Nova obra-prima de Hayao Miyazaki é uma fábula do Studio Ghibli com história coming of age sobre luto e o poder de laços sanguíneos e familiares
Texto por Andrizy Bento
Foto: Sato Company/Divulgação
Hayao Miyazaki já anunciou aposentadoria algumas vezes nos últimos anos. Quando alguns de seus fãs pensaram que sua retirada fosse definitiva, ele decidiu fazer um retorno em grande estilo com uma nova obra-prima do Studio Ghibli – que, inclusive, concorre ao Oscar de Melhor Filme de Animação neste ano. Aparentemente, O Menino e a Garça (Kimitachi wa dô Ikuru ka, Japão, 2023 – Sato Company) trata-se de uma despedida do cineasta e, conforme descrito pelo próprio, um legado para o seu neto. Fãs das animações do Studio Ghibli acreditam se tratar de uma carta de adeus.
Especulações à parte, O Menino e a Garça assume contornos de fábula para versar sobre o luto, transição e o poder dos laços sanguíneos e familiares. É uma alegoria do crescimento e amadurecimento em uma típica narrativa de formação, mas inventiva em sua abordagem, especialmente ao combinar mitologia, conto de fadas e viagem temporal.
A princípio, a animação guarda ecos de A Viagem de Chihiro. Porém, é mais uma história única contada por Miyazaki – afinal, um filme do cineasta nunca é apenas mais um. Nele, Mahito, um garoto de 12 anos que vive em Tóquio em tempos de Segunda Guerra Mundial e perde a mãe em uma tragédia consequente do conflito. Após esse evento, ele se muda para o interior do Japão com o pai, um empresário que presta serviços para o exército. Lá, o pai o apresenta à Natsuko, sua nova madrasta, que está grávida de seu meio-irmão.
Explorando a nova propriedade em que mora, ainda carregando uma melancolia inerente à perda de sua mãe e com visíveis dificuldades de adaptação – inclusive em se aproximar de sua madrasta – Mahito se depara com uma garça falante que o avisa que sua mãe ainda está viva; com uma torre misteriosa guardada por essa garça; e, para completar, com o súbito desaparecimento de sua madrasta. Ao adentrar a torre, descobre se tratar de um portal para outro mundo.
É interessante perceber que Mahito não é, de fato, um personagem carismático, embora composto de muitas camadas. Ele é atormentado, soturno e vive de cara fechada. Mas desperta o interesse do espectador ao dar vazão à sua natureza curiosa, tão característica de crianças da sua idade, e também porque há empatia com seu momento de dor, que o força a mudanças em sua vida (de cidade, escola e estilo de vida). Daí, a identificação natural com sua figura. Em contrapartida, o protagonista é coadjuvado por uma dezena de personagens carismáticos, como a própria Garça Cinza, a determinada Kiriko (em suas duas versões) e as criadas da mansão de Natsuko, a quem Mahito vê como suas avós.
O roteiro acerta principalmente ao desenvolver a relação do protagonista com a madrasta (que, convém grifar, também é sua tia!) de maneira sutil, sem lançar mão de diálogos expositivos e investindo em silêncios significativos e metáforas visuais. Esses recursos combinados não deixam evidentes, mas sugerem os sentimentos que um nutre pelo outro – mesmo na busca pela madrasta desaparecida em outro mundo, Mahito se refere constantemente a ela como “a mulher que meu pai ama”. Até que as emoções que norteiam o relacionamento se revelam nos entrechos finais.
A animação transita do traço mais realista ao surrealista, apresentando uma jornada a um universo fantástico, com um visual beirando o psicodélico, mas sempre se mantendo fiel ao viés humano, possibilitando ao espectador se identificar com a trajetória de amadurecimento e desapego de Mahito. A atenção aos detalhes e o cuidado com os movimentos são notáveis. A primazia técnica se estende para além de roteiro e visual, com uma edição de som que impressiona.
Primeiro filme de animação a abrir uma edição do Festival de Cinema de Toronto, onde fora apresentado em setembro de 2023, O Menino e a Garça, sabiamente, foge das armadilhas de dramas coming of age e dos clichês de viagens temporais, apresentando humor orgânico e pontual. O longa inicia trágico e devastador e termina emocionante e aquecendo o coração, da mesma forma que Meu Amigo Totoro e outros clássicos Ghibli.
