Music

Phil Spector – Parte 2

Oito canções essenciais do genial e controverso produtor que criou o wall of sound e revolucionou a música pop do século 20

Ronettes com Phil Spector

Texto por Abonico Smith

Foto: Avery/Redferns/Reprodução

Phil Spector morreu aos 81 anos de idade no último dia 16 de janeiro em um hospital de Los Angeles de complicações ligadas à covid-19. Ele cumpria, desde 2009, pena prisional pelo assassinato da atriz Lana Clarkson, cometido seis anos antes no interior de sua mansão nos arredores da cidade de Los Angeles.  O ato de feminicídio tornu-se o ápice uma carreira polêmica envolvendo confusões pessoais e genialidade profissional.

Ele foi considerado um dos principais produtores de toda a história da música popular do século 20. Começou na atividade ainda jovem, aos 18 anos de idade, enquanto dividia seu tempo como um dos músicos e vocalistas e trio Teddy Bears. Aos 20 tornou-se o mais jovem produtor de estúdio norte-americano e proprietário de um selo fonográfico. Com menos de 25, já enfileirava sucessos radiofônicos e vários compactos no número um das paradas semanais nacionais., tornando-se uma das grande sensações do pop dos anos 1960 e um dos grandes milionários do mercado fonográfico mundial.

Sua fama maior ficou em relação à criação de uma técnica revolucionária de gravação chamada wall of sound.  Consistia na tessitura de uma rede sonora composta por diversos instrumentos executados ao mesmo tempo. Não bastasse os tradicionais do pop – como guitarra, baixo, piano, bateria – havia ainda o acréscimo de muitas opções de cordas (violinos, violas, violoncelos), sopros (trompetes, trombones, saxofones) e percussões (bongôs, marimbas, tímpanos). Isto é, ele emparelhava um acompanhamento de rock a arranjos preparados para grandes orquestras. Para dar ainda mais densidade, empilhava o número dos mesmos instrumentos harmônicos. Não era raro vê-lo chamando muitos músicos para tocar o mesmo instrumento simultaneamente, como guitarristas, pianistas, violoncelistas, violinistas, saxofonistas. Toda esta massa, até então nunca utilizada em discos, provoca um impacto no ouvido. Surpreende, instiga, chacoalha e acostumava as pessoas mais desatentas a estabelecer novos parâmetros ao levar os limites sonoros a alguns passos bem a frente do usual.

Entretanto, ao mesmo tempo que via seu sucesso multiplicar fama e patrimônio, Spector também começava a se envolver em polêmicas pessoais ligadas a um comportamento excêntrico e errático. Gostava de comprar e portar armas e andava sempre com pelo menos uma a tiracolo. Também ficou notório pelo comportamento violento diante das mulheres, neuras pessoais (a ponto de chegar a sumir por dias enquanto desenvolvia algum trabalho com algum artista) e, claro, uso pesado de drogas.

Mondo Bacana condena a violência contra a mulher e também o comportamento agressivo e de ameaças. Entretanto, há que se lembrar sempre da genialidade musical do produtor Phil Spector. Esta, sim, é a sua faceta que sempre ser sempre reverenciada e lembrada. Por conta de seu falecimento, listamos aqui oito trabalhos fonográficos essenciais do cara que deixou para a  História um grande traço revolucionário na música pop.

BEN E KING – SPANISH HARLEM (1960)

