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Nara Leão

Bossa nova, samba do morro, música de protesto, festivais da TV, Tropicália: oitenta fatos e curiosidades para celebrar os 80 anos da cantora

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução/Site oficial de Nara Leão

>> Nara Lofego Leão nasceu em Vitória, capital do Espírito Santo, no dia 19 de janeiro de 1942. Com os pais, o advogado Jairo Leão e a professora Altina Lofego, mais a irmã mais velha Danuza, mudou-se para o Rio de Janeiro com apenas um ano de idade. Começou a ter aulas de violão ainda na infância e morou durante toda a infância e a adolescência no bairro de Copacabana.

>> A educação liberal recebida pelas duas filhas foi o grande legado que seus pais passaram. Ambas aprenderam desde cedo que mulher nenhuma poderia depender de homem para viver, trabalhar e se bancar financeiramente. Na adolescência, o amplo apartamento de seus pais – de frente para a praia, no Posto 4 – recebia toda semana muitos convidados em festas que duravam horas e horas e horas. Neles, muitos músicos ligados à turma da jovem Nara levavam seus violões ou sentavam-se ao piano da casa para cantar e mostrar suas composições. Entre eles estavam Roberto Menescal (de quem havia sido aluna ainda aos 14 anos), Carlinhos Lyra, Tom Jobim, João Gilberto, Dick Farney, João Donato, Dorival Caymmi, Dolores Duran e Johnny Alf. Além da música eram habituais os jogos de pôquer. Alfredo tinha como parceiros de cartas Millôr Fernandes, Paulo Francis e Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora e namorado de Danuza.

>> Foi destes encontros no apartamento da família Leão e também nas areias da praia logo em frente que nasceu o movimento que iria transformar radicalmente a música brasileira no final dos anos 1950. Por ser a única mulher a tocar um instrumento – e também pelo fato de sua saia já não muito longa ainda subir mais um pouco quando tocava o violão, o que deixava os joelhos de fora – Nara acabou ganhando o epíteto de Musa da Bossa Nova.

>> Além das festas noturnas, Nara também costumava passar tardes no sofá da sala ouvindo as músicas de jovens talentos, ainda desconhecidos de sua habitual turma, a quem convidava para conhecer os trabalhos. Entre os nomes que foram ao local para dedilhar as cordas do violão, pelo menos por uma vez, estiveram Roberto Carlos e Chico Buarque.

>> Seguindo os ensinamentos do pai, com 16 anos de idade Nara arrumou um emprego. Sua função era a de secretaria da redação do Última Hora, jornal de seu cunhado Samuel Wainer. Também fazia reportagens para o Tablóide UH, o caderno de utilidades comandado pelo jornalista Alberto Dines.

>> Apesar de ser praticamente o elo de ligação entre cantores e compositores, Nara gostava mesmo era de ouvir e conhecer as músicas, além de cantá-las em sua privacidade. Sua extrema timidez a impedia de almejar voos maiores na carreira artística. Tanto que nos primeiros concertos que reuniam a turma da bossa nova – ainda sem uma figura âncora no time escalado para cada uma daquelas noites, nem mesmo João Gilberto – Nara se negava a subir no palco quando era chamada pelos amigos. Na primeira vez em que cedeu, acabou cantando a música toda de costas para a plateia.

>> Iniciou em 1959 o namoro com Ronaldo Bôscoli. Amigo pessoal de Menescal, ele transitava entre os outros núcleos comuns a Nara, tanto o de artistas de bossa nova (era compositor e produtor musical) como o de jornalistas culturais. Dois anos depois, após uma viagem profissional para apresentações em países como Uruguai, Chile e Argentina com a cantora Maysa, Bôscoli trocaria imediatamente de namorada.

>> Aos 18 anos passou a frequentar o consultório do psicanalista Ivan Ribeiro, um dos membros fundadores da primeira turma do Instituto de Medicina Psicológica. Este envolvimento com a área acabaria, anos e anos mais tarde, levando a cantora a ingressar no curso de Psicologia da PUC, durante uma das interrupções de sua carreira artística.

>> Além da música e da psicologia, Nara era apaixonada por artes plásticas, mais precisamente a xilogravura. Entre os 500 candidatos que enviaram obras para o X Salão Nacional de Arte Moderna, em 1961, ela ficou entre os 138 trabalhos selecionados para a exposição.

>> Em 1962 iniciou outro namoro, agora com o cineasta, poeta, letrista e dramaturgo moçambicano Ruy Guerra, radicado desde quatro antes no Brasil. Foi com esta relação que ganhou impulso a primeira grande virada artística da sua vida, que viria a resultar numa guinada sonora no próximo par de anos. Por meio de Guerra, Nara viria a conhecer outros representantes do Cinema Novo brasileiro.

>> Não foi apenas Ruy Guerra o responsável pela guinada sonora que levou Nara Leão a se desvincular da turma da bossa nova entre 1963 e 1964. Parte da culpa também cabe a Carlos Lyra, amigo de Nara e um dos artistas ligados ao Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), fundado em 1961 por artistas e intelectuais de esquerda, que tinham o objetivo de difundir e criar “arte revolucionária” – isto é, uma arte que fosse popular e política ao mesmo tempo e que fosse feita do povo e para o povo, que rompesse com a cultura “alienada” das classes dominantes ao tratar de assuntos reais do cotidiano. Por sinal, “alienada” foi uma das expressões usadas por Nara ao definir a bossa nova quando, em uma entrevista, mandou avisar em alto e bom que estava rompendo com a imagem de cantora do movimento que havia estagnado em praia, mar e barquinho e não tinha muito mais para onde se ampliar.

>> Uma das ações de política cultural do CPC foi a de buscar nos morros cariocas as geniais composições dos não menos geniais artistas que por lá estavam “escondidos” e levá-las ao asfalto e à elite da Zona Sul. Foi assim que nomes como Cartola, Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros, Clementina de Jesus e Zé Keti colocaram o então chamado “samba puro” radar da música popular brasileira daquela década, gravando discos, tocando em rádio e TV e dando entrevistas para a imprensa.

>> Foi somente em 1963 que iniciou-se oficialmente a carreira profissional de Nara Leão como cantora. O espetáculo, que tinha a chancela do CPC, chamava-se Pobre Menina Rica, escrito por Carlos Lyra e Vinícius de Moraes com quem ela também contracenava no palco da boate carioca Au Bon Gourmet. Além das apresentações ao vivo, Nara ainda passou a participar de programas de TV em diferentes estados. Em agosto, já contratada pela recém-inaugurada gravadora Elenco, começou a gravar seu primeiro disco, no estúdio Rio-Som, no centro do Rio de Janeiro. No repertório, faixas assinadas por Cartola, Elton Medeiros, Zé Keti, Moacyr Santos, Baden Powell, Edu Lobo, Carlos Lyra, Vinícius de Moraes, Gianfrancesco Guarnieri e Ruy Guerra. Entre os clássicos, “Diz Que Fui Por Aí”, “Luz Negra” e “O Sol Nascerá”. 

>> O cenário de repressão instaurado nas ruas após o golpe militar de março de 1964 inspirou a montagem de outro espetáculo do CPC (àquela altura já posto na ilegalidade pelo novo regime), chamado Opinião. Com a direção de Augusto Boal, do Teatro de Arena, textos de Oduvaldo Viana Filho e produção musical de Lyra, o musical trazia como protagonistas Nara, Zé Keti e João do Vale. A trinca trazia as representações dos próprios artistas para o palco, misturando a jovem branca bem nascida, o sambista negro e o nordestino, também negro. Burguesia, operariado e campesinato. Logo que estreou, em um pequeno teatro dentro de um shopping center em Copacabana, em 11 de dezembro de 1964, Opinião transformou-se em febre entre os jovens que queriam protestar publicamente contra os primeiros meses de ditadura. Questões como desigualdades sociais, favelas e reforma agrária tornaram o evento um libelo de resistência politica a favor da democracia e da cultura brasileira. Duas canções na voz de Nara tornaram-se ícones daquilo que se convencionou a despois deste espetáculo, chamar de música de protesto brasileira: Opinião” (“Podem me prender/ Podem me bater/ Podem até deixar-me sem comer/ Mas eu não mudo de opinião”) e “Carcará” (“Carcará não vai morrer de fome/ Carcará mais coragem do que homem/ Carcará pega, mata e come”). A primeira não só abre o repertório do segundo álbum de Nara, lançado ainda no final de 1964, como também dá título ao trabalho, que também traz do mesmo espetáculo “Sina de Caboclo”.

>> O estouro de Opinião foi a primeira demonstração pública de Nara Leão a respeito de seu descontentamento com tudo aquilo que se torna massivo. Apenas algumas semanas depois da estreia, a cantora se desligou da montagem, já procurando coisas novas a serem exploradas na sequência de um pequeno tratamento feito para cuidar das cordas vocais. Indicou para ocupar a sua vaga uma jovem e então ainda desconhecida chamada Maria Bethânia. Nara ficou encantada com sua voz assim que a ouviu cantar durante uma viagem feita a Salvador em 1963. Com apenas 18 anos, ela só foi autorizada pelo pai Zeca a ir para o Rio de Janeiro se tivesse o irmão um pouco mais velho Caetano Veloso como companhia. Assim começou a trajetória profissional de ambos fora da Bahia. Bethânia estreou em Opinião no dia 13 de fevereiro de 1965.

