Um final de semana com grandes shows mais organização e estrutura invejáveis ao sul da ilha da capital catarinense

Texto: Luciano Vitor
Fotos: Frederico Di Lullo
Nos últimos dois anos, todo o país ficou órfão de todos os tipos de eventos culturais possíveis. Por causa da pandemia da covid-19, shows, peças de teatro, saraus, cinemas e outros programas artísticos foram proibidos. Com a retomada gradual dos eventos por todo país, os concertos foram retornando ao cenário em Santa Catarina. Um dos mais aguardados, O Arvo Festival, após cinco edições, trouxe de volta um calendário de com 26 atrações reunidas entre os dias 15 e 16 de abril. Puderam apreciar grandes shows e encontros em uma estrutura invejável e enxuta em Florianópolis.
Antes de qualquer menção aos shows, algumas linhas são necessárias para descrever o local, limpeza, organização, presteza, tratamento humano e principalmente o respeito à natureza. O local, o Sítio das Águias, fica no bairro do Campeche, sul da ilha da capital catarinense. O bairro é conhecido não apenas pela extensa comunidade de músicos, surfistas e pessoas que buscam uma qualidade de vida melhor que nos bairros mais centrais de Florianópolis. Não à toa, Campeche é local das melhores praias e pistas de skate da cidade.
Com essas referências, o local mesclou respeito a natureza, organização e muito artesanato presente. Com uma área respeitável de estacionamento (um pouco salgado, mas terceirizado, nada módicos R$ 40), o acesso aos shows era bastante fácil, logo ao lado do estacionamento. Utilizando materiais recicláveis em sua estrutura, bituqueiras artesanais espalhadas por todo o local. Nenhum estande vendia latas ou garrafas de bebidas alcoólicas: eram chopes outros tipos de bebidas e todas em copos retornáveis, também com opção de compra do próprio copo.
A organização do festival era tanta, que até espectador que não tinha como adquirir comida dentro do local e levou sua própria marmita, teve sua condição avaliada pela produção e, em questão de minutos, teve um voucher disponibilizado para se alimentar. O público trans e especial teve ingressos gratuitos disponibilizados antes dos concertos através das redes sociais, transformando o evento em uma verdadeira democracia de acessibilidade e acolhimento. Poucas vezes em mais de vinte anos de cobertura cultural, vi engrenagens humanas funcionarem tão bem e tão rapidamente para deixarem tudo dentro dos conformes. Dito isso, vamos a um resumo do que foram os dois dias.
O que chama a atenção, não apenas no Arvo mas em outros eventos de médio a grande porte, é a conexão do público mais jovem com veteranos da música brasileira. Dois deles eu não consegui ver, infelizmente. Uma foi Dona Onete, a “diva do carimbó chamegado”, que aterrissou direto de Belém, com sua malemolência, carisma e talento. O outro, o Bixiga 70, uma verdadeira instituição, veio com uma série de elogiados trabalhos com sua mistura de afrobeat, música latina e brasileira. Tocou faixas de álbuns como Ocupai, Quebra Cabeça e o homônimo Bixiga 70, que estão entre os mais representativos da música instrumental e são alvo da cobiça dos colecionadores de vinis.

Misturando rap, pop e tecnobrega, Potyguara Bardo trouxe seu disco Simulacre, para os palcos catarinenses. A múltipla artista de Natal detonou uma mistura de ritmos tipicamente brasileiros, letras escrachadas e uma estrutura minimalista, com mais guitarrista e DJ. Com figurinos roxos e fluorescentes, o trio atraiu basicamente, todos que ainda chegavam no local por volta das 18h do primeiro dia. Com pegada, histórias e conversas, a cantora cativou o público. Mostrou carisma, intimidade e deu muitas risadas. É um nome para ficar de olho na nova safra da música brasileira. Me lembrou muito o escracho de uma das bandas mais controversas da década de 1990, o Textículos de Mary, de Recife.