Assim que saiu dos Drifters, King confiou a uma experiente dupla de compositores e produtores que já havia trabalhado com ele nos discos do grupo vocal a estreia de sua carreira solo. Depois de escreverem dezenas de hits da década inicial do rock’n’roll (como “Hound Dog”, “Searchin’”, “Jailhouse Rock”, “Poison Ivy” e “Yakety Yak”), o letrista Jerry Leiber e o músico Mike Stoller passaram a produzir alguns discos para o selo Atco. Um ainda adolescente Phil Spector, que havia se iniciado recentemente no mundo da produção sonora e direção de um selo fonográfico, pediu para o amigo Leiber para participar de sessões de gravação como guitarrista para adquirir experiência no dia a dia dos estúdios. Não só participou de diversos álbuns (Drifters incluído) como ainda ganhou cancha suficiente para assumir pré-produções. No caso desta nova fase de Ben E King aconteceu isso. Aos vinte anos de idade, Spector compôs a canção “Spanish Harlem” e ainda pilotou as demos que viriam a dar forma aos registros oficiais do novo vocalista solo. Na criação da canção, já mostrava habilidade na métrica melódica, encaixando charmosos versos ternários (isto é, valsa) no tradicional compasso quatro por quatro da música pop. No arranjo mais cru, moldou os passos iniciais da deliciosa rumba e o irresistível riff delineado pela marimba. No disco – tanto no compacto (de dezembro de 1960) quanto no álbum (lançado no ano seguinte) – os créditos de arranjo e regência saíram para o maestro Stan Applebaum (também havia cordas e um proeminente saxofone) e a autoria da canção para Phil e Jerry (que escreveu a letra). Mas ali já dava para sentir o passo inicial do que viria a ser uma gloriosa e criativa carreira musical de Spector nas produções daquela década. Para quem gosta de curiosidades e coincidências, o trio vocal feminino Ronettes – que anos depois daria a ele o megahit “Be My Baby” e sua futura esposa, Ronnie – era oriundo da área nova-iorquina chamada de Spanish Harlem.

CRYSTALS – HE HIT ME (AND IT FELT LIKE A KISS) (1962)

Canção bastante polêmica. Para muita gente, pode soar uma glorificação da violência contra a mulher em um relacionamento sexual. Outros, no entanto, consideram um cru e cruel retrato da realidade que pode levar a música ao status de instrumento transformador da sociedade ao alertar para que casos semelhantes não ocorram mais daqui para a frente. A letra é brutal e mostra como a protagonista acaba tolerando as inadmissíveis atitudes do companheiro ciumento por se sentir emocionalmente vinculada a ele, apesar de tudo. Criada por uma dos mais badaladas duplas de compositores do conglomerado Brill Building, Gerry Goffin e Carole King, a música teve inspiração em uma história real, mais precisamente na babá do casal, que era frequentemente agredida pelo namorado. Nas mãos de Spector, o arranjo feito para a gravação do grupo vocal feminino Crystals, tudo ficou ainda mais intenso. De cara, a introdução com baixo e percussão com notas em stacatto deixa um ar de suspense até a explosão chegar no clímax do crescendo musical, com direito a destaque à orquestração e até mesmo um pequeno ensaio de solo, algo incomum em se tratando de burilações de estúdio com a marca do produtor. Por causa de seus versos, já naquela época o single enfrentou sérios problemas de divulgação em rádios e vendas em lojas. De qualquer forma, nas décadas seguintes a canção caiu no gosto de bandas alternativas que a regravaram, como Motels, Hole e Grizzly Bear.

RONETTES – BE MY BABY (1963)

Para muitos, apesar de bastante simples tanto nos versos quanto na progressão harmônica, esta é a canção mais perfeita de todos os tempos da música pop. Começa com uma batida simples, básica, minimalista, que foi copiada pelas décadas seguintes por gente como Jesus and Mary Chain, Manic Street Preachers, Bat For Lashes, Billy Joel, Four Seasons, Meatloaf, Camila Cabello e Taylor Swift. Spector utilizou em estúdio músicos profissionais com quem costumava realizar suas sessões em Los Angeles, entre eles poderosos backing vocals como Darlene Love, Sonny Bono e uma então desconhecida Cher. Do trio nova-iorquino Ronettes, recém-contratado pelo produtor para o elenco de sua própria gravadora Philles, apenas Ronnie, com apenas 19 anos de idade, participou, cantando os versos de puro amor juvenil (sua irmã mais velha Estelle Bennett e a prima Nedra Talley sequer pegaram o avião para cruzar o país). O wall of sound construído neste arranjo inclui castanholas e orquestração, até então algo inédito nas faixas registradas por Spector. Quem criou a música foi o casal formado por Jeff Barry e Ellie Greenwich, uma das mais famosas duplas do Brill Building (são deles outros grandes hits daquele mesmo ano, como “Da Doo Ron Ron”, “Leader Of The Pack”, “Do Wah Diddy” e “Hanky Panky”). Phil abiscoitou um quinhão desta parceria por ter sido o grande amálgama da grandiosa sonoridade no estúdio (e também o dono da bola e do campinho!).

