Music

Black Crowes – ao vivo

Maduros, os irmãos Robinson voltam ao Brasil depois de 27 anos e mostram que seguem precisos como relógios suíços

Texto por Fabio Soares

Foto: Rafael Strabelli/Divulgação

A São Paulo de 2023 está muito diferente daquela que os irmãos Chris e Rich Robinson encontraram 27 anos atrás. Em janeiro de 1996, eles tocaram num sábado com Pacaembu lotado na mesma noite em que Jimmy Page e Robert Plant foram as atrações principais na derradeira edição do (posteriormente extinto) festival Hollywood Rock, um dos únicos benefícios que o consumo de cigarros trouxe ao Brasil. Hoje, o Pacaembu já não mais existe como estádio de futebol, destruído pela iniciativa privada, e a capital paulista está abandonada sob o “comando” de um prefeito tão fantasma que se ele entrar num elevador ninguém na cabine o verá.

Mas corta pra 2023! Os Robinson estão de volta para a turnê comemorativa de 30 anos do álbum de estreia dos corvos, Shake Your Money Maker, de 1990, atrasada em dois anos por conta da pandemia. O Espaço Unimed (antigo Espaço das Américas) não estava com sua lotação completa naquela noite de terça-feira 14 de março – o que foi ótimo porque cerca de quatro a cinco mil privilegiados poderiam ter sua festinha particular. E acabou que foi muito mais que isso.

Pontualmente às 21h30 os primeiros acordes da gravação de “Are You Ready”, do Grand Funk Railroad, deram as caras nos autofalantes, enquanto o grupo adentrava o palco para suas posições. Brian Griffin na bateria, Sven Pipien no baixo, Erick Deutsch e Joel Robinow nos teclados e os Robinson, então, iniciaram a execução da íntegra de Shake Your Money Maker com “Twice as Hard” e o inevitável acontecendo: a péssima equalização de som do Espaço Unimed! A dificuldade de se desfrutar um show com boa qualidade técnica no Brasil beira a incredulidade. Passada a frustração da canção de abertura, a segunda pôs a pista inteira para dançar: “Jealous Again” permanece maravilhosa mesmo após 33 anos de seu lançamento. Banda afiadíssima sentindo-se em casa, visivelmente se divertindo e com a plateia entoando os versos a plenos pulmões. Que momento!

“Sister Luck”, “Could I’ve Been So Blind” e “Seeing Things”, escancaram as influências da banda: blues rock embebecido em álcool e setentismo. O simples que muitos insistem em complicar. Sem firulas, sem telões, sem luzinhas piscando.

O balanço da cover de “Hard To Handle” também merece destaque: a canção de Otis Redding permanece viva, atemporal e transformaria um cemitério numa festa-baile. Aquecimento mais que especial ao ponto alto de Shake Your Money Maker – “She Talks To Angels” é o emocionante bálsamo que precisávamos trazendo um importantíssimo aspecto: a voz de Chris Robinson permanece impecável! Muito bom constatar que os excessos cometidos pelo cantor nos anos 1990 (e atire a primeira pedra quem também não os cometeu) não afetaram seu principal instrumento de trabalho. Nessa música, mais uma vez, o refrão foi cantado em uníssono pelo público. 

A arrasa-quarteirão “Stare It Cold”, encerrou a execução da íntegra do primeiro disco e o entrosamento da banda impressionava sob o comando de seu capitão. Ao contrário do despojamento do vocalista, Rich Robinson empunhava sua guitarra como um sagrado ofício a ser executado. Nada de sorrisos, apenas a forma precisa de riffs poderosos que alçaram a banda ao panteão da história do rock.

Abrindo a segunda parte da apresentação, dedicada ao restante do repertório, um particular soco em meu estômago. “Sometimes Salvation” (que não havia sido tocada nas mais recentes apresentações da turnê) possui um dos videoclipes mais perturbadores da história, sobretudo a quem foi dependente de drogas nos anos 1990 (este que vos escreve, incluso). Por isso, sua execução nesta noite será algo que guardarei na memória por muito tempo. Chris esgoelando-se à frente da banda a executando como um ato episcopal foi algo que explodiu corações dos presentes. O show poderia muito bem ter acabado ali mas faltava algo.

Com sua inconfundível introdução, “Thorn In My Pride” segue estremecendo sistemas nervosos a granel: redonda, coesa, sem sustos e fazendo a cama perfeita para “Remedy”. O maior hit da banda fez brotar uma cambada de red pills na pista (sim, eles existem!). Destaque às backing vocals, assim como no clipe, assim como no disco, assim como sempre!

“Virtueand Vice”, faixa que fecha o álbum By Your Side, de 1999, também encerrou os trabalhos da noite. Noventa minutos sem cenários tridimensionais, tendo apenas a música como pano de fundo. Mesmo com os problemas técnicos, os Black Crowes personificaram naquela terça a expressão “trator sonoro”. Ainda bem! Só tomara que este trator não mais demore quase três décadas para retornar ao Brasil.

Set list: “Twice As Hard”, “Jealous Again”, “Sister Luck”, “Could I’ve Been So Blind”, “Seeing Things”, “Hard To Handle”, “Thick n’ Thin”, “She Talks To Angels”, “Struttin’