner City. Então ainda me pergunto: como tem gente que não gosta de rock, caralho?

Set list: “Whispers”,  “Crystallized”, “Reflections”, “Innerverse”, “Can’t Get You Off Of My Mind”, “Forgotten”, “Hell”, “Babylon”, “Cocaine Sally” e “On The Run”. Bis: “Expand Your Mind”.

Movies

Neirud

Filme de abertura do festival Olhar de Cinema deste ano busca redescobrir um “misterioso” espectro da história familiar da diretora

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Divulgação

Abrindo a mostra competitiva brasileira do 12° Festival Olhar de Cinema, o longa-metragem Neirud (Brasil, 2023) fez sua estreia mundial na noite da última quinta-feira (15 de junho). Documental, a obra traz de volta às telas curitibanas um cinema cujo objeto é a família da própria autora.

Com uma investigação quase autobiográfica da diretora Fernanda Faya sobre a história de sua Tia Neirud, uma grande “amiga” de sua avó com um passado circense misterioso a ser desvelado, são traçados os passos de Faya por entre fotos, telefonemas e lembranças da infância para se construir o cenário afetivo do filme. Com forte uso da narração em off, que sempre posiciona a autora como agente da ação, os 70 minutos da projeção, pouco mais de uma hora, não diferem muito entre si – essa é uma narrativa simples e direta.

Não à toa, o andamento da obra parece prejudicado pela qualidade estática de sua forma, que justapõe fotografias do passado com insistentes telas pretas (a ausência de registro) e imagens de arquivo, realizando uma reconstrução plástica em última análise falsa dessa história, e pela aparente necessidade de Faya em falar tudo que deseja transmitir ao público. Parece que, para reparar a suposta falta de fontes, Neirud tornasse o processo de busca de uma narrativa na narrativa em si mesma. A potência das imagens, principalmente as fotografias, é ignorada em nome da garantia de que o público “entenderá” a obra.

O mistério da identidade de Neirud (lê-se Nei-rú) exemplifica uma problemática muito brasileira: as vozes dissidentes que foram apagadas e silenciadas pela branquitude heteronormativa brasileira. Neirud era, como se deixa claro desde o início do filme, a companheira de vida de Nely, avó de Fernanda e diretora artística do circo em que conheceu nossa protagonista-objeto. Ela, por sua vez, era a icônica Mulher-Gorila, subvertendo preconceitos para fazer-se precursora da luta-livre feminina num tempo em que a prática era proibida no país.

Embora o material documental sobre o passado de sua avó fosse rico, Fernanda não encontrava quase nada sobre Neirud. É particularmente aterrador, então, que cheguemos à conclusão junto de Fernanda Faya de que a última pessoa a apagar os traços da vida de Élida Neirud dos Santos foi ela mesma, na ânsia de encaixar-se na sociabilidade evangélica após a morte de Nely.

A violenta transformação de modos de vida que escapam das garras da normatividade conservadora brasileira em verdadeiros espectros do passado, reticentes em compartilhar sua memória, permanece um traço forte de nossa sociabilidade. Até lá, filmes como Neirud, ainda que este peque na forma, tomam uma postura militante em se apegar ao pouco que há disponível para investigar as histórias que não puderam ser contadas. As memórias que não passaram para frente.