RIGHTEOUS BROTHERS – YOU’VE LOST THAT LOVIN’ FEELIN’ (1964)

Mais um exemplo de canção pop eficiente, agora com o tema clássico da dor-de-cotovelo e a parceria “dividida” entre Spector e outro casal clássico de compositores da Brill Building, Jeff Barry e Cynthia Weil. Com a letra trazendo a clássica estrutura de revezamento entre estrofe e refrão mais uma curta ponte instrumental perto do fim (e inspirada pela sequência de acordes de “Hang On Sloopy”), a gravação comandada por Spector é mais um exemplo da grandiloquência do produtor: aqui o wall of sound traz pianos, várias guitarras, baixo e bateria junto a orquestração de cordas, bongô, xilofone, tímpanos. O destaque aqui fica para a combinação dos timbres graves do baixo-barítono Bill Medley e do tenor Bobby Hatfield, que, incrivelmente, possuem uma grande extensão vocal e chegam a arriscar arrepiantes agudos no clímax do arranjo. Foi exatamente esta capacidade de ambos que causou espanto em Spector, quando este conheceu o duo durante uma ida a San Francisco com as Ronettes e voltou com um contrato assinado com os primeiros vocalistas brancos de sua gravadora Philles. Isto fez os Righteous Brothers serem chamados de blue-eyed soul, subgênero que ganharia mais popularidade a partir dos anos 1970. Lançado em dezembro de 1964, o single alcançou o topo das paradas americanas em fevereiro, permanecendo lá por três semanas. A gravação foi escolhida pela Biblioteca do Congresso Nacional dos EUA como uma das 25 obras fonográficas de maior representatividade histórico-cultural da sociedade estadunidense e que devem ser guardadas, mantidas e preservadas para a eternidade.

IKE & TINA TURNER – RIVER DEEP – MOUNTAIN HIGH (1966)

Assim como Phil Spector, Ike Turner também era uma criatura intragável em seus relacionamentos. Quando, nos anos 1960, foi casado com a então alguns anos mais jovem Tina, mantinha a cantora em um relacionamento abusivo, inclusive com o uso de violência física e moral, impedindo-a de assinar seus trabalhos profissionais apenas com seu próprio nome, garantindo a ele não apenas royalties como poder de decisão sobre tudo referente a ela. Este single feito para a Philles foi um bom exemplo disso, no qual Ike não contribui em absolutamente nada com a gravação, cantando ou tocando. Aqui, ao lado de um time preciso de músicos da Wrecking Crew, uma jovem Tina solta seu vozeirão, já prenunciando o furacão que viria a ser pelos palcos e estúdios, sobretudo quando fosse largar de vez o escroto cafetão musical que a controlava com rédeas curtas. O arranjo cresce junto com o gogó dela. A base de fraseado jazzy e o explosivo naipe de sopros tornam tudo irresistível. Para fazer a canção, cujo titulo utiliza metáforas geográficas para demarcar a intensidade de um amor, Spector recorreu de novo a Weil e Barry, com quem – de novo também – dividiu a parceria. Só que, apesar de toda a grandiosidade da faixa, ela não cumpriu o objetivo de emplacar nas paradas. Isto não apenas afetou o contrato dos artistas com o selo – que entregou a outra gravadora não apenas o passe da dupla como ainda os próprios direitos sobre o fonograma – como ainda provocou um impacto devastador no ânimo do produtor. Arrasado pelo fracasso, ele decidiu se retirar de suas atividades e iniciar um autoexílio do mundo artístico, que viria a durar até 1969 quando entraram em cena dois integrantes da então maior banda de rock do planeta.