>> Nara, contudo, não ficaria muito tempo afastada dos palcos e do grupo Opinião (como o coletivo passou a se chamar). Em abril aceitou o convite para estrelar outro musical de cunho político no teatro de Arena. Liberdade, Liberdade trazia as assinaturas de Millôr Fernandes (texto), Flávio Rangel (direção) e Paulo Autran (linha de frente do elenco). Nara participou apenas da montagem carioca, já que queria conciliar tudo com a gravação de seu terceiro disco, sob a coordenação de Dori Caymmi e Luiz Eça. Este trabalho viria a encerrar a trilogia iniciada com o primeiro, na qual a bossa nova predominava mas também fazia a cantora apontar novos caminhos para a música brasileira com obras dos sambistas “puros”. Neste álbum, batizado O Canto Livre de Nara e já lançado por uma gravadora de maior porte, a Phillips, entraram temas sertanejos (“Corisco”, parceria de Sérgio Ricardo com o cineasta Glauber Rocha), o folclore brasileiro (“Incelença”), o mar (“Suíte dos Pescadores, de Dorival, que, aliás, detestava o título e preferia chamar a canção de “História dos Pescadores”, seu nome original) e, claro, mais versos de protesto (“Samba da Legalidade”, de Zé Keti). “Carcará”, que não havia entrado no anterior, foi selecionada para este repertório.

>> Na verdade, o que provocava toda essa mistura de influências e sonoridades era a vontade extrema de Nara de não se ver presa em amarras estéticas. Ela tinha horror de ficar refém de uma pressuposta coerência musical e, depois disso, ser cobrada pela escolha de outras correntes sonoras ou a condição de ser a porta-voz de algum movimento. Tanto que adorava fazer pesquisa de novos autores e composições para incluir em seu repertório, evitando, assim, que um disco seu pudesse soar parecido demais com o outro. Por isso, programou para depois das gravações de O Canto Livre de Nara uma viagem, sem data para acabar, por várias partes do Brasil, para realizar novas descobertas autorais. A princípio, chamou o poeta Ferreira Gullar, com quem mantinha um affair, para acompanhá-la. Impossibilitado de largar o emprego em um banco e a família, Gullar recusou, o que fez o namoro acabar (mas não a amizade). Desconsolada, Nara foi chorar as mágoas e pitangas no ombro do amigo e confidente Cacá Diegues, sem entrar muito em detalhes a respeito da outra parte. O cineasta não tardaria a preencher a vaga no coração da cantora.

>> No dia 22 de maio de 1966, quando o regime militar começava a mostrar mais sinais de endurecimento contra os descontentes, o jornal Diário de Notícias publicava uma entrevista com Nara. Nela, a cantora soltava o verbo contra o regime. Disse que os generais entendiam de canhão e metralhadora mas não de política. Propunha a extinção do exército, porque não só a instituição “não servia para nada” e estava ficando cada vez mais obsoleto e “caindo aos pedaços” como também o Brasil, com suas desigualdades, tinha outras prioridades como a construção de hospitais e escolas, de preferência dentro das fábricas para que, assim, o operariado tivesse uma vida decente. No fim do bate-papo, ainda criticou a cassação dos opositores e disse que os políticos da situação deveriam ser impedidos de exercer suas funções e proclamou a urgência da nacionalização de toda e qualquer empresa no Brasil.

>> As declarações de Nara repercutiram como uma bomba na sociedade carioca e dentro do governo. Os militares não só torceram o nariz como também passaram a consideram Nara persona non grata. Jairo Leão previu que os militares  fizessem alguma retaliação de forma arbitrária, enquadrando a filha na Lei de Segurança Nacional e abrindo um processo para prendê-la imediatamente. Nos bastidores, integrantes da linha dura do exército já pressionavam por alguma punição e ações que intimidassem Nara e seus amigos a não mais se sentir à vontade ao abrir a boca. E também que ela passasse a ser tão vigiada de perto que acabasse pedindo asilo político fora do país. A classe artística, por sua vez, mobilizou-se para fazer um abaixo-assinado encaminhado ao marechal Castello Branco, o primeiro militar presidente brasileiro após o golpe de 1964, pedindo o arquivamento do processo. O colunista social reaça Ibrahim Sued, por sua vez, dizia que a artista não passava de mero fantoche de esquerdistas boêmios e covardes que queriam desestabilizar o governo.

>> Carlos Drummond de Andrade, por sua vez, prestou solidariedade à sua maneira, escrevendo um poema-manifestado direcionado ao presidente chamado Apelo. “Meu honrado Marechal/ Dirigente da Nação/ Venho fazer-lhe um apelo/ Não prenda Nara Leão/ Soube que a Guerra, por conta/ Lhe quer dar uma lição/ Vai enquadrá-la – esta é forte -/ Artigo tal… não sei não/ A menina disse coisas/ De causar estremeção/ Pois a voz de uma garota/ Abala a revolução?/ […] Será que ela tem na fala/ Mais do que charme, canhão?/ Ou pensam que, pelo nome/ Em vez de Nara, é leão?”, diz um trecho da obra. Depois do contra-ataque dos artistas e intelectuais, o governo militar acabou desistindo de prender ou monitorar Nara Leão.

>> Os dois primeiros anos de carreira profissional de Nara foram bastante intensos. Discos lançados a cada seis anos, turnês pelo Brasil para divulgá-los, muitas entrevistas, programas de TV. Com a exposição pública crescente e a falta de tempo no dia a dia para ela mesma, brotava cada vez mais nela a vontade de ser uma pessoa comum, sem fama. Casar, ter filhos, andar na rua como qualquer outra. Não tardaria para ela se decidir a fazer isso e fazer o primeiro intervalo em sua carreira artística.

>> O primeiro de seus dois discos de 1966 revelava novos autores pinçados a dedo por Nara. Entre as faixas de Nara Pede Passagem, de fevereiro de 1966, estavam obras assinadas por então ilustres desconhecidos como Sidney Miller, Jards Macalé, Paulinho da Viola e um tal de Chico Buarque de Holanda, que teve três obras gravadas por ela de uma vez só: “Pedro Pedreiro”, “Madalena Foi Pro Mar” e “Olê, Olá” (“Não chore ainda não, que eu tenho um violão/ E nós vamos cantar/ Felicidade aqui pode passar e ouvir”). Começava aqui uma sólida parceira profissional que viria a marcar a história da música brasileira. Depois dessa trinca, Nara – que levou Chico pela primeira vez a seu apartamento para ouvir suas músicas em 1965 – disse a ele para que não parasse mais de trazer novidades, sobretudo coisas para ela que viesse a gravar. Dentro deste pedido de mais músicas, algo especial. Cansada de ser cobrada por engajamento, queria alguns versos que passassem longe de qualquer interpretação com o turbulento momento sociopolítico do país. Ele, por sua vez, também sentia a mesma pressão vinda de gente do meio artístico e intelectual ligada à esquerda. Então, apresentou a ela uma composição, já rascunhada, que entraria no disco seguinte e viria a alterar radicalmente os rumos de ambas as carreiras.

>> Diferentemente das músicas de protesto que balançaram as estruturas dos circuitos militar e artístico no último par de anos, “A Banda” era uma marchinha inspirada nas tradicionais fanfarras e bandas marciais cuja letra retomava propositalmente o lirismo que anda meio sumido na música nacional de então. A história contada era da mais pura ingenuidade: a performance magnetizante de músicos uniformizados que, enquanto desfilam pela rua atrai a atenção de todos que estão ao redor. Todos simplesmente param o que estão fazendo para ver a banda passar cantando coisas de amor: o homem sério que contava dinheiro, o faroleiro que contava vantagens, a namorada que contava as estrelas, a moça triste que vivia calada, a rosa triste que viva fechava, a meninada toda,  velho fraco, a moça feia, até a lua cheia. Até que a Banda passa e, acabado o desfile, toda a vida que parecia ser doce naqueles instantes junto se vai também. Tudo volta ao normal, sem ter de volta aquele irresistível encanto passageiro.