Contos de suspense e terror teenager na Califórnia dos anos 1990 chegam à Netflix com carga dramática e esmero estético para fisgar os adultos
Texto por Taís Zago
Foto: Netflix/Divulgação
Os dez episódios da primeira temporada de The Midnight Club (EUA, 2022 – Netflix) são baseados nos contos de suspense e terror adolescente do autor Christopher Pike e em seu livro homônimo publicado em 1994. O showrunner e produtor Mike Flanagan, conhecido por sucessos netflixianos como The Haunting of Hill House (2018), The Haunting of Bly Manor (2020) e Midnight Mass (2021), mergulhou fundo no universo de Pike para, agora, presentear-nos com uma pequena surpresa neste halloween. Aliás, Christopher também participa como produtor executivo
Na Califórnia dos anos 1990 a jovem Ilonka (Iman Benson) acaba de fazer 18 anos. Seu “presente de aniversário” foi uma diagnose de câncer terminal de tireoide. Com isso, a moça ambiciosa vê todos seus sonhos de um futuro brilhante se desmancharem em frente a seus olhos. A única questão para ela se torna o tempo que ainda terá para viver. Sem perder completamente a fé na remissão da doença, ela descobre em pesquisas online (naquela internet discada pré-Wikipedia) a enigmática clínica para jovens com doenças terminais de Brightcliffe e acaba optando por uma internação ao invés de passar seus últimos meses em casa com seu tutor/pai adotivo.
Ilonka não conheceu seus pais biológicos e passou a vida sob a guarda do Estado. Novamente ela precisa se adaptar a uma rotina nova, e, pelo menos dessa vez, não vai estar sozinha. Junto a ela, compartilhando a mesma diagnose funesta, estão outros sete jovens: Kevin (Igby Rigney), Anya (Ruth Codd), Sandra (Annarah Cymone), Spencer (Chris Sumpter), Cheri (Adia), Natsuki (Aya Furukawa) e Amesh (Sauriyan Sapkota). Fora esses pacientes, os únicos a habitarem as dependências do casarão de Brightcliffe são o enfermeiro Mark (Zach Gilford, um veterano das produções de Flanagan) e a Dra. Stanton (interpretada por Heather Langekamp que muitos conhecem como a jovem sobrevivente no clássico A Hora do Pesadelo, de 1984)
Como forma de suportar os tratamentos paliativos e os dias longos e arrastados na residência afastada, os jovens “enganam” a morte ao se encontraram todos os dias à meia-noite para beber e compartilhar histórias de terror e suspense semificcionais que eles mesmos criaram. Assim surgiu o Midnight Club, cuja tradição remete aos antigos moradores de Brightcliffe no qual cada encontro é iniciado com um brinde àqueles que ‘já se foram, aos que agora estão, e aos virão’, sublinhando de maneira bittersweet a efemeridade da estadia dos pacientes na clínica.
Mike Flanagan é um especialista na arte de combinar terror com drama de uma forma que oscilamos entre jump scares e lágrimas de comoção. Uma mistura extremamente potente que não deixa ninguém insensível aos acontecimentos narrados. Somos sugados para dentro da história, sentimos medo, tristeza, empatia e ficamos forçados a refletir sobre a condição humana e a fragilidade de nossos corpos em contraste à força de nossos desejos. E essa mistura de sentimentos, quando ainda na adolescência, adquire dimensões dramáticas ainda maiores. Flanagan não nos poupa em nenhum momento. Destrói nossas esperanças para logo após acender uma pequena luzinha no escuro, em forma de um vagalume.
O esmero estético não é pouco. Os cuidados com a ambientação, com locações e figurinos nos transportam parta a metade dos anos 1990. Pensamos em Blair Witch Project, em seitas macabras, rituais proibidos, amores juvenis. O teenage angst encontra o verdadeiro angst. Aquele medo adulto da morte que, geralmente, esperamos sentir apenas nos últimos anos de uma vida bem vivida e rica em experiências. A garotada do Midnight Club não tem tempo a perder – querem amar, querem curtir, querem sentir. Em suas próprias palavras: “o que poderia ser mais assustador do que uma sentença de morte? Isso nós já temos”, afirmam. E isso abre uma infinidade de possibilidades criativas em um mundo de histórias onde a imaginação e a realidade se misturam. Onde o medo não é mais empecilho para quase nada. Principalmente quando se trata de resolver conflitos interpessoais e expor a verdade.