PLASTIC ONO BAND – INSTANT KARMA! (1970)

A relação entre os Beatles já havia azedado completamente em 1969. Paul optou por se isolar em sua fazenda no interior da Escócia e escalou o sogro para ir a seu lugar nas reuniões sobre finanças e negócios com os demais membros e o empresário Allen Klein, que representava a trinca na Apple Records. George entregava cada vez mais elas canções para o repertório dos discos e mostrava publicamente sua insatisfação por ainda continuar com o espaço reduzido no número de composições escolhidas para cada obra. John , por sua vez, tinha mais interesse em passar mais tempo com o Yoko Ono do que com McCartney, Harrison e Starr : quando não a carregava para não fazer nada no estúdio durante as gravações (contrariando uma regra interna estabelecida previamente) largava tudo e partia para pequenas aventuras solo, como ficar nu dias e dias na cama (com ela ao lado), conversando com a imprensa de vários países, em campanha pela paz mundial. Se o ano havia sido turbulento, o ápice veio em setembro, quando comunicara, em off,  aos outros três seu desejo de não fazer mais parte do grupo. Isso resultou no inicio de carreira solo, com o lançamento de três singles no segundo semestre sob a assinatura da fictícia Plastic Ono Band (isto é, um time composto por Harrson nas guitarras e direção vocal, o alugo dos tempos de Hamburgo Klaus Voorman no baixo, Billy Preston no piano e Alan White na bateria), já que cláusulas contratuais o impediam de oficializar seu adeus e fazer qualquer outro lançamento musical que carregasse seu próprio nome. Para o último destes compactos, realizou um antigo desejo: contratou Phil Spector para produzi-lo, fazendo o excêntrico genial criador do wall of sound voltar três anos depois ao que sabia fazer de melhor, pilotado uma gravação em um estúdio. Para “Instant Karma!”, Lennon deu uma orientação simples a Spector: fazer a faia soar como se tivesse sido gravada nos anos 1950 para um disco da Sun Records (gravadora americana que revelou pioneiros do rock’n’roll como Elvis Presley, Carl Perkins, Johnny Cash e Jerry Lee Lewis). Perito nos botões da mesa, Phil apostou alto nos reverbs e meteu todo mundo dentro do aquário ao mesmo tempo para tocar junto. Por isso “Instant Karma!” soou tão visceral. Cansado das pirotecnias de gravação dos Beatles, John soltou o gogó com toda a força naquele acompanhamento cru e básico dos amigos. Combinava a letra furiosa e sarcástica, que seguia o discurso give peace a chance que ele vinha fazendo ao lado de Yoko. Lennon não se sentia mais um superstar, mas alguém com a vontade de que a humanidade evoluísse valorizando o brilho de cada pessoa comum que somos todos nós. O refrão direto e poderoso (“Well we all shine on/ Like the moon and the stars and the sun”) incentivou aquele soco no estômago para o despertar de consciência. Tudo muito cru e muito rápido – tanto que o disco estava à venda nas lojas em 6 de fevereiro de 1970, apenas dez dias após a música ter sido registrada em Abbey Road. E não por acaso este single preparou o terreno que viria a ter seu êxtase no primeiro álbum solo do já ex-Beatle, produzido por Spector e lançado em 1970, no qual o inglês mergulhou fundo nos efeitos da terapia do grito primal e libertou-se, de modo ainda mais arrebatador e explosivo, dos traumas do passado, incluindo as relações com o pai e a mãe, a fé e a religião e, claro, seu recente passado com os Fab Four.

BEATLES – THE LONG AND WINDING ROAD (1970)

Oito violinos. Quatro violas. Quatro violoncelos. Três trompetes. Três trombones. Duas guitarras. Catorze vozes femininas no coro. Somando tudo chega-se a 38 músicos. Todos sob a condução do maestro londrino Richard Hewson. Estes foram os recursos utilizados por Phil Spector nos overdubs desta faixa. A sessão foi realizada um ano depois da gravação feita em janeiro de 1969 por John, Paul, George e Ringo (e mais o convidado especial Billy Preston nas teclas do piano Rhodes) para o álbum Let It Be. À esta altura, os quatro já não se entendiam mais entre eles e o ponto final era iminente. De um lado, Lennon defendia os trabalhos solo feitos ao lado de Phil, que seria convidado para produzir também aquele que viria a ser o último disco lançado pela banda (John e George acabariam por estender aparceria com ele nas gravações de seus respectivos álbuns de estreia na carreira solo). Do outro, McCartney, o autor desta canção, não hesitava em demonstrar publicamente sua desaprovação pelo uso do wall of sound. Para o baixista, o mosaico sonoro desfigurou a beleza pop dos versos compostos ao piano em sua fazenda na Escócia. Ele só sossegou quando lançou em 2009 uma segunda versão do álbum, batizada Let It Be… Naked, apagando tudo o que fora feito por Spector para a Apple Records. Alguns fãs aprovaram a versão “crua”. Outros, no entanto, não abrem mão de ouvir o trabalho original com a mão do produtor americano. 