>> Chico Buarque, ainda com dificuldades de viver como cantor porque ninguém ainda o conhecia muito a ponto de contratá-lo, investia seus esforços para que outros artistas gravassem e cantassem suas músicas. Em 1965, no I Festival Nacional de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, Chico inscreveu a canção “Sonho de um Carnaval”, defendida por Geraldo Vandré. A obra não se classificou para a final, vencida por “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes e na voz de Elis Regina. No ano seguinte, tinha, enfim, a chance de chegar a outra final de festival, desta vez um evento promovido pela concorrente TV Record. E Foi justamente Nara, contratada da emissora de Paulo Machado de Carvalho, quem bateu o pé para defender “A Banda” porque não parava de cantá-la no dia a dia ao lado do ainda namorado Cacá Diegues. Machado de Carvalho e os diretores do festival, Manoel Carlos (sim, aquele que depois ganharia fama escrevendo novelas do horário nobre da Globo) e Solano Ribeiro, ficaram entusiasmados com a escolha, achando que o fato de Nara “abandonar as canções de protesto que a tronaram famosa em Opinião” e abraçar uma obra musical “despretensiosa” renderia bastante publicidade ao evento. Chico, por sua vez, resistiu ao assédio de outros intérpretes e guardou-a para Nara. Mal sabia ele que sua decisão seria acertadíssima. “A Banda” não foi a única música cantada por Nara no I Festival Nacional de Música Brasileira. Segundo o regulamento, era possível que um mesmo intérprete defendesse duas obras. Por isso, além da composição de Chico Buarque, ela também subiu ao palco para cantar “O Homem”, assinada pelo nada músico e companheiro de carteado de seu pai Millôr Fernandes. 

>> Durante os ensaios para a performance no festival, Maneco e Solano identificaram um grande problema no arranjo: a voz de Nara, sempre doce e suave, quase não era ouvida por causa do som alto do conjunto que a acompanhava. Por outro lado, a timidez do autor também o deixava impossibilitado de soltar a voz em conjunto com os músicos da banda. Então, os dois diretores chegaram à conclusão de que Chico deveria cantar boa parte acompanhado apenas de seu próprio violão e, depois que entrasse o arranjo completo, Nara faria um dueto na parte final. Ela, mais tímida ainda do que ele, agradeceu. Durante as etapas classificatórias, “A Banda” já conquistou o público, chegando à final com o favoritismo dividido com “Disparada”, composta por Geraldo Vandré e Theo de Barros, interpretada por Jair Rodrigues (outro artista do quadro dos contratados para o elenco fixo da Record) e Trio Novo (formado pelos gigantes da música instrumental Airto Moreira, Heraldo Monte e o mesmo Theo de Barros).

>> Na noite da apresentação final, um pequeno entrevero no camarim quase pôs tudo a perder para a tão esperada performance de “A Banda”. Tudo porque Danuza foi até o camarim sugerir à irmã que usasse um figurino recém-comprado em Paris. Era um conjunto de suéter e minissaia prateados. Prata também era a cor do mocassim. Nara, dona de simplicidade extrema e temperamento indomável no quesito de só fazer o que queria, negou na hora e caiu no choro diante das insistências da irmã, dizendo que nunca entraria no palco vestida de nave espacial, ainda mais porque já havia ido longe demais ao encarar aquela plateia toda durante o festival. Contudo, acabou convencida pela Danuza a utilizar o figurino especial preparado pela irmã modelo.

>> A performance da dupla foi dominada pela mais pura falta de traquejo dos dois diante de uma multidão. Como dois seres envergonhados até a medula e com o carimbo de “bicho do mato” estampado nas respectivas testas conquistaram todo mundo este é um dos mistérios a serem desvendados até hoje na história da música brasileira. Ele, apoiado por uma grande fatia feminina da plateia, deu conta do recado sem ser brilhante mas também não gaguejou. Ela, por outro lado, não escondia sua tensão. Não saía do lugar, cantou dura feito pedra, só mexendo a cabeça de um lado para o outro.

>> O resultado daquele primeiro evento da era de ouro dos festivais da Record é sabido: “A Banda” e “Disparada” acabaram por dividir o primeiro lugar. Mas pouca gente sabe o que de fato aconteceu nos bastidores antes de sair o anúncio. Formado por doze pessoas, o júri tinha se repartido com sete votos a favor de Chico e Nara e cinco a favor de Jair Rodrigues. Chico, entretanto, comunicou os diretores que iria devolver o prêmio em público caso fosse escolhido o único autor vencedor – o mais justo, segundo ele, seria dividir o prêmio do Geraldo e Theo. O dono da Record e o evento concordou e assim foi feita a vontade do novato músico. Entretanto, a vitória repartida não seria suficiente para abafar toda a repercussão de “A Banda” e o turbilhão que a canção viria a provocar logo em seguida na carreira de ambos.

>> As gravadoras de Chico e Nara (RGE e Phillips, respectivamente) trataram de faturar alto logo após a finalíssima do festival e lançaram compactos com a versão de ambos cantando a música vencedora. Manhã de Liberdade, o sexto álbum da carreira dela em três anos, veio logo na sequência, a ponto do nome da música ser incluído na capa com letras garrafais e um pouco menores do que o próprio título do trabalho. Nara se opôs inicialmente a gravar a canção em estúdio por achar ser mero oportunismo mercadológico, alegando que o autor é quem deveria explorar a canção para se tornar mais famoso. O produtor do disco, Armando Pittigliani, convenceu a cantora a registrar “A Banda” faltando poucos dias para o fim das gravações. Segundo ele, a inclusão da música poderia não só aumentar as vendas do álbum como também abrir as portas para que demais canções alcançassem maior número de ouvintes pelo país. Segundo ele, esta seria a oportunidade de levar à massas algo de qualidade. Nara não tardou a dar razão a Pittigliani. Achou interessante a justificativa de ampliar o alcance de público porque admirava esta mesma qualidade autêntica em astros populares da época, como Wilson Simonal, Roberto e Erasmo Calos, todos eles igualmente detestados pelas turmas do CPC e da bossa nova. Com “A Banda”, Manhã de Liberdade bateu a marca de cem mil cópias em apenas três semanas.

>> De novo, Chico tem três composições gravadas no repertório em Manhã de Liberdade: “A Banda”, “Funeral de um Lavrador”(na qual musicou um poema do auto Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto) e  “Morena dos Olhos D’Água”. De quebra, este disco de 1966 traz ainda obras de novos compositores como Gilberto Gil e Luiz Carlos Sá (que anos depois viria a formar dupla com o parceiro Gutemberg Guarabyra), mais um legítimo “samba do morro”, de Monsueto.

>> João Cabral simplesmente não gostou das audições iniciais de “Funeral de um Lavrador”, cantada na trinca de voes de Nara, Chico e Odete Lara. Para ele, o trio havia adocicado em demasia o poema, retirando a sua dramaticidade. “Você nem deve fazer ideia do significado das palavras que canta na letra”, disparou o poeta e diplomata pernambucano”. Nara tomou um choque ao ouvir o comentário ranzinza. Foi Ferreira Gullar quem convenceu a amiga a superar a rispidez inicial do autor e gravar a faixa no seu estilo. Ainda mais porque fazendo isso ela poderia passar um recado de que não abandonara os temas sociopolíticos naquele instante em que o mercado fonográfico tentava fazer dela uma cantora mais comportada e previsível. “Nara também protesta, faz-se veículo da insatisfação popular, dá voz a esperanças sufocadas. O interesse político de Nara não lhe impede de ter uma visão ampla da canção popular e de valorizá-la em diferentes aspectos, como em suas diferentes épocas e fases. Ela parece fazer questão de mostrar que a canção popular muda, transforma-se, se enriquece e, não obstante, continua a mesma. O seu repertório é prova disso”, escreveu ele em texto de apresentação do trabalho na contracapa.

>> A dupla improvável de intérpretes formada por Nara e Chico ainda alcançaria, no final de 1966, um feito maior ainda do que ganhar um festival. Os dois passaram a ser apresentadores de TV, ganhando um programa para de seu da TV Record, então o grande paraíso dos musicais na TV. Pra Ver a Banda a Passar durou seis meses e foi transmitido ate maio do ano seguinte. Durou até muito tendo em vista a mais completa timidez e falta de intimidade ao conversar com as câmeras, entrevistar os convidados e empolgar a plateia presente no estúdio. Manoel Carlos, o diretor do programa, fez um mea culpa de seu erro estratégico e apelidou a dupla de “os maiores desanimadores de auditório do Brasil”. Chico e Nara, sem abrir mão do aguçado senso crítico tão comum a ambos, concordaram com o aposto. 

>> Nara lançou em maio de 1967 seu sétimo álbum, devidamente chamado Vento de Maio. Na capa, o rosto dela em uma obra assinada por Augusto Rodrigues, seu antigo professor de pintura. Este disco aposta na continuidade do bem-sucedido casamento musical com o amigo Chico, agora com quatro faixas feitas por ele.  Três delas, não por acaso as três primeiras do lado A, disponibilizadas uma atrás da outra, viriam a se tornar marcantes para a carreira de Nara. “Quem Te Viu, Quem te Vê” pega emprestado o provérbio popular para esconder uma mensagem cifrada sobre a ditadura militar e a esperança da chegada de um futuro melhor. “Com Açúcar, Com Afeto” fala da subserviência da esposa, do lar, que se dedica em casa para preparar os prazeres do marido depois que ele chegar em casa cansado o trabalho. “Noite dos Mascarados” (que traz figuras clássicas do carnaval como a colombina e o pierrô para ressaltar o simbolismo em torno da máscara, que pode ocultar identidades e personas e decidir o que pode ser revelado e que deve ser escondido). “Chorinho”, a quarta obra de Chico” e a menos conhecida delas, encerra o Lado B.