Mike Flanagan e a produtora Leah Fong formam uma dupla forjada num inferno pessoal que encontra em todos nós pelo menos um eco. A colaboração dos dois contribuiu (e muito!) para elevar a qualidade do gênero nas produções da Netflix que, muitas vezes, se parecem com mais com programas modelados para canais abertos, superficiais e sem restrições etárias visando alcançar o maior público possível. Então, The Midnight Club toca fundo. Apesar de ter a mira nos jovens, a série em nada se parece com produções típicas do gênero e é um prato cheio para adultos. Pelo menos para aqueles que ainda nutrem uma nostalgia por filmes do John Hughes ou pelo terror psicológico acima do mero gore. Também é um prato cheio para os saudosistas quarentões que, como eu, viajam no tempo ao escutar L7, Cypress Hill, Stereo MCs ou Blind Melon na trilha sonora.
Filme costa-riquenho reflete sobre a metamorfose na sexualidade de uma mulher aprisionada e isolada do convívio social
Texto por Taís Zago
Foto: Imovision/Divulgação
Em um vilarejo da Costa Rica, Clara vive com sua mãe e a sobrinha em um pequeno sítio um pouco afastado. A ela são atribuídos poderes de cura. A mulher de 40 anos vive uma rotina completamente isolada do convívio social e é superprotegida pelos seus familiares, que ainda a tratam como uma criança. O motivo atribuído para os cuidados e o seu isolamento seria uma suposta (e misteriosa) doença óssea que dificultaria os movimentos, exigindo cuidados constantes e o uso de coletes.
Clara, interpretada pela atriz e dançarina Wendy Chinchilla Araya, parece, a princípio, resignada à sua condição de vulnerável, consolo e companhia ela encontra nos animais da região, como a égua Yuca ou seus besouros de estimação, e na natureza. O mundo de Clara é somente dela e nele ela vive seus sonhos. Hordas de moradores locais e viajantes aparecem todos os dias para serem abençoados e curados por ela em uma sala com altares criados por sua mãe, uma senhora extremamente rígida religiosa.
Quando sua sobrinha, Maria (Ana Julia Porras Espinoza), planeja a celebração da sua Quinceañera, a tradicional festa de 15 anos para muitos países latinos, Clara começa, de forma tardia, e explorar sua sexualidade e a descobrir seu corpo. A chegada de Santiago (Daniel Castañeda Rincón) traz a ela a descoberta do primeiro amor, o que se torna o ponto culminante para a explosão dos sentimentos reprimidos durante toda a vida por Clara mediante o controle de sua austera mãe.
A roteirista Nathalie Álvarez Mesén faz com Clara Sola (Suécia/CostaRica/Bélgica/Alemanha, França, EUA, 2021 – Imosion) seu début como diretora de um longa-metragem e assina o roteiro junto com Maria Camila Arias. O trabalho de Mesén é primoroso ao ressaltar a angústia silenciosa de Clara com closes fechados. A natureza, como coprotagonista, preenche o vazio de uma vida com poucos encantos terrenos. As cores, os sons e a maravilhosa fotografia nos mostram a transição do conforto de Clara em sua solidão para a gradativa revolta e a curiosidade que cresce em suas entranhas a cada dia. Clara é sola, mas anseia deixar de ser.
Ao roteiro ficou a tarefa difícil de gerar empatia sem exagerar no tom do pathos. Os personagens recebem nuances que os deixam humanos sem cair em estereótipos exagerados. Todos têm seus momentos bons e ruins. A narrativa transcorre de forma lenta, talvez em alguns momentos até lenta demais, porém no conjunto isso não chega a atrapalhar ou interromper a fluidez dos acontecimentos.
O clima opressivo religioso, que gradualmente sufoca e cerceia as atitudes espontâneas e naturais humanas, é uma das críticas principais desse filme. Para os cosmopolitas de “nascença”, a obra pode até parecer um passeio em um passado distante, mas não a aqueles mais conectados com as realidades periféricas e rurais dos países latino-americanos. Clara Sola nos dá uma estranha sensação de familiaridade, principalmente nos tempos em que vivemos hoje.
Uso do jazz nos salões dos ricos mascara problemas de um roteiro que não sabe explorar o choque social da Nova York dos anos 1920
Texto por Luca Passos
Foto: Netflix/Divulgação
O jazz, um estilo musical essencialmente popular que emergiu das classes mais pobres e marginais da vida urbana estadunidense, surgiu de uma interseção cultural em que se encontravam os escravos e ex-escravos do sul do país e, com o passar dos anos, ganhou uma dimensão quase erudita, sendo aceito nos mais requintados salões e bailes das classes média-alta e alta daquele país. Passou a ser elegante ouvir música sincopada, ela se tornou o som oficial dos loucos anos 1920.