RAMONES – DO YOU REMEMBER ROCK’N’ROLL RADIO? (1980)

Depois de passar os anos 1970 se dividindo entre uma sólida parceria com John Lennon em seus discos solo e um comportamento errático com outros artistas com quem trabalhou (entre eles o também exbeatle George Harrison em seu primeiro voo solo, o álbum triplo All Things Must pass), Phil Spector achou nos Ramones o artista ideal para se reinventar. Fã de carteirinha do grupo punk de Nova York desde os primeiro disco, Spector foi chamado pelo quarteto para comandar End Of The Century, o quarto álbum da carreira e então a obra para qual havia mais orçamento destinado às gravações. Isso permitiu a Joey, Johnny, Dee Dee e Marky mergulharem fundo no louco universo de precisão absoluta e expansão sonora do produtor. A obrigação de repetir exaustivamente tomadas e mais tomadas até obter o registro perfeito abalou as estruturas emocionais do baixista e sobretudo do guitarrista, mais adepto à brutalidade sonora dos discos anteriores e que nunca hesitou em demonstrar publicamente sua irritação, a ponto de inventar histórias de que a banda teria sido mantida como refém por Spector com suas armas até conseguir acertar o ponto exato desejado por ele. No segundo single extraído desse disco, Phil consegue a proeza de levar o punk rock ao encontro do wall of sound, a ponto de conseguir desacelerar o BPM habitual dos Ramones e adicionar instrumentos completamente estranhos ao gênero, como órgão e saxofone. Na letra da música, o autor Dee Dee faz uma lista de artistas favorito e programas de rádio de TV que costumava acompanhar durante a infância e adolescência, vividas parte nos Estados Unidos e parte na Alemanha.

>> Clique aqui para ler o texto com um breve resumo sobre a suprema importância do trabalho de Phil Spector para a história da música pop

Music

Phil Spector – Parte 1

Produtor musical que revolucionou o rock e o pop morre aos 81 anos enquanto cumpria pena de prisão por feminicídio

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Michael Ochs Archives/Redferns/Reprodução

Morreu ontem, dia 16 de janeiro de 2021, o produtor musical e gênio Phil Spector. As fontes do Departamento de Correções e Reabilitação da Califórnia deram conta do falecimento pela manhã de domingo e disseram que a causa será determinada pela necropsia a ser realizada pelas autoridades do estado, mas sites como o TMZ já apontam complicações advindas da covid-19. Spector estava preso, acusado do assassinato da atriz Lana Clarkson, que foi alvejada por ele em sua mansão na madrugada de 3 de fevereiro de 2003. A condenação saiu apenas em abril de 2009.

Spector iniciou a carreira ainda quando estava no high school – o equivalente americano do nosso ensino médio – e produziu e gravou o primeiro sucesso com o grupo Teddy Bears, “To Know Him is To Love Him”. A partir daí, ele iniciou uma carreira brilhante como produtor de estúdio, criando e inventando vários efeitos e técnicas para obter novas sonoridades no estúdio, entre elas, aquela batizada de wall of sound. Isto consistia num arranjo específico de microfones e ênfase em instrumentos de harmonia, privilegiando a força de todos eles ao mesmo tempo, dando a sensação de arremessá-los nos ouvidos do público, criando a tal sensação de “emparedamento” sonoro.