>> A história de como Chico compôs “Com Açúcar, Com Afeto” é interessante. Nara queria uma canção que assumisse uma canção feminina e fosse narrada por uma mulher. Mas que passasse longe da Amélia de “Ai que Saudade da Amélia”, samba de 1942 composto por Ataulfo Alves e Mario Lago, que retratava uma moça sem a menor vaidade e passava fome ao lado do marido se fosse preciso. Nara queria algo que retratasse a rotina da mulher brasileira daquela época, que segurava as pontas dentro de casa enquanto o marido passava o dia fora, no trabalho e na farra, e ainda exigia que tudo estivesse pronto quando chegasse. Tal dona de casa deveria ter consciência de suas privações e não aceitar o papel de resignada e submissa. Essa era a primeira de muitas músicas de Chico que viriam a trazer a narrativa feminina em primeira pessoa. Entretanto, o autor admite hoje a alta dose de machismo nos versos e afirma que, depois de muito conversar e ouvir as feministas, abriu mão de vez de voltar a cantar a obra nos palcos.

>> Engana-se, porém, quem acha que Chico Buarque foi o maior privilegiado de Vento de Maio. Outro compositor emplacou simplesmente cinco faixas no repertório: um jovem ainda nos seus vinte e poucos anos chamado Sidney Miller. Carioca do badalado bairro de Santa Teresa, Miller abandonou os cursos de Sociologia e Economia para se dedicar à sua verdadeira grande paixão. Na música, trazia elementos comuns em relação a Chico Buarque: a timidez, a temática urbana e um cuidado especial na elaboração das letras, Apesar de já participar de festivais nos últimos anos, foi só em 1967 que obteve reconhecimento de seu trabalho. Além das faixas gravadas por Nara, ele ainda gravou seu primeiro álbum (pelo mesmo selo Elenco que lançara a amiga anos antes, com músicas que trabalhavam temas populares e resgatavam antigas cantigas de roda) e compôs (junto com Theo de Barros, Gil e Caetano) a trilha sonora da peça Arena Conta Tiradentes, criada por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri e que resgatava a figura do mártir da nossa independência como um grande herói brasileiro, mas fazendo diversas referências ao golpe militar de 1964. Em 1969, Miller viria a produzir e arranjar um disco de Nara. Na década seguinte, dedicou-se a diversas trilhas para o cinema brasileiro até vir a morrer subitamente, de enfarte, aos 35 anos de idade, em 1980. A sala onde ele trabalhava, na Funarte, no Rio de Janeiro, foi batizada com seu nome e se transformou em local de apresentações de música, dança, teatro e cinema, além de seminários culturais.

>> No mês de julho de 1967, Paulo Machado de Carvalho inventou um grande golpe publicitário para os programas musicais da TV Record e que perdura na pol6emica até hoje. Aproveitando a queda de audiência de O Fino da Bossa (apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues) e a extrema popularidade de Jovem Guarda (Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléa), decidiu produzir um novo programa batizado Frente Única da Música Brasileira. Para isso, lançou uma ideia encampada por muitos cantores e compositores, muitos deles ligados contratualmente à própria Record, que acabou se transformando em factoide noticiado por jornais e revistas em todo o país: uma passeata “contra a guitarra elétrica” e a “presença do imperialismo norte-americano na cultura nacional”. Elis e Jair comandaram o desfile pelas ruas, com a presença de nomes como MPB4, Dori Caymmi, Edu Lobo, Geraldo Vandré e, por incrível que pareça, Gilberto Gil, que participou somente para não desagradar a amiga Elis e porque também tinha interesse em continuar sendo figurinha carimbada na grade musical da Record. Caetano e Nara simplesmente se recusaram a engrossar o “coro dos descontentes”. Ficaram ambos na sacada do Hotel Danúbio, rindo de toda a situação “inusitada” e “descabida. Aqui, mais uma vez, Nara teve de deixar bem claro que não gostava de rótulos na música.

>> Também em julho 1967 Nara casava-se, vestindo branco, com Cacá Diegues. A cerimônia ocorreu no velho e conhecido apartamento de seus pais, tendo a praia de Copacabana à frente. Jairo dez uma exigência: o casamento teria de ser com separação de bens e com ele cuidando da papelada. Ele controlava tudo, tendo até uma procuração assinada pela filha que lhe permitia a compra e venda de imóveis adquiridos por ela. Se o advogado incentivava Nara e Danuza a serem independentes, ao mesmo tempo não lhes permitia deixar de ficar sob a sua governança. Os convidados da cerimônia reuniam integrantes das várias turmas de Nara. Tinha gente da bossa nova, do CPC, do Cinema Novo. Danuza e Samuel Wainer foram os padrinhos. Estavam presentes também Chico Buarque, Marieta Severo, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Aloysio de Oliveira, Flávio Rangel e vários outros diretores de cinema, também amigos de Cacá. André Midani, diretor da Phillips, também esteve presente – e foi quem bancou as despesas da Lua de Mel em Nova York.

>> Para o calendário do segundo semestre, ela deixou pronto seu oitavo álbum. Batizado apenas Nara, o trabalho agora trazia a cara da cantora estilizada em uma caricatura feita por Lan. O repertório misturava antigos clássicos da música nacional como “Camisa Amarela” (Ary Barroso), “Lancha Nova” (João de Barro) e “Tic-Tac do Meu Coração” (sucesso na voz de Carmen Miranda) e gente de sua turma (Edu Lobo, Capinan, Dori Caymmi, Nelson Motta. Tom Jobim, Vinícius de Moraes). Entre os novos compositores escolhidos a dedo desta vez estavam Suely Costa e Mariozinho Rocha.

>> O mergulho na canção popular nacional dos anos 1930 e 1940 foi desenvolvido durante muitos dias passado no apartamento do sogro, o antropólogo e folclorista Manuel Diegues Júnior. Foi por meio da extensa coleção de discos dele que ela se encantou com Carmen Miranda e passou a dar mais atenção às audições das músicas de João de Barro (também conhecido pelo apelido de Braguinha).

>> A dobradinha formada por Vento de Maio e Nara trazia uma mensagem implícita: Nara começava a gravar o que bem entendesse, sem a obrigação de seguir tendências, apontar inovações ou criar grandes expectativas. O descompromisso com um certo status no cenário musical começava a dar o tom e os repertórios listavam gêneros e compositores com os quais simplesmente ela mesma se identificava desde que começara a carreira de cantora. Que estaria prestes a ser encerrada de forma quase abrupta, aliás.

>> A superexposição provocado pelo sucesso astronômico de “A Banda” apresentou a Nara um lado nada agradável da fama. Ela simplesmente não suportava fazer shows e turnês seguidamente, participar de programas de colegas na TV, receber pessoas no camarim e dar autógrafos. Além da agenda popstar que ela precisava engolir goela abaixo, ainda via a TV Record, a quem estava vinculada artisticamente sob contrato e salário, incentivar ainda mais um estúpido racha na música brasileira (a proteção da pureza da MPB versus a invasão de ritmos e instrumentos estrangeiros) quando na verdade tudo deveria ser simplesmente música, sem restrições ou limites, dentro de um mundo cada vez globalizado. Para completar, o casamento com Cacá ainda lhe apressou a vontade de ser mãe, já cativada desde a entrada na vida adulta. Isto, porém, seria algo incompatível com a liturgia imposta pelo mercado. Tudo o que ela sonhava era ter a possibilidade de passar as tardes em casa tranquilamente ou poder andar na rua como todo e qualquer anônimo. A partir de então, decidiu diminuir o ritmo da carreira.

>> No começo de 1968, porém, a atmosfera política no Brasil tornou-se efervescente. Nara se viu diante de um novo dilema ao voltar da lua de mel em Nova York: como ela poderia passar uma tarde fazendo tricô em casa enquanto estudantes e militantes contra a ditadura militar apanhavam nas ruas? O presidente Costa e Silva agora intensificava a violência armada contra os opositores do regime – o que resultou na morte de um estudante secundarista no dia 28 de março. Nara, inflamada, passou a conclamar publicamente os artistas a se mobiliarem para boicotar a tentativa dos militares de impor propagandas positivas. Na Passeata dos Cem Mil, convocada por lideranças estudantis, ela puxou a manifestação logo à frente dela, ao lado de Cá, Chico, Caetano, Nana Caymmi e representantes de outros setores da sociedade. Como este evento se transformou na maior manifestação popular de resistência, o governo respondeu dias depois proibindo qualquer outra iniciativa semelhante em todo o país. Seria apenas uma prévia do que viria a ser o AI-5, que em dezembro fechou arbitrariamente o Congresso, cassou direitos políticos, promoveu intervenções em estados e municípios, criou uma cruel censura à imprensa e às artes e prendeu muita gente contrária ao regime.

>> Quando Gil e Caetano vieram com a proposta da criação de um movimento novo que pudesse romper com as amarras criativas da música nacional e apontar novos direcionamentos, Nara, amante de boas novidades e ousadias, comprou na hora a ideia da Tropicália. Contudo, não quis estar diretamente vinculada como uma artista de frente da mesma. Aceitou o convite para participar do disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circencis, lançado em julho de 1968. Mas com apenas uma faixa, sem dar entrevistas como cabeça do levante ou mesmo ter seu nome vinculado diretamente a ele. O bolero “Lindoneia” foi composto pelos dois pedidos de Nara para ela gravá-la neste álbum. A cantora ficou tão impressionada por um quadro do pintor Rubens Gerchman, chamado Lindoneia ou a Gioconda do Subúrbio, que pediu aos baianos uma canção para contar a história da personagem da serigrafia. Caetano, então, esboçou uma letra repleta de policiais, sangue e cachorros atropelados. O que acaba contrastando com o ritmo de bolero e a suave voz de Nara narrando melodicamente tudo isso.

>> A foto da capa do disco que reúne todas cabeças pensantes da Tropicália não teve um conceito pensado muito antes. Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, Mutantes, Torquato Neto e Rogério Duprat fizeram tudo como um happening, prática um tanto vanguardista para artistas populares brasileiros da época. Duprat conhecia o fotografo Olivier Perroy, que na época fazia trabalhos para a Editora Abril, situada também em São Paulo. A sessão foi marcada para a residência de Perroy, uma casa próxima à Avenida Brigadeiro Faria Lima, na altura do Esporte Clube Pinheiros. O local interno escolhido foi o jardim de inverno. Rita Lee e Guilherme Azevedo palpitaram nas roupas, com predominância das cores verde e amarelo Para a composição de um cenário tropicalista foram feitas algumas bananeiras de papel crepom, mas os artefatos acabaram descartados na hora dos cliques. O prazo curto para a realização das fotos impediu a ida a SP de Nara Leão e Capinan, que moravam no Rio. Os dois, então, acabaram representados por retratos emoldurados (o do letrista remetia ao dia da sua formatura escolar, na Bahia). Tom Zé segura uma velha valise para parecer que havia acabado de chegar do Nordeste (por sugestão de Araújo, que detonou o terno então usado pelo artista para ir até o local). Ele e mais os três Mutantes aparecem ao fundo, estando os irmãos a segurar seus instrumentos de cordas. No meio, em um banco, estão sentados Caetano (quase desaparecendo atrás do retrato de Nara), Gal e Torquato. Gil está bem à frente, sentado no chão, com a foto de Capinan ainda menino. À esquerda, também no banco, está Rogério Duprat na pose mais curiosa e aberta a interpretações de todas. No melhor estilo Marcel Duchamp, ele segura um grande penico, encontrado dias antes na casa de uma tia, como se fosse uma xicara de chá.

>> Para Caetano, a importância de Nara na gestação da Tropicália foi suprema. O baiano disse certa vez que sua presença no disco coletivo representava a realização do sonho inicial de Gil de que o movimento pegasse toda uma geração de músicos. Nara, por isso, representava a origem e a transição para além da bossa nova. Isto é, “a música brasileira moderna em pessoa”.

>> Quando a Tropicália chutou a porta do conservadorismo musical abraçando a influência de gêneros estrangeiros e o uso da guitarra elétrica em misturas sonoras com pitadas regionais de todo o país e se abraçou à Jovem Guarda na incorporação do rock, a cisão musical se agravou nos bastidores da própria TV Record, cujo dono incentivava as rixas desde que a audiência não fosse derrubada e as autoridades políticas não vissem maiores problemas. Na prática, dentro da emissora, isso significava uma coisa: uma grande rixa entre Nara Leão e Elis Regina. Uma simplesmente não suportava a outra. Nas reuniões entre direção e artistas, Nara dizia em alto e bom que, por ser contratada, faria qualquer coisa na emissora mas se recusava a ir ao novo programa comandado por Elis, o Frente Única da Música Brasileira – pois até já havia sido tratada com indiferença pela apresentadora de O Fino da Bossa. Esta, por sua vez, mostrava maior interesse em barrar a ascensão da Jovem Guarda e da absorção das americanices em nossa música do que comprar briga direta com os militares. Em entrevista dada à revista Intervalo assim que voltou de férias da Europa e deu de cara com a brusca queda de audiência de seu show televisivo e o fenômeno Jovem Guarda, Elis foi explosiva nas palavras. “Eu esperava encontrar o samba mais forte do que nunca. […] O que vi foi essa submúsica, essa barulheira que chamam de iê-iê-iê, arrastando milhares de adolescentes que começam a se interessar pela linguagem musical e são assim desencaminhados, Esse tal de iê-iê-iê é uma droga, deforma a mente da juventude”, disparou a gaúcha assumindo uma posição que representava para as artes o mesmo conservadorismo preconceituoso e inflexível que os militares haviam armado no poder. Em constantes entrevistas a revistas do eixo Rio-São Paulo, as duas também viviam trocando farpas.

>> Apesar da diminuição do ritmo, ele fez um novo disco em 1968. Também chamado Nara, mas desta vez com uma fotografia sua na capa, o trabalho agora privilegiava as composições de Caetano Veloso (três no total) e privilegiava letras que pudessem ser ligadas ao alto grau de insatisfação com a política do momento no país. Ela regravou “Mamãe Coragem”(de Caetano e Torquato, lançada originalmente pelo baiano no disco-manifesto do ano anterior). Da mesma dupla tropicalista, pinçou “Deus Vos Salve Esta Santa Casa”. Já em “Infelizmente”, de Lamartine Babo e Ary barroso, a crítica à conivência das elites era bastante explícita. A Tropicália também se fazia presente na ficha técnica, com Manoel Barenbein assinando a produção e o maestro Rogério Duprat creditado nos arranjos e regências.

>> Depois de dois meses presos, Gil e Caetano negociaram a saída do cárcere em troca de um exílio voluntário em Londres, não sem antes passarem por uma espécie de prisão domiciliar em Salvador, com a proibição da realização de concertos e entrevistas à imprensa. Antes do embarque para a Inglaterra, em julho de 1969, a dupla foi à casa de Nara e Cacá, no bairro carioca Jardim Botânico. Na noite da despedida, Gil apresentou ao casal um novo samba, que compusera no voo do Rio para a Bahia, após deixar o quartel do exército no qual ficara confinado, situado no bairro de Realengo. Apesar da exaltação da beleza da Cidade Maravilhosa, a expressão que dá título à canção, “aquele abraço”, retirada do bordão de um programa de humor da TV, pode ser interpretada como uma metáfora irônica a respeito da resiliência diante das constantes torturas psicológicas que sofrera quando estava preso. Nara chorou ao ouvir a novidade de Gil, que estava lá para alertá-la de que ela, também, poderia vir a ser presa a qualquer momento porque ouvira o nome dela por várias vezes durante os interrogatórios em Realengo.

>> Gil não foi o único a ouvir o nome de Nara Leão nos interrogatórios militares. Cacá também foi perguntado várias vezes sobre sua esposa, assim como outros colegas seus de Cinema Novo. O diretor ainda teve e prestar depoimentos em três inquéritos sob a alegação de “promoção de atividades subversivas”. Os algozes ainda fizeram uma advertência direta: a paciência das autoridades havia chegado ao fim com Nara e era melhor que ele mantivesse a esposa “quieta e cuidando da casa”. O Departamento de Ordem Política Social (Dops), órgão bastante utilizado para fortalecer a repressão durante os anos de chumbo da ditadura, continham uma informação importante: os militares preocupavam-se bastante com o poder de liderança da cantora, que ainda era apresentada nos relatórios como “fundadora da entidade Comando dos Trabalhadores Intelectuais, entidade criada nos moldes das demais de esquerda”. Na pasta com o seu nome, um destaque para o recorte da polêmica entrevista dada ao Diário de Notícias em 1966, na qual Nara defendia a extinção do exército, acusando-o  de incompetência e inutilidade, e a cassação dos políticos que vieram a ocupar o poder após o golpe de dois anos antes. Chico Buarque, por sua vez, emitiu outro importante alerta à amiga em janeiro de 1969, antes de partir para a Itália, também em exílio. O compositor “favorito” de Nara nos últimos anos avisara que, caso ocorresse a prisão dela, havia a possibilidade de violência físicas e um grande risco de norte. Um dos torturadores dissera aberta e tranquilamente a ele que esperava com ansiedade o dia em que iria enfiar um ferro quente em sua vagina”.

>> Horrorizada com toda esta situação de apreensão e ameaças, Nara apressou as gravações do novo álbum, Coisa do Mundo (1969), mas não se preocupou com a censura. Saía da visão de sua bolha Zona Sul em “Coisas do Mundo, Minha Nêga” (de Paulinho da Viola), retomava o regionalismo no xote “Pisa na Fulô” (de João do Vale, com quem dividira a cena no show Opinião) e no frevo baiano “Atrás do Trio Elétrico” (de Caetano). Em “Tambores da Paz”, de Sidney Miller, ela alardeava sua esperança por um futuro melhor. Já na versão brasileira de “La Colombe”, feita por ela mesma para os versos originais em francês do belga Jacques Brel, ela evitava maiores rodeios (“Como viver um novo dia/ Se os amigos não voltaram/ Onde encontrar alegria/ Que fazer desse amanhã”). Em outra versão dela para o nosso idioma assinada, Nara volta a acionar seu rolo compressor verborrágico direcionado à elite brasileira e sua vidinha modorrenta (“Uma caixa bem na praça, uma caixa bem quadradinha/ Uma caixa, outra caixa, todas elas iguaizinhas/ Uma verde, outra rosa e uma bem amarelinha/ Todas elas feitas de tic tac, todas elas iguaizinhas / As pessoas dessas casas vão todas pra universidade/ Onde entram em caixinhas quadradinhas iguaizinhas/ Saem doutores, advogados, banqueiros de bons negócios/ Todos eles feitos de tic tac, todos, todos iguaizinhos/ Jogam golfe, jogam pólo, bebendo um bom martini dry/ Todos têm lindos filhinhos bonequinhos engomadinhos/ As crianças vão pra escola, depois pra universidade/ Onde entram em caixinhas e saem todas iguaizinhas/ Os rapazes ficam ricos e formam uma família/ Todos eles em caixinhas, em casinhas iguaizinhas/ Uma verde, outra rosa e outra bem amarelinha/ E são todas feitas de tic tac, todas, todas iguaizinhas”). Detalhe é que a canção original, “Little Boxes”, fizera bastante sucesso anos antes na vozes do cantor folk Peter Seeger, especialista em profundas críticas sócio-econômicas durante o sombrio período macarthista dos Estados Unidos.

>> Enquanto Nara gravava Coisa do Mundo, Cacá terminava as filmagens de Os Herdeiros. Quando o filme ficou pronto, não conseguiu lançá-lo: a censura impediu que entrasse em cartaz, interditando a obra. Apesar de seguidas viagens a Brasília, não obteve sucesso em suas tentativas de liberação da história, que narra de forma teatral, a épica saga de uma família brasileira e as relações de seus membros com os diferentes governos nacionais compreendidos entre a revolução de 1930 e o golpe militar de 1964. Diegues, então, ativou amigos italianos – entre eles o diretor Bernardo Bertolucci – para inscrever seu longa no Festival de Cinema de Veneza. Desta forma, não apenas seu filme poderia ser exibido – mesmo que longe do país natal – como também o casal poderia facilmente sair do país sem sofrer sanções mais violentas por parte dos militares.

>> Em entrevista concedida ao Pasquim e publicada em agosto de 1969, Nara Leão anuncia que estava encerrada sua carreira de cantora.

>> Cacá e Nara embarcaram para Veneza no fim de 1969. Por lá ficam quatro meses, seguindo depois para Paris. Na capital francesa, passam a viver uma vida cotidiana longe da fama, em um apartamento alugado próximo à Universidade Sorbonne e com muitos amigos (também exilados) ao redor. Ela se depara com uma cidade que considerava mais provinciana e conservadora, se comparada ao Rio de Janeiro. Apesar do tédio recorrente, conseguiu viver a vida cotidiana que tanto almejava: enquanto o marido trabalhava na televisão francesa, ela ia ao supermercado, pagava as contas, cuidava da limpeza da casa e ainda se descobriu uma cozinheira de mão cheia. Seus pratos recebiam elogios da intelectualidade parisiense. Sua feijoada conquistou em cheio o coração – e o estômago – do escritor colombiano Gabriel García Márquez, que vivia em Barcelona e frequentemente ia à França.

>> No dia 28 de setembro de 1970, na clínica Château Belvedere, em Boulogne-sur-Seine, nascia a primogênita do casal, Isabel. “Nenhum take de Godard valeu o que vi. É a coisa mais bonita do mundo”, declarou o pai sobre o nascimento da filha, quando entrevistado no local por uma revista brasileira. Entre as recomendações do pediatra estava a de não amamentar o bebê à noite e, caso houvesse algum choro de fomo nesse período, que o casal tomasse calmante e pegasse no sono, ignorando a filha. Nara, de temperamento indomável, contrariou a orientação, lógico. Amamentava Isabel pelo menos três vezes no período noturno. Já estava na hora de pensar em voltar ao Brasil…

>> Antes de fazer as malas, porém, Nara topou uma proposta feita por André Midani: gravar um novo disco em Paris mesmo, agora a obrigação de cumprir agenda de shows e entrevistas. A Phillips acionou o estúdio da Polydor na capital francesa e liberou a cantora para que ela registrasse tudo o que quisesse. Para surpresa do chefe, ela encampou um projeto de revisionismo da bossa nova. O repertório era formado por 24 clássicos do gênero, só músicas que ela nunca deixou de cantar e amar. A maioria com a assinatura de Tom Jobim e mais algum parceiro (como Vinícius, Chico, Newton Mendonça, Dolores Duran e Aloysio de Oliveira), algumas outras canções de Baden Powell, Johnny Alf e Carlos Lyra. A antologia, dividida em dois LPs, chamou-se Dez Anos Depois, ganhou produção do velho amigo Roberto Menescal (que dividiu os arranjos com Luizinho Eça e Rogério Duprat), participação de conhecidos instrumentistas bossanovistas e a sua versão de faixas como “Garota de Ipanema”, “Corcovado”, “Samba de Uma Nota Só”, “Desafinado”, “Chega de Saudade”, “Por Toda Minha Vida”, “Retrato em Branco e Preto” e “Insensatez”. Era, enfim, o tão sonhado disco que deveria ter saído quando Nara ainda estava na gravadora Elenco se ela não tivesse enfiado na cabeça o fato de criticar o momento político pós-golpe militar com sambas de cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Keti. O álbum duplo chegaria às lojas de todo país no final de 1971.

>> O retorno de Nara à bossa nova não foi sua única incursão fonográfica de 1971. Ela também encorpou a lista de intérpretes selecionados pela Phillips para gravar a coletânea do autoexplicativo título Os Maiores Sambas-Enredos de Todos os Tempos. Seu samba foi o 1971 da escola Império Serrano, chamado “Nordeste, Seu Povo, Seu Canto, Sua Glória”. Ainda gravou um compacto duplo com quatro versões em português de músicas estrangeiras. A principal era a letra assinada por Cacá Diegues para “Father and Son”, de Cat Stevens. As outras foram feitas por ela para obras do egípcio Georges Moustaki, sucesso no território francês durante a década de 1960.

>> Com o mês de abril de 1971 veio também a volta do casal ao país, agora já com a ditadura pegando leve na perseguição aos artistas. E também uma notícia repetida. Sete meses depois do nascimento de Isabel, Nara estava grávida de novo. Só que a gestação teria complicações. Ela não quis abrotar, mesmo que isso pudesse vir a significar algum risco dela e do bebê morrerem. Por isso chegou a passar os três meses finais imóvel na cama, para evitar que a placenta se deslocasse novamente do útero. Dois dias antes de completar 30 anos, em 17 de janeiro de 1972, Nara deu à luz Francisco, no Cosme Velho, no Rio de Janeiro.

>> Cacá, por sua vez, achou o clima melancólico no Brasil ao retornar. Achava as obras artísticas tristes, pesadas, cinzentas por causa dos anos de chumbo do regime militar e da perseguição pesada aos artistas populares. Por isso tratou de fazer um filme que pudesse ajudar a recolocar o país de novo nos eixos da festa, da alegria. Convocou uma turma de amigos e rapidamente rodou um novo filme, chamado Quando o Carnaval Chegar, com roteiro assinado a seis mãos ao lado de Hugo Carvana e Chico Buarque. Quer dizer, não havia bem um roteiro, apenas um direcionamento da história. Isto ocorreu pelo fato de somente dois dos cinco atores do elenco principal serem de fato profissionais de ofício: Antonio Pitanga e o próprio Carvana. Como o restante vinha do terreno da música (Chico, Nara e Bethânia) boa parte do filme é preenchida com canções e coreografias improvisadas. Claro que o resultado passou longe de outras grandes obras do diretor e o musical naufragou nas bilheterias nacionais.

>> Com dois filhos bem pequenos para cuidar em casa, Nara queria mais era manter distância daquele frenesi que a carreira de uma estrela nacional lhe impunha no dia a dia. Contudo, não poderia se esquivar de polêmicas, ainda mais se estivessem relacionadas com a situação política e social do país. Por isso aceitou a missão de ser a presidente do júri composto pela Rede Globo para o VII Festival Internacional da Canção, que seria realizado a partir do mês de setembro no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. O objetivo da produção – uma das atrações armadas pela emissora para celebrar a chegada da transmissão em cores à televisão brasileira – era resgatar a essência dos grandes festivais da década passada, que revelava novos e ousados compositores para o primeiro escalão da nossa música popular. Por causa do AI-5 e de uma marcação cerrada da censura, que no ano anterior sugeriu o absurdo de que todos os inscritos no festival fossem fichados na sede da Polícia Federal em Brasília, para que houvesse “maior controle dos participantes”, muitos nomes de peso (Tom, Vinícus, Chico, Edu Lobo, Paulinho da Viola, Egberto Gismonti) se negaram a participar de todas as edições seguintes. O chefão de produção e programação da Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, chamou o veterano da Record Solano Ribeiro para dirigir o festival e montou um time heterogêneo de peso para o júri. Entre os nomes, além de Nara, estavam o poeta e ensaísta Décio Pignatari, o maestro Julio Medaglia, o músico César Camargo Mariano, o radialista popular Big Boy, o pianista erudito João Carlos Martins, o psicanalista Roberto Freire e os jornalistas Sérgio Cabral e Alberto de Carvalho. Este pessoal tinha a missão de escolher 30 canções entre as 1912 inscritas para o evento. Solano, que havia passado os últimos anos em Londres sem querer se submeter aos caprichos dos militares, aceitou retornar ao Brasil com duas condições: não dar um tom político morno ao evento e não armar um circo simplesmente para encher os cofres do governo – os militares queriam os royalties gerados pela venda de aparelhos de TV em cores, que certamente teriam um aumento nos números com aquelas novidades na grade da Globo, então já se consolidando como a grande emissora de todo o país. Sem direito a voto, Solano e Nara ficaram satisfeitos com a seleção dos jurados. Havia nomes conhecidos no meio dos artistas escolhidos, como Mutantes, Baden Powell e Originais do Samba. Havia muita gente nova e promissora como Alceu Valença, Raimundo Fagner, Renato Teixeira e os provocadores Sergio Sampaio, Raul Seixas e Walter Franco. Havia ainda um sério candidato a hit meteórico para alavancar a audiência: “Fio Maravilha”, samba composto por Jorge Ben em homenagem ao popular centroavante do Flamengo da época, que seria defendido por uma novata cantora de timbre grave e performance de palco incendiária chamada Maria Alcina. A letra de Ben exaltava as virtudes técnicas de um jogador de um clube de massa, o que poderia ser encarado pelos militares como uma propaganda de um Brasil feliz e colorido. Entretanto, era, na concepção de Solano, um mero “boi de piranha” para que pudessem passar as transgressões de Raul, Sampaio e Franco. A censura deixou clara a intenção de reprimir atitudes e gestos que confrontassem militares e famílias brasileiras, recomendando que cantoras não usassem decotes, roupas transparentes e vestidos que realçassem corpos voluptuosos. Mas os ensaios já deram o tom do que viria a ser aquele festival: Raul veio vestido de diabo amarelo, Maria Alcina de odalisca, os Mutantes de Mutantes; Hermeto Paschoal, por sua vez, deixou claro que pretendia concorrer com um arranjo especial para a música “Serearei”, que continha sons emitidos ao vivo por quatro galinhas e dois porcos. Durante as eliminatórias, a controvérsia maior ficou por cinta de “Cabeça”, poema concreto de Walter Franco que levava a música brasileira aos limites do experimentalismo, causando estranheza e choque na plateia. Mesmo vaiada do começo ao fim, os jurados classificaram-na para a etapa final. E mais: “Cabeça” fora indicada pelo mesmo júri para concorrer à etapa interacional do festival ao lado de “Fio Maravilha”. Os militares não engoliram a perversão da música brasileira como propaganda do país no exterior e, assim que começou a apresentação das catorze finalistas, exigiram sumariamente a destituição de Nara Leão da presidência do grupo e a substituição de “Cabeça” por outra concorrente. Nara ficou possessa, Solano também, o resto dos jurados idem. Todos resolveram pular fora do barco não sem antes ler de surpresa um manifesto demissionário ao microfone, para que todos pudessem saber dos motivos em alto e bom. Roberto Freire – que não conseguiu chegar à frente do palco com a tal carta em mãos enquanto a plateia cantava em uníssono a vencedora ao lado de Maria Alcina – acabou espancado por agentes do Dops, tendo costelas quebradas e sendo enviado ao hospital, onde passaria as semanas seguintes. Os jornais não publicariam a carta depois porque foram proibidos. A alta cúpula da Globo nada fez naquele dia a não ser obedecer às ordens do regime ditatorial.

>> A ingerência dos censores e a constante ameaça dos militares aos artistas enfureceu ainda mais Nara Leão. Apesar de frustrada com o papelão do festival, que serviu, no fim, como propaganda política de um governo autoritário, Nara ao mesmo tempo se encheu de coragem para retomar os concertos. Só que a seu modo, claro. Não como uma grande estrela da música, para grandes plateias. Nara queria cantar agora para os estudantes de graduação e participar do circuito de shows universitários. Apresentar-se para gente que, assim como ela, queria se ver livre das amarras da censura dos festivais. De qualquer forma, Chico sugeriu à amiga que ficasse bastante atenta porque ela seria seguida onde fosse, fosse em grandes cidades ou em locais mais afastados e menores. A vigilância e a pressão do governo havia aumentado. A insatisfação da classe artística também. Ainda mais depois que Elis Regina prestou-se ao papelão de aparecer na televisão um pouco antes, em abril de 1972, cantando o Hino Nacional na Olimpíada do Exército. Nem é preciso dizer, aliás, o que deve ter se passado no coração e na mente de Nara Leão depois deste episódio. A partir de então, Nara considerava Elis morta e vice-versa. A primeira passou a desprezar a outra publicamente quando se encontravam em emissoras e nos corredores da mesma Phillips.

>> Depois de toda a confusão do FIC, Nara Leão logo se envolveria em outro festival polêmico e prejudicado pela mão pesada da censura. A Phillips resolveu fazer um festival com seu superelenco de estrelas da música brasileira. Eram quatro noites no total, o suficiente para evitar que saísse alguma faísca em um possível encontro das rivais nos bastidores. A apresentação de Nara, inclusive, embora bastante temida por quem esperasse uma performance mais explosiva e panfletária contra o regime militar, sobretudo por estar na última das quatro noites. Foi tudo bem protocolar, resgatando “Diz Que Fui Por Aí” lá do início da carreira e a nostalgicamente ingênua “Quinze Anos”. Foi uma espécie de boicote ao próprio festival por causa do incidente ocorrido durante o show de Chico e Gil. A dupla combinou cantar “Cálice”, mesmo tendo sido a música censurada por causa da letra, que usava a palavra do título como um duplo sentido. E mais: tocaram a melodia apenas acentuando a expressão “cálice”. Com medo de que houvesse alguma represália dos militares, os próprios organizadores do evento cortaram, aos poucos, o som de todos os cinco microfones do palco. Furioso, Chico bradou em alto e bom som, para todo mundo ouvir, “filhos da puta”.

>> Nara abandonou a escola aos 15 anos de idade, estimulada pelo pai para que pudesse trabalhar e se dedicar aos estudos musicais. Com a maternidade e o misto de pausa e diminuição de ritmo da carreira, viu a oportunidade de voltar à sala de aula cair em seu colo. Ainda em 1973, se inscreveu no supletivo, para terminar o colegial em apenas um ano e poder fazer vestibular para entrar no tão sonhado curso de Psicologia. Tornou-se uma quase anônima na sala de aula, chegando de ônibus, carregando uma lancheira, usando lenço na cabeça e, de porte físico mignon e cabelo franjinha, aparentando ter bem menos do que seus trinta anos. Seus colegas mal sabiam que uma das mais famosas cantoras da música brasileira nos últimos anos estava sentada ali no meio deles. Apenas alguns professores a reconheciam. Parecia ter voltado aos tempos de Paris, quando andava livre, leve e solta pelas ruas.

>> Participou em 1974 de quatro discos da famosa Coleção Marcus Pereira sobre música folclórica brasileira, cantando canções nos LPs dedicados à Música Popular do Centro Oeste/Sudeste. 

>> Também em 1974 gravou o compacto simples a canção que, utilizada como senha, marcou o período da Revolução dos Cravos em Portugal. Seu nome, “Grândola, Vila Morena”, de autoria de José Afonso. Mais uma atitude de cunho político extremo em formato musical

>> Em 1975, lançava um novo disco, gravado na temporada anterior. Produzido por Menescal, Meu Primeiro Amor era mais um puro reflexo da maternidade. Trazia Nara sozinha no estúdio, tocando ao violão as mesmas músicas infantis que cantava em casa para Isabel e Francisco. Entre elas “Fiz a Cama na Varanda” e “Atirei o Pau no Gato” (mais uma música que, por sinal, viria a tornar-se bastante politicamente incorreta depois de ter sido gravada por ela).

>> Prestou vestibular para Psicologia, na PUC carioca. Foi aprovada. Passou os dois primeiros anos de graduação (1975 e 1976) dedicando-se integralmente aos estudos, dando mais uma grande pausa oficial na carreira.

>> A convite de Chico, participou em 1977 da gravação de seis faixas do disco Os Saltimbancos, adaptação em português da fábula infantil italiana de mesmo nome.

>> Enquanto estudava Psicologia, fez uma intimação a vários amigos: pediu para que lhe mandassem uma música inédita, que ela viria a gravar no próximo álbum, cada qual em dueto com o autor. Caetano Veloso, por exemplo, mandou “Odara”. Chico Buarque, “João e Maria”. Estas duas canções acabariam por se tornar grandes sucessos da MPB. Roberto Menescal, Edu Lobo, Erasmo Carlos, Tom Jobim, Carlos Lyra, Dominguinhos e Gilberto Gil são alguns dos nomes que também participaram do projeto batizado Meus Amigos São um Barato. O disco saiu em 1977.

>> Neste mesmo ano retornou aos concertos em uma bem-sucedida temporada na série Seis e Meia, do teatro João Caetano, no Centro do Rio de Janeiro. Ali dividia o palco com o amigo e mais novo parceiro musical Dominguinhos. Isto evoluiria para uma turnê nacional com a dupla sendo acrescida cos grupos Ritmos Nordestinos e Os Carioquinhas. O último, de choro, era composto por jovens talentos adolescentes da música instrumental. Um deles tinha 15 anos e era um craque no violão chamado Raphael Rabello, que ganharia projeção nacional nos anos 1980 e viria a morrer prematuramente em 1995, aos 33 anos, por causa do vírus HIV contraído por uma transfusão de sangue recebida após um acidente automobilístico.

>> Divorciou-se da Cacá Diegues também em 1977. 

>> Expert em provocar polêmicas com seu repertório musical, em 1978 acumulou mais uma, lançando um disco inteiro com obras assinadas pela dupla Roberto e Erasmo Carlos. Nara Leão, com E Que Tudo Mais Vá Para o Inferno não só se rende de vez ao poder do rock da Jovem guarda como também à fase mais popular e romântica de Roberto, como também compra mais briga com velhos amigos da MPB. Gente como Edu Lobo e Dori Caymmi não consegue engolir o fato dela entoar “versos de motel” de canções como “Proposta” e “Cavalgada”.

>> Depois de um disco com clássicos da MPB vertidos para o espanhol, voltou a gravar um álbum em português dedicado a obras de um autor. O escolhido, agora, foi Chico Buarque. Escolheu o título Com Açúcar, Com Afeto pela importância desta música em sua carreira. Mas ela não entrou no repertório, que traz pérolas como “O Que Será (À Flor da Pele)”,  “Homenagem ao Malandro”, “Trocando em Miúdos”, “A Rita” e “Olhos nos Olhos” e “Baioque”. Nas entrevistas dadas a emissoras de rádio e TV durante a divulgação do disco, em 1980, Nara começava a sentir-se mal, em estado de confusão mental, algumas vezes até soltando frases desconexas em inglês e português. Suspeitava-se que poderia ser consequência de uma queda, um ano antes, no banheiro de casa, quando sentiu forte tontura e desmaiou, batendo a cabeça no chão.

>> Depois de vários exames, foi identificada uma mancha no cérebro da cantora. Acionado de forma solitária pelo pai dela, o renomado neurocirurgião Paulo Niemeyer deu o diagnóstico a ele, sem rodeios: era um tumor que não poderia ser operado. Estava em uma parte sensível e que, caso fosse feita alguma cirurgia, poderiam ser desencadeadas graves consequências e a fala com certeza seria atingida. Não poderia ser estimado quanto tempo Nara ainda poderia ter  de vida. Poderiam ser apenas alguns meses ou vários anos. Tudo iria depender da evolução deste tumor. Jairo Leão guardaria tudo em segredo, sem contar à filha ou à família até não mais aguentar guardar o fardo. Aproveitou que estava sozinho em casa no dia 12 de fevereiro de 1984 e deu um tiro em si próprio. Antes, porém, instruiu o porteiro a não deixar mulher e as duas filhas separadamente pelo elevador do edifício. Deixou uma longa carta, lida dias depois por Nara e Danuza. Não existe até hoje uma informação oficial sobre o motivo do ato extremo, mas suspeita-se até hoje de um grande quadro de depressão motivado não apenas pela doença da caçula como também pela perda de grande parte da visão após cataratas nos dois olhos.

>> Recolhida em função dos recorrentes problemas de saúde, passou, em 1981, a ter aulas de violão com o jovem professor Almir Chediak, que depois viria a se dedicar badalados songbooks de famosos nomes da MPB. Nesta mesma época, gravou e lançou outro disco, Romance Popular, feito e produzido em parceria com Fausto Nilo e Raimundo Fagner. Além dos compositores, que cuidam da produção e do repertório, o LP conta com participações de Robertinho do Recife e Geraldo Azevedo e arranjos de músicos como seu amigo Menescal, Oberdan Magalhães, Lincoln Olivetti e Eduardo Souto Neto. Entre as faixas estavam “Traduzir-se”, “Laranja da China”, “Seja o Meu Céu” e “Bloco do Prazer”.

>> Apenas um ano depois voltou a lançar um disco, Nasci Para Bailar, com arranjos de João Donato e Antonio Adolfo (com quem assina a produção). Nesta época, namorava o músico gaúcho Kleiton Ramil. Por isso voltou a participar como cantora de um festival (a terceira e última edição do MPB Shell, da Globo), defendendo a música “Maravilha Curativa”, composta por Miltinho e o cunhado Kledir Ramil. Ainda em 1982, participou intensamente manifestações públicas que pediam eleições diretas para presidente no país e comícios durante o processo de reabertura politica. No show feito para lançar Nasci Para Bailar, retomou a parceria no palco com os Carioquinhas, agora com os músicos incorporados na Camerata Carioca, e incorporou ritmistas de samba, vindos do Bloco Cacique de Ramos.

>> A partir de 1984 passou a se dedicar mais a pequenos projetos e de curta duração. Minitemporadas, viagens a locais onde poderia sair e voltar de carro ao Rio de Janeiro, um novo programa de TV (agora na Bandeirantes), discos e shows tocando ela mesma o violão ou acompanhada quase sempre apenas pelo amigo Menescal. Com o álbum Abraços e Beijinhos e Carinhos Sem Ter Fim, retorna ao repertório da bossa nova. Em Garota de Ipanema faz o mesmo, agora colhendo frutos do sucesso no Japão – o projeto é gravado durante uma rápida passagem pelo oriente para alguns concertos e se torna o primeiro compact disc de um artista brasileiro.

>> Entre 1987 e 1989 gravou dois álbuns (Meus Anos Dourados e My Foolish Heart) somente com versões em português de obras clássicas da canção popular norte-americana, muitas delas com letras assinadas por ela própria. De novo, por conta desta escolha de repertório, voltou a receber críticas de defensores de um certo purismo da MPB.

>> A partir de 1976 agravaram-se os problemas de saúde provocados pelo tumor. Grande parte do tempo passou a ser destacada a tratamentos alternativos com bruxos e curandeiros, sem qualquer melhoria. Assim que termina as gravações de My Foolish Heart, em fevereiro de 1989, os sintomas passaram a ficar bem agudos e seu estado de saúde piorou rapidamente. Na noite de 18 de maio, após jantar na casa de Danuza, caiu e se debateu no chão até desmaiar. Levada para o hospital, não mais acordou. Morreu na manhã de 7 de junho, aos 47 anos. A irmã organizou um funeral discreto e rápido, com a presença de poucos amigos, como Nara gostaria.

>> Fernanda Takai começou sua carreira solo em simultaneidade ao trabalho com o grupo Patu Fu cantando canções espalhadas por toda a carreira fonográfica de Nara Leão. Lançado quinze anos atrás, Onde Brilhem os Olhos Seus ultrapassou a marca de cem mil exemplares vendidos no Brasil e ainda rendeu um DVD gravado nos shows dedicados à sua divulgação. Em depoimento dado ao Mondo Bacana, a cantora mineira contou brevemente a história que a levou a este trabalho. “Tudo começou com um e-mail do Nelson Motta dizendo que sempre se lembrava da Nara quando me via cantar. Contei que era das vozes que eu mais tinha escutado desde criança e que talvez fosse uma boa ideia a gente se lembrar da importância dela na música brasileira. Discos dedicados a compositores são mais comuns, os dedicados ao repertório e carreira de um intérprete são raros. E ela era uma mulher muito especial pela personalidade, pela qualidade do repertório e relações afetivas que construiu com um Brasil diverso. O álbum saiu em 2007, totalmente independente na época. Só depois foi relançado pela Deck e ganhou Disco de Ouro.”

>> Para marcar os oitenta anos do nascimento da artista, a Globoplay lançou em janeiro de 2022 a série O Canto Livre de Nara Leão. Dividido em cinco episódios, o trabalho documental tem a direção de Renato Terra, que vem se especializando em recontar através de depoimentos, imagens e sons de época a história da música popular brasileira – entre os títulos que assinou estão Uma Noite em 67Eu Sou Carlos Imperial Narciso em Férias. O doc – com quase quatro horas totais de duração – pertence ao núcleo de produção do programa de Pedro Bial na Globo e sua produção de conteúdo traz o nome de José Bial, filho de Pedro e Isabel Diegues, neto de Nara.

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