A atriz britânica Rebecca Hall (conhecida por Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen, e Homem de Ferro 3) faz sua estreia na direção com Identidade (Passing, EUA/Reino Unido/Canadá, 2021 – Netflix), que também foi escrito e produzido por ela. Baseado em um romance homônimo escrito em 1929 por Nella Larsen, o filme se desenvolve em um fim de ano nova-iorquino da mesma década. Depois de caminhar por uma das regiões mais abastadas da cidade à procura de um presente para seu filho, Irene Redfield (Tessa Thompson) se refugia da opressão urbana em um café num saguão de hotel e ali encontra Clare Bellew (Ruth Negga), uma amiga de sua infância que há muito não vê. A base da trama é o choque entre essas duas personagens. O termo usado como o título original se refere a um fato comum entre as pessoas negras durante a era em que imperava a lei segregacionista de Jim Crow nos Estados Unidos: muitas delas “se passavam” por brancos, ato que alterava substancialmente sua realidade social. Clare é uma mulher que se passa por branca e vive uma vida abastada, quase afastada da realidade. Irene, por sua vez, ainda vive no Harlem, bairro historicamente negro de NY. Por mais que pudesse se passar por uma branca, não o faz – pelo contrário, é ativa dentro da comunidade negra de sua região.
O primeiro reencontro entre as duas, com uma intimidade interrompida pelo marido de Clare (Alexander Skarsgård), um típico ricaço nova-iorquino racista alheio à origem de sua esposa, marca profundamente ambas as protagonistas. Acompanhamos a vida de Irene, pequenas amostras de seu dia a dia, sua relação com o marido Brian (André Holland), os dois filhos (Justus David Graham e Ethan Barrett) e a empregada, Zu (Ashley Ware Jenkins). A casa da família Redfield é grande e eles vivem relativamente bem, porém o incômodo de Irene se faz latente desde o começo. Na verdade, há algo que a tira da realidade, que a faz fixar seus olhos no vazio em diversos momentos, algo que fica oculto para o público: um mal-estar geral que nunca é satisfatoriamente abordado. No entanto, ela procura uma paz mínima nas coisas que preenchem seu cotidiano, até que este é revirado por uma visita de Clare à sua casa, que é, na verdade, quase uma invasão.
O filme, portanto, tem um argumento excelente, fecundo de possibilidades de exploração e desenvolvimento tanto das personagens quanto da teia social na qual elas estão envolvidas. No entanto, é um enredo difícil para que se trabalhe um tema complexo, que traz uma necessidade de uma visão única, corajosa e tenaz, que não subscreva a cacoetes quaisquer, com perigo de perder completamente a mão do filme, tornando-se um entre muitos. Isso é, justamente, o que acontece.
Há diversos caminhos para explicitar a mornidão com que o longa trabalha um tema que é tudo, menos morno. Os personagens que gravitam as duas protagonistas são, na melhor das hipóteses, pífios. O marido interpretado por André Holland é, de longe, o mais carismático, em grande parte por mérito do ator, que trabalha diálogos banais com uma desenvoltura cativante e tem alguns trejeitos que fazem com que a história caminhe (em especial na desconfiança progressiva que Irene tem de relacionamento com a amiga). O marido de Clare, interpretado por Alexander Skarsgård, é sintetizado nas palavras que usei sobre ele há dois parágrafos. Nada mais se tem a dizer sobre ele, que não serve sequer como contraponto a outros personagens. Hugh Wentworth (Bill Camp), escritor amigo dos Redfield (e interesse intelectual de Clare), é um cara insuportável, intelectualizado, sempre tentando explicar para os outros o mundo que os cerca, com “sacadinhas” espirituosas e uma falsa autoconsciência que só poderia ter saído de um roteiro mal delineado, que precisa de verborragia explicativa (mesmo que seja para “sabiamente” subvertê-la) para ter condução. Zu, personagem de Ware Jenkins, a empregada da família Redfield, é sub-aproveitada ao extremo. O comentário social que é uma mulher que não “passaria” como branca como empregada de uma que passaria é evidente, porém não passa disso: algo que está no filme e nem espacialmente Rebecca Hall é capaz de inserir um comentário digno sobre a situação (o pior é constatar o potencial perdido).