Por conta disso, influenciou, produziu e gravou muitos artistas, de Righteous Brothers, Darlene Love e Ronettes a Beatles, John Lennon, George Harrison, Leonard Cohen, Tina Turner e Ramones. Sempre deixava sua marca característica nas gravações: a sensação de impacto advinda do uso dos instrumentos harmônicos, o que levava a experimentações com várias guitarras e vários pianos sendo gravados ao mesmo tempo, além do uso de orquestras e naipes de metal. Spector assinou, por exemplo, a produção de Let It Be, o último álbum lançado pelos Beatles, e sua presença divide até hoje os fãs. Muitos preferem a versão lançada nos anos 2000 como o título de Let It Be … Naked, que tira a presença dos naipes de orquestra e outros efeitos. Outros – eu incluído – preferem o original.

Brian Wilson, líder e mente brilhante dos Beach Boys, sempre se declarou fã do trabalho de Spector no estúdio, especialmente da técnica do wall of sound. Tal visão influenciou diretamente a produção de um disco-chave para a história do rock, Pet Sounds, lançado em 1966. Além disso, Wilson sempre declarou que “Be My Baby”, sucesso de 1963/1964 das Ronettes, trio vocal produzido por Spector, é a sua música preferida de todos os tempos.

Apesar de todo o sucesso e reconhecimento, Phil Spector era um homem de comportamento violento, fato notório mesmo antes das complicações penais por conta do assassinato do qual foi acusado em 2009. Ronnie Spector, ex-integrante das Ronettes e ex-esposa do produtor, sempre declarou os problemas que viveu enquanto esteve casada com ele.

Neste início de 2021 vai-se um gênio. Louco, controverso, violento. Mas um gênio.

>> Clique aqui para ler o texto sobre oito canções essenciais produzidas por Phil Spector

Series, TV

O Gambito da Rainha

Minissérie faz jus ao hype com dinamismo e uma cativante adolescente órfa que ganha o mundo através do tabuleiro do xadrez

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Netflix/Divulgação 

À primeira vista, O Gambito da Rainha (The Queen’s Gambit, EUA, 2020 – Netflix) pode não parecer ter o potencial de um hit. O trailer, mais focado em uma frase dita ao longo da série sobre machismo do que no enredo em si, engana. A produção da Netflix é uma surpresa positiva e se tornou a série limitada a mais assistida da história do streaming. O hype é justificável. O xadrez ganha vida nos sete episódios baseados no livro de mesmo nome de Walter Tevis. 

Beth Harmon (Anya Taylor-Joy) é levada para um orfanato após um grave acidente. Lá ela desenvolve a paixão pelo xadrez e um vício em calmantes. Ambos serão formativos para os próximos anos da jovem. Após ser adotada, Beth passa a ter como maior exemplo uma mãe amorosa, porém alcoólatra. Tomando seu primeiro drinque antes mesmo da maioridade, a menina não consegue escapar do abuso de substâncias. 

Ambientada na década de 1960, a série já ganhou pontos pelos acertos no setor de cabelo e maquiagem e pelo design de produção. O xadrez, obviamente, é o principal, mas é surpreendente como temas como identificação, família, saúde mental e solidão percorrem a história. A relação entre Beth e sua mãe adotiva (Marielle Heller, com quem Anya já havia trabalhado no longa-metragem Emma) é construída aos poucos, com a ajuda do xadrez e torna-se um dos elementos mais interessantes de assistir. A dinâmica, as conversas, as trocas de experiência são fascinantes. São duas mulheres que compartilham o amor e o vício. 

Para quem não é praticante, o xadrez pode ser um jogo chato, parado. A série encontra recursos de filmagem e montagem satisfatórios para quebrar a monotonia das partidas. Em alguns jogos, os diálogos quebram ou aumentam ainda mais a tensão. Ao longo da série, Beth enfrenta apenas uma jogadora mulher e todos os seus outros oponentes são homens. A atmosfera de “Clube do Bolinha” do esporte perdura até os dias de hoje. Enxadristas mulheres se manifestaram após a série estrear, afirmando que ainda são minoria e os desafios que Beth Harmon passou para ser aceita continuam atuais.