O aumento de músicos no palco, principalmente pela presença da sanfona, já chamava a atenção logo depois. Exatamente às 19h, a paulistana Mariana Aydar, pisou no palco. Com um figurino verde-amarelo, dentro de um vestido tubo, a cantora conquistou de cara o público. Com um set list calcado em Veia Nordestina, disco de 2019, o show foi ganho nos primeiros minutos. Com triângulo nas mãos, a cantora dominou a turba, trazendo de pleno abril um verdadeiro São João. Mas qual o problema se o carnaval deste ano foi realizado nesse mesmo abril? O repertório é conhecido do público, porém (e sempre existe o porém) a cantora ao abraçar um repertório mais popular corre o risco de encontrar a vala comum do dial das FMs atuais. É ruim? Depende do público que Mariana quer atingir. É o nicho onde tão bem trafega Seu Jorge, onde o mesmo consegue manter-se entre o cult e o popular? Ou onde se misturam Luan Santana e Anitta nas FMs? O limite é ínfimo e Mariana Aydar, que além de cantora é produtora e compositora, sabe bem onde quer chegar.
Uma preparação que estressa quem não conhece um artista é o início do show que leva mais tempo do que a plateia deseja. Mas quando são vistas nove pessoas no palco entende-se o porquê da demora. Foi assim no concerto seguinte. Daí veio uma mistura de Carnavais passados, música cubana, música indie, sopros de metais e o que tinha mais pela frente: Novos Baianos, Clube da Esquina e uma profusão de sons e ritmos em uma ebulição louca. Daí você se dá conta do porquê do nome da banda, porque a loucura é tanta e porque o show é catártico. Esta é uma banda pronta, que traz das suas referências uma atualização para os novos anos 2020. Ao beberem em fontes que envolvem Azymuth, Caetano Veloso, Chico Buarque, jazz brasileiro, Marcos Valle, esse pessoal consegue transmutar uma sonoridade para o século 21, tornando-se outra banda e, ao mesmo tempo, soar como algo inteiramente novo.
Julio Sechin, do Rio de Janeiro, é diretor de vídeoclipes de várias bandas e artistas. Tanto envolvimento trouxe naturalmente Julio para a ribalta. Ele faz pop, rap e funk para não iniciados. E encantou desde o primeiro momento no palco, com muita simpatia já se apresentando no sábado. Malemolência carioca à toda prova. E uma rara oportunidade de ver uma vertente atual que já fizera muito sucesso na década de 1990.
Depois veio Jean Tassy, de Brasília. Utilizando as bases do hip hop old school, ele consegue com um belíssimo background, trazendo suas letras para a atualidade. O problema é que as batidas soam muito repetitivas. Mesmo as letras sendo bem escritas, com conteúdo, esbarram no lugar-comum. Também notei a falta que uma backing vocal feminina fez ao show do rapper. Isso faria uma enorme diferença…
Quando a Aláfia subiu ao palco, passando um pouco das 20h, as estruturas mudaram! O caldeirão musical envolto em três belíssimos trabalhos lançados colocou fogo no parquinho. A mistura de afrobeat, soul, jazz e hip hop, tudo com muita negritude, não apenas eleva a sonoridade da big band paulistana. Transmuta o som a outro nível. Não foi apenas um show: foi O SHOW. Uma porrada que chegava como uma avalanche de cores, ritmos e aquela funkeada de primeira! O set list se dividu em três partes, tendo deixado a cereja do bolo para o meio. Com alguns ensaios ainda em São Paulo, Di Melo adentrou ao palco, colocando todo mundo para dançar ao som de “Kilariô” e “A Vida Em Seus Métodos Diz Calma”. Findando a participação especial do pernambucano mais manezinho que a cidade conhece, o som da Aláfia continuou reverberando no sul da cidade, trazendo não apenas os caminhos abertos, axé e muita luz no palco. Enquanto isso, um pé torcido me tirava do jogo bem mais cedo do que eu queria…
Agora que venha o próximo Arvo, já prometido para o mês de outubro!