As protagonistas passam metade de suas interações projetando diálogos de um algoritmo que produz frases tocantes e a outra metade com falas artificiais socialmente engajadas, coisas que até um HAL 9000 teria a sensibilidade poética de não dizer. A ambiguidade da personagem de Clare – uma mulher que largou seu passado, aproveita sua riqueza material, mas que volta para seu lugar de origem, mesmo com todos os riscos que isso acarreta – e as dúvidas de Irene – que vê sua vida mudar constantemente e ser “descartada” por uma mulher mais desenvolta e mais branca que ela, tanto por parte de seu marido quanto de seus filhos – causam tanta emoção na roteirista quanto devem causar no público: zero. O filme é feito sem emoção alguma, sem adequação à própria história que pretende contar.
As personagens principais têm sentimentos tão indefinidos que a diretora parece ficar na dúvida se os trabalha de forma visual ou dialógica. Na falta de resolução, ela faz os dois. Pessimamente. Clare e Irene são o produto da sociedade que as gerou e de seus anseios mais internos. A exposição do racismo intrínseco da sociedade estadunidense se dá do modo mais didático possível, interrompendo qualquer vínculo com as personagens e se intrometendo nos diálogos de forma invasiva. Se o problema é tão entranhado na sociedade, por que não mostrá-lo de uma forma que privilegie a dimensão estrutural do problema, a razão calada? A demonstração das personagens é, quando feita, tosca: palavras quaisquer que não dão dimensão nenhuma de realidade às personagens e que não são ajudadas por duas atuações afetadas (obviamente tentando compensar por algo que as falas não têm).
Porém, o maior problema, é estético. O filme é elegante. A fotografia em preto-e-branco é por vezes estourada, por vezes bem contrastada, mas tudo isso faz um sentido com a atmosfera de cada cena. Uma atmosfera, que, no entanto, não é balizada em nada: é um desperdício de pensamento, de esforço para a construção de planos “bonitos”, agradáveis. Esse filme é, antes de tudo, um exemplo perfeito da “damienchazellização” (Damien Chazelle, diretor, ficou famoso com obras que se utilizam do jazz como motivo rítmico e temático, como Whiplash e La La Land, porém de uma maneira polida, enlatada) do filme por meio, sobretudo, desse veneno chamado elegância. Ela faz o público não pedir nada que ultrapasse um solo de sax distante, o aproveitamento inócuo da arquitetura estadunidense, superenquadramentos como mote estético, um pseudopsicologismo baseado em planos com pessoas de costas, closes e desfocalizações presunçosas que pretendem dar profundidade a personagens que são mais instrumentos inertes do que pessoas. É como se Hall quisesse que acreditássemos que Clare e Irene têm facetas incapturáveis pela câmera, apenas uma pequena parte delas é traduzível nessas imagens semigrandiosas, um uso espetacular da linguagem, que adensa o que não pode ser penetrado. Evidentemente, isso não existe em cinema.
Há uma cena em que a personagem Clare, antes de entrar num salão de jazz, passa, muito bem vestida, por uma fila de pessoas negras e pobres que esperam para poder entrar no mesmo recinto, e olha para elas com os olhos arregalados, como se fossem de outro mundo. Esse filme parece ter sido gravado com os olhos dela nessa cena, olha para o absurdo da realidade, mas mantém a consciência de ser elegante. E digo isso sem querer dar a entender que ele tem o mínimo de empatia com a personagem.
Em Identidade, o uso do jazz nos salões dos ricaços dos anos 1920 se conjuga com o uso do jazz nos filmes algoritmizados e “relevantes” dos anos 2020. Uma cega e hipócrita ditadura da finesse.
Estreia da atriz Maggie Gyllenhall na direção discute questões sobre a maternidade e o peso que a sociedade coloca nela
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Netflix/Divulgação
A temporada de premiações começou e o hype que se cria ao seu redor culminará no Oscar de 2022. A Filha Perdida (The Lost Daughter, Grécia/Reino Unido/Israel/EUA, 2021 – Netflix), longa de estreia de Maggie Gyllenhaal na cadeira de direção, traz Olivia Colman numa personagem que parece uma das mais fortes competidoras pela estatueta de melhor atriz nos Academy Awards.
Mas o Oscar, com todo seu lobby e até pelo sistema de votação, não vale tanta coisa assim. O que importa, acima de tudo, deve ser um bom filme. Nesse, Colman é Leda, uma professora universitária de férias na Grécia, onde encontra a perigosa família de Nina (Dakota Johnson) e, sobretudo, a filha dela, Elena. Acompanhando a história de mãe e filha, Leda não consegue evitar ter de lidar com complicadas memórias de seu passado com as suas duas filhas, Bianca e Martha.
Desde o início da trama há uma tensão entre a professora e a inconveniente família, até então misteriosa, da qual Nina destoa (ela nutre curiosidade por Leda). Com o breve sumiço de Elena, as duas se aproximam e sua compreensão da situação da outra é silenciosa, mas palpável. Há uma cumplicidade entre as mulheres: uma capaz de identificar traços de seu passado nessa jovem mãe, enquanto a outra consegue enxergar na turista uma espécie de espelho de seu possível futuro. Gylenhaal introduz em sua história, cujo roteiro parte do aclamado livro também chamado A Filha Perdida, de Elena Ferrante, uma estrutura multitemporal, entrecortando as cicatrizes do passado (em que é interpretada por Jessie Buckley) com as tensões do presente de Leda. Não sei se essa característica vem da literatura ou foi adicionada pela diretora, mas fato é que a decisão é fundamental para o impacto no espectador.
Leda é um mosaico muito bem performado entre uma mulher chegando aos cinquenta e já colhendo os frutos de suas más decisões (pois é assim que as sente), e a acadêmica comprimida e esmagada em si mesma por uma rotina atemorizante e prestes a implodir. O presente de uma é a cruel rememoração das falhas que enxerga em si mesma, ou melhor, na outra. Enquanto Buckley é furiosa, com picos e vales muito bem delineados em suas emoções, a interpretação de Colman é a calmaria do mar profundo após sua tempestuosa juventude.
A personagem é falível. Gyllenhaal toma cuidado para tratá-la sem crucificar ou romantizá-la sua história, demonstrando com sobriedade a pressão do mundo ao redor das mães (em especial as semissolteiras, cujo companheiro é ausente na criação dos filhos) e sua aflição. Quando a câmera insiste em retratar Leda em closes que são quase planos detalhe, com pouquíssima profundidade de campo e o balanço da mão que filma muito perceptível, sentimos com efeito a claustrofobia da protagonista, que também ecoa em Nina, bem como a densa atmosfera que as cerceia. Algum espectador pode até ser incapaz de empatizar com suas decisões, afinal a criação parental é um tema cuja moralidade subjetiva é decisiva para a discussão, mas A Filha Perdida é um filme construído de tal modo que é impossível que tais escolhas não sejam, no mínimo, entendidas pelo público.
Isto porque a intenção, no final de contas, não parece ser o julgamento moral (ou absolvição, por assim dizer) dos erros e acertos que tornaram Leda quem é hoje. Pelo contrário, é a constatação de que, de modos distintos, o peso embutido na mãe pela criação dos filhos continua desproporcional e artífice do esgotamento da subjetividade dela mesma.
Uma mãe que errou, muitas vezes por consequência da própria circunstância agonizante, deixa de ser tratada como o ser humano que é e tem sua personalidade reduzida àquelas três breves palavras. Mãe primeiro, profissional depois. Ou, ainda, mãe primeiro, sujeita de si depois.
Contudo, por vezes o ritmo parece prejudicar a obra, e algumas decisões de roteiro põe em xeque a verossimilhança e, por consequência, a imersão à história de Leda. Quando um personagem de uma cena só provoca a protagonista no cinema e ela ameaça chamar a polícia, o inconveniente rapaz canta “blue lives matter” (“vidas azuis importam”, uma resposta supremacista ao movimento Black Lives Matter, em português Vidas Negras Importam; as vidas “azuis” são as de policiais, relativizando o discurso antirracista). Essa adição, bem como outras pontuais interações com aqueles que vivem na ilha, foge do norte temático da obra sem conferir a ela quaisquer discursos bem amarrados além de uma piscadela de “perceba como sou antifascista” da diretora.
Assim, A Filha Perdida é um belo e cru retrato dos efeitos da pressão da sociedade sobre as mães e as consequências disso em suas carreiras, vidas afetivas e, claro, relações com filhas e filhos. Com ternura e paciência, Gyllenhaal é impassível em escancarar a hipocrisia no julgamento moral do mesmo comportamento para as mulheres e homens. O mesmo que Leda sofreu Nina parece sofrer também. Mas a sororidade chega a um teto e, dali para frente, o conflito se coloca novamente: a culpa da mãe que errou é usada contra ela como arma. Uma “mãe desnaturada” por ser colocada em uma situação tal que podemos entender perfeitamente sua motivação, mas que seu entorno jamais perdoará.