Anya Taylor-Joy é uma das melhores atrizes a surgir nos últimos anos. Ela, que já mostrou talento no horror em longas como Fragmentado e A Bruxa, em O Gambito da Rainha dá vida a uma complexa personagem que em muitos momentos fala mais pelo olhar. O tema do vício é delicado e a minissérie mostra responsabilidade ao retratá-lo, especialmente nos momentos mais críticos. 

O Gambito da Rainha tornou-se um fenômeno nessess últimos meses. É bem construído e não precisa forçar para engajar. O sucesso também é resultado de uma série de tentativas. Antes do contrato com a Netflix, já tentaram adaptar a história nove vezes – em 2008, o produtor Allan Scott queria que Heath Ledger fosse o diretor do então filme baseado no livro.

Em um ano tão atípico como 2020, uma série que dá destaque ao xadrez ganhou os holofotes e a produção fez jus ao seu hype. Logo de cara, afinal, é impossível largar da história de Beth Harmon, uma cativante menina órfã que encontra o vício, uma mãe e a redenção pelo esporte. 

Movies, TV

A Festa de Formatura

Com Meryl Streep e Nicole Kidman, musical queer e camp dirigido por Ryan Murphy é um convite à esperança por um mundo melhor após 2020

Texto por Flavio Jayme (Pausa Dramática)

Foto: Netflix/Divulgação

Responde pra mim: quantas vezes você assistiu a um filme com um sorriso permanentemente plantado na cara? Qual a última vez que você terminou um filme se sentindo leve, de alma lavada, acreditando que o mundo pode ser um lugar melhor? E quanto você acha que 2020 precisava de um filme assim?

Pois isso é A Festa de Formatura (The Prom, EUA, 2020 – Netflix). O musical dirigido pelo man-of-the-hour da Netflix Ryan Murphy que conta a história de uma garota lésbica que, impedida de ir ao baile de formatura da escola, recebe uma ajuda inesperada de astros decadentes da Broadway.

O filme, adaptado de uma peça da Broadway (sinta a ironia!) é estrelado com força, presença e de forma espetacular pela novata Jo Ellen Pellman, estreando em longas metragens como Emma, uma garota simples de uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos que vê seu sonho de felicidade no high school ir abaixo quando a preconceituosa presidente da Associação de Pais e Mestres decide que é melhor proibir a festa a deixar a garota levar a namorada como acompanhante. Enquanto isso, em Nova York, um grupo de atores da Broadway se depara com críticas nada enaltecedoras e decide que precisa de um “ato de bondade” para melhorar a imagem. Questão de minutos para que eles se deparem com a história de Emma e decidam que ajudá-la pode ser um ótimo ato de publicidade.

Precisamos lembrar que ainda estamos falando de Ryan Murphy. Então tudo em A Festa de Formatura é brega até a medula. Ou camp como se diz hoje. Números musicais ao mesmo tempo absurdos e encantadores, brilho por todos os lados, dança, coreografias… tudo absurdamente brega. Como o amor.

Claro que as performances de Meryl Streep e Nicole Kidman são um presente à parte. À vontade como poucas vezes, Nicole se deixa brincar em cada cena e Meryl Streep se mostra mais versátil do que nunca. Mas os holofotes mesmo são de James Corden e Jo Ellen.

A Festa de Formatura é o filme para lavar a alma do pesadíssimo 2020 que tivemos. Quando ele acaba, com suas superações, alfinetadas (e aí vai uma estrelinha a mais para o número musical sobre as regras da Bíblia), dramas e lágrimas, nos sentimos leves, felizes, acreditando que mesmo depois de tanta merda, o mundo pode sim ser um lugar melhor. Onde as pessoas podem se tornar seres humanos melhores, onde mães perdoam filhos, onde o preconceito é derrubado com um número musical, onde “a resposta para nossos problemas é sair cantando uma canção”, como diz uma das músicas do filme.

Além disso, o filme faz homenagens a outros longas e espetáculos musicais ou não. A cena com O Casamento do Meu Melhor Amigo e o número musical em homenagem a Chicago fazem a alegria dos fãs de cinema. Deixe-se levar, entre na onda, cante, dance, chore e se comova. A gente está precisando disso. E A Festa de Formatura veio pra nos ajudar a acreditar em um mundo melhor.