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O Menino e a Garça

Nova obra-prima de Hayao Miyazaki é uma fábula do Studio Ghibli com história coming of age sobre luto e o poder de laços sanguíneos e familiares

Texto por Andrizy Bento

Foto: Sato Company/Divulgação

Hayao Miyazaki já anunciou aposentadoria algumas vezes nos últimos anos. Quando alguns de seus fãs pensaram que sua retirada fosse definitiva, ele decidiu fazer um retorno em grande estilo com uma nova obra-prima do Studio Ghibli – que, inclusive, concorre ao Oscar de Melhor Filme de Animação neste ano. Aparentemente, O Menino e a Garça (Kimitachi wa dô Ikuru ka, Japão, 2023 – Sato Company) trata-se de uma despedida do cineasta e, conforme descrito pelo próprio, um legado para o seu neto. Fãs das animações do Studio Ghibli acreditam se tratar de uma carta de adeus.

Especulações à parte, O Menino e a Garça assume contornos de fábula para versar sobre o luto, transição e o poder dos laços sanguíneos e familiares. É uma alegoria do crescimento e amadurecimento em uma típica narrativa de formação, mas inventiva em sua abordagem, especialmente ao combinar mitologia, conto de fadas e viagem temporal.

A princípio, a animação guarda ecos de A Viagem de Chihiro. Porém, é mais uma história única contada por Miyazaki – afinal, um filme do cineasta nunca é apenas mais um. Nele, Mahito, um garoto de 12 anos que vive em Tóquio em tempos de Segunda Guerra Mundial e perde a mãe em uma tragédia consequente do conflito. Após esse evento, ele se muda para o interior do Japão com o pai, um empresário que presta serviços para o exército. Lá, o pai o apresenta à Natsuko, sua nova madrasta, que está grávida de seu meio-irmão.

Explorando a nova propriedade em que mora, ainda carregando uma melancolia inerente à perda de sua mãe e com visíveis dificuldades de adaptação – inclusive em se aproximar de sua madrasta – Mahito se depara com uma garça falante que o avisa que sua mãe ainda está viva; com uma torre misteriosa guardada por essa garça; e, para completar, com o súbito desaparecimento de sua madrasta. Ao adentrar a torre, descobre se tratar de um portal para outro mundo.

É interessante perceber que Mahito não é, de fato, um personagem carismático, embora composto de muitas camadas. Ele é atormentado, soturno e vive de cara fechada. Mas desperta o interesse do espectador ao dar vazão à sua natureza curiosa, tão característica de crianças da sua idade, e também porque há empatia com seu momento de dor, que o força a mudanças em sua vida (de cidade, escola e estilo de vida). Daí, a identificação natural com sua figura. Em contrapartida, o protagonista é coadjuvado por uma dezena de personagens carismáticos, como a própria Garça Cinza, a determinada Kiriko (em suas duas versões) e as criadas da mansão de Natsuko, a quem Mahito vê como suas avós.

O roteiro acerta principalmente ao desenvolver a relação do protagonista com a madrasta (que, convém grifar, também é sua tia!) de maneira sutil, sem lançar mão de diálogos expositivos e investindo em silêncios significativos e metáforas visuais. Esses recursos combinados não deixam evidentes, mas sugerem os sentimentos que um nutre pelo outro – mesmo na busca pela madrasta desaparecida em outro mundo, Mahito se refere constantemente a ela como “a mulher que meu pai ama”. Até que as emoções que norteiam o relacionamento se revelam nos entrechos finais.

A animação transita do traço mais realista ao surrealista, apresentando uma jornada a um universo fantástico, com um visual beirando o psicodélico, mas sempre se mantendo fiel ao viés humano, possibilitando ao espectador se identificar com a trajetória de amadurecimento e desapego de Mahito. A atenção aos detalhes e o cuidado com os movimentos são notáveis. A primazia técnica se estende para além de roteiro e visual, com uma edição de som que impressiona.

Primeiro filme de animação a abrir uma edição do Festival de Cinema de Toronto, onde fora apresentado em setembro de 2023, O Menino e a Garça, sabiamente, foge das armadilhas de dramas coming of age e dos clichês de viagens temporais, apresentando humor orgânico e pontual. O longa inicia trágico e devastador e termina emocionante e aquecendo o coração, da mesma forma que Meu Amigo Totoro e outros clássicos Ghibli.

Movies

Clara Sola

Filme costa-riquenho reflete sobre a metamorfose na sexualidade de uma mulher aprisionada e isolada do convívio social

Texto por Taís Zago

Foto: Imovision/Divulgação

Em um vilarejo da Costa Rica, Clara vive com sua mãe e a sobrinha em um pequeno sítio um pouco afastado. A ela são atribuídos poderes de cura. A mulher de 40 anos vive uma rotina completamente isolada do convívio social e é superprotegida pelos seus familiares, que ainda a tratam como uma criança. O motivo atribuído para os cuidados e o seu isolamento seria uma suposta (e misteriosa) doença óssea que dificultaria os movimentos, exigindo cuidados constantes e o uso de coletes. 

Clara, interpretada pela atriz e dançarina Wendy Chinchilla Araya, parece, a princípio, resignada à sua condição de vulnerável, consolo e companhia ela encontra nos animais da região, como a égua Yuca ou seus besouros de estimação, e na natureza. O mundo de Clara é somente dela e nele ela vive seus sonhos. Hordas de moradores locais e viajantes aparecem todos os dias para serem abençoados e curados por ela em uma sala com altares criados por sua mãe, uma senhora extremamente rígida religiosa.  

Quando sua sobrinha, Maria (Ana Julia Porras Espinoza), planeja a celebração da sua Quinceañera, a tradicional festa de 15 anos para muitos países latinos, Clara começa, de forma tardia, e explorar sua sexualidade e a descobrir seu corpo. A chegada de Santiago (Daniel Castañeda Rincón) traz a ela a descoberta do primeiro amor, o que se torna o ponto culminante para a explosão dos sentimentos reprimidos durante toda a vida por Clara mediante o controle de sua austera mãe.

A roteirista Nathalie Álvarez Mesén faz com Clara Sola (Suécia/CostaRica/Bélgica/Alemanha, França, EUA, 2021 – Imosion) seu début como diretora de um longa-metragem e assina o roteiro junto com Maria Camila Arias. O trabalho de Mesén é primoroso ao ressaltar a angústia silenciosa de Clara com closes fechados. A natureza, como coprotagonista, preenche o vazio de uma vida com poucos encantos terrenos. As cores, os sons e a maravilhosa fotografia nos mostram a transição do conforto de Clara em sua solidão para a gradativa revolta e a curiosidade que cresce em suas entranhas a cada dia. Clara é sola, mas anseia deixar de ser.

Ao roteiro ficou a tarefa difícil de gerar empatia sem exagerar no tom do pathos. Os personagens recebem nuances que os deixam humanos sem cair em estereótipos exagerados. Todos têm seus momentos bons e ruins. A narrativa transcorre de forma lenta, talvez em alguns momentos até lenta demais, porém no conjunto isso não chega a atrapalhar ou interromper a fluidez dos acontecimentos.

O clima opressivo religioso, que gradualmente sufoca e cerceia as atitudes espontâneas e naturais humanas, é uma das críticas principais desse filme. Para os cosmopolitas de “nascença”, a obra pode até parecer um passeio em um passado distante, mas não a aqueles mais conectados com as realidades periféricas e rurais dos países latino-americanos. Clara Sola nos dá uma estranha sensação de familiaridade, principalmente nos tempos em que vivemos hoje.

Movies

A Filha Perdida

Estreia da atriz Maggie Gyllenhall na direção discute questões sobre a maternidade e o peso que a sociedade coloca nela

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Netflix/Divulgação

A temporada de premiações começou e o hype que se cria ao seu redor culminará no Oscar de 2022. A Filha Perdida (The Lost Daughter, Grécia/Reino Unido/Israel/EUA, 2021 – Netflix), longa de estreia de Maggie Gyllenhaal na cadeira de direção, traz Olivia Colman numa personagem que parece uma das mais fortes competidoras pela estatueta de melhor atriz nos Academy Awards.

Mas o Oscar, com todo seu lobby e até pelo sistema de votação, não vale tanta coisa assim. O que importa, acima de tudo, deve ser um bom filme. Nesse, Colman é Leda, uma professora universitária de férias na Grécia, onde encontra a perigosa família de Nina (Dakota Johnson) e, sobretudo, a filha dela, Elena. Acompanhando a história de mãe e filha, Leda não consegue evitar ter de lidar com complicadas memórias de seu passado com as suas duas filhas, Bianca e Martha.

Desde o início da trama há uma tensão entre a professora e a inconveniente família, até então misteriosa, da qual Nina destoa (ela nutre curiosidade por Leda). Com o breve sumiço de Elena, as duas se aproximam e sua compreensão da situação da outra é silenciosa, mas palpável. Há uma cumplicidade entre as mulheres: uma capaz de identificar traços de seu passado nessa jovem mãe, enquanto a outra consegue enxergar na turista uma espécie de espelho de seu possível futuro. Gylenhaal introduz em sua história, cujo roteiro parte do aclamado livro também chamado A Filha Perdida, de Elena Ferrante, uma estrutura multitemporal, entrecortando as cicatrizes do passado (em que é interpretada por Jessie Buckley) com as tensões do presente de Leda. Não sei se essa característica vem da literatura ou foi adicionada pela diretora, mas fato é que a decisão é fundamental para o impacto no espectador.

Leda é um mosaico muito bem performado entre uma mulher chegando aos cinquenta e já colhendo os frutos de suas más decisões (pois é assim que as sente), e a acadêmica comprimida e esmagada em si mesma por uma rotina atemorizante e prestes a implodir. O presente de uma é a cruel rememoração das falhas que enxerga em si mesma, ou melhor, na outra. Enquanto Buckley é furiosa, com picos e vales muito bem delineados em suas emoções, a interpretação de Colman é a calmaria do mar profundo após sua tempestuosa juventude.

A personagem é falível. Gyllenhaal toma cuidado para tratá-la sem crucificar ou romantizá-la sua história, demonstrando com sobriedade a pressão do mundo ao redor das mães (em especial as semissolteiras, cujo companheiro é ausente na criação dos filhos) e sua aflição. Quando a câmera insiste em retratar Leda em closes que são quase planos detalhe, com pouquíssima profundidade de campo e o balanço da mão que filma muito perceptível, sentimos com efeito a claustrofobia da protagonista, que também ecoa em Nina, bem como a densa atmosfera que as cerceia. Algum espectador pode até ser incapaz de empatizar com suas decisões, afinal a criação parental é um tema cuja moralidade subjetiva é decisiva para a discussão, mas A Filha Perdida é um filme construído de tal modo que é impossível que tais escolhas não sejam, no mínimo, entendidas pelo público.

Isto porque a intenção, no final de contas, não parece ser o julgamento moral (ou absolvição, por assim dizer) dos erros e acertos que tornaram Leda quem é hoje. Pelo contrário, é a constatação de que, de modos distintos, o peso embutido na mãe pela criação dos filhos continua desproporcional e artífice do esgotamento da subjetividade dela mesma. 

Uma mãe que errou, muitas vezes por consequência da própria circunstância agonizante, deixa de ser tratada como o ser humano que é e tem sua personalidade reduzida àquelas três breves palavras. Mãe primeiro, profissional depois. Ou, ainda, mãe primeiro, sujeita de si depois.

Contudo, por vezes o ritmo parece prejudicar a obra, e algumas decisões de roteiro põe em xeque a verossimilhança e, por consequência, a imersão à história de Leda. Quando um personagem de uma cena só provoca a protagonista no cinema e ela ameaça chamar a polícia, o inconveniente rapaz canta “blue lives matter” (“vidas azuis importam”, uma resposta supremacista ao movimento Black Lives Matter, em português Vidas Negras Importam; as vidas “azuis” são as de policiais, relativizando o discurso antirracista). Essa adição, bem como outras pontuais interações com aqueles que vivem na ilha, foge do norte temático da obra sem conferir a ela quaisquer discursos bem amarrados além de uma piscadela de “perceba como sou antifascista” da diretora.

Assim, A Filha Perdida é um belo e cru retrato dos efeitos da pressão da sociedade sobre as mães e as consequências disso em suas carreiras, vidas afetivas e, claro, relações com filhas e filhos. Com ternura e paciência, Gyllenhaal é impassível em escancarar a hipocrisia no julgamento moral do mesmo comportamento para as mulheres e homens. O mesmo que Leda sofreu Nina parece sofrer também. Mas a sororidade chega a um teto e, dali para frente, o conflito se coloca novamente: a culpa da mãe que errou é usada contra ela como arma. Uma “mãe desnaturada” por ser colocada em uma situação tal que podemos entender perfeitamente sua motivação, mas que seu entorno jamais perdoará.