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Luta por Justiça

Hollywood volta a escancarar o racismo estrutural na sociedade norte-americana com cruel história verídica

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Texto por Maria Cecilia Zarpelon

Foto: Warner/Divulgação

Não é de hoje que o cinema escancara a profunda discrepância social decorrente do preconceito. Filmes como Histórias Cruzadas (2011), Eu Não Sou Seu Negro (2016) e Infiltrados na Klan (2018), são exemplos de produções audiovisuais iluminando questões que as pessoas preferem esquecer. Baseado no livro autobiográfico de Bryan Stevenson, este longa soa como algo que já foi feito antes. Longe de ser inovador, o drama jurídico Luta por Justiça (Just Mercy, EUA, 2019 – Warner) pode não passar a sensação de algo inédito, mas é urgente e mais necessário do que nunca.

Dirigido por Destin Daniel Cretton, Luta por Justiça é silenciosamente comovente e em nenhum momento esconde para que veio: escancarar o racismo estrutural enraizado em um sistema socioeconômico fomentado desde a escravidão, que ainda carrega as consequências do passado. Não é agradável, não foi feito para ser. Seu objetivo é justamente deixar o espectador desconfortável, revoltado, impotente e muitas vezes com vergonha, e é muito bem sucedido em passar sua mensagem. Reativa a discussão sobre a pena de morte nos EUA que, assim como todos os problemas, afeta, principalmente, os menos favorecidos.

A história acompanha a vida de Bryan (Michael B. Jordan), um advogado idealista recém-formado em Harvard que chega ao Alabama no final dos anos 1980 com o sonho de mudar o mundo. Seu objetivo é amparar prisioneiros condenados à pena de morte que jamais receberam a devida assistência legal. Junto à ativista social Eva (Brie Larson), ele funda uma organização que fornece representação legal a prisioneiros que possam ter sido erroneamente condenados e garante a defesa de qualquer pessoa no estado num caso de pena de morte. Nesse contexto, Stevenson não está apenas desafiando uma única concepção, mas também o profundo legado que a escravidão deixou no país. Um de seus primeiros casos é o de Walter McMillian (Jamie Foxx), condenado pelo assassinato de uma jovem branca de 18 anos. Conhecido pela família como Johnny D, ele, a princípio, recusa o auxílio de Stevenson, desesperançoso porque vários advogados prometeram a McMillian coisas que nunca cumpriram.

Mesmo o advogado sendo um dos protagonistas da história, por sorte essa não chega a ser uma cinebiografia. Ainda que inevitável a admiração pela coragem e dedicação de Stevenson, os espectadores não necessariamente sentem que o conhecem. Jordan o interpreta como um homem de postura heróica, cujas motivações e caráter jamais serão questionados. Mas esse tipo de personagem vem com restrições. Como resultado da clássica jornada do herói hollywoodiano – em que o personagem principal, honrável, passa por grandes dificuldades até alcançar o reconhecimento e prestígio –, o foco da história acaba permanecendo muito no advogado “salvador da pátria” e pouco em quem talvez merecesse mais atenção. Para além da falta de representatividade efetiva de papéis femininos na produção (como Eva, que não só carece de um arco próprio como parece que entra em cena com o único objetivo de enaltecer o protagonista) e os conflitos pessoais de Minnie (a esposa de Johnny D, interpretada por Karan Kendrick), que, por sua vez, não são abordados ou desenvolvidos em um certo ponto da narrativa, é Stevenson quem recebe consolo de Johnny D e não o contrário. Além disso, ele nem sempre é marcante. Todos seus conflitos internos são anunciados por meio de discursos por vezes exagerados e momentos carregados de trilha sonora.

O roteiro propositalmente acessível de Cretton e Andrew Lanham deixa clara a denúncia contra as injustiças institucionalizadas na sociedade norte-americana e a real emergência no combate ao racismo enraizado em um país que se autoproclama “país de oportunidades iguais”. Seus momentos mais notáveis – além da excepcional atuação de Jamie Foxx e Rob Morgan como Herbert Richardson, outro preso à espera da execução – está nos toques poéticos mais sutis, nos silêncios que permitem com que a dor e o sofrimento quebrem a quarta barreira e cheguem até o espectador como um soco no estômago. O longa é salvo de ser um drama burocrático de tribunal quando sua vitalidade aparece, ironicamente, nas cenas do corredor da morte, quando é aprofundado pelas fortes performances de Foxx e Morgan, ainda que fraqueje na abordagem dos supostos crimes de Herbert e Anthony (O’Shea Jackson Jr). Mesmo que Foxx pareça subutilizado, o ator transmite a vulnerabilidade do personagem, sua essência, sua raiva, com pequenos e sutis gestos, deixando as cenas emocionais ainda mais marcantes. Mas é Morgan que causa maior comoção. Seu personagem é um veterano de guerra com TEPT (transtorno de estresse pós-traumático) que não nega seus atos e a mistura de dor e sofrimento que ele sente é devastadora. 

Tentando manter-se fiel aos fatos reais, Cretton opta por permanecer dentro de limites bastante convencionais, com planos e estratégias narrativas comuns. A obra não pode ser considerada uma produção tecnicamente impressionante. É o clássico case de quando a mensagem se sobressai à forma. O cineasta decide-se pelo seguro, mas consegue apresentar um filme forte e comovente por conta da brutalidade de sua história verdadeira. É uma narrativa admirável, mas cinematograficamente limitada. Se tivesse sido mais ousada, mantendo a complexidade das cenas do corredor da morte, o resultado poderia ter sido uma obra extraordinária em todos os sentidos.

Luta por Justiça é construído para reter o público dentro de uma história que seria cruel demais para lidar. Felizmente, o filme não é uma simples declaração de que o racismo deve acabar. É uma sufocante e brutal representação, profundamente comovente, do trauma vivido pelas vítimas e praticantes desse preconceito. Mais do que constatar um fato ocorrido na história, confronta posições e ideais sociais. Nunca se fez tão necessário falar sobre os tabus que a sociedade quer esquecer. É no silêncio que a intolerância se torna normal. Por mais que a produção retrate um episódio do passado, infelizmente ela encontra diálogo direto com a nossa atualidade.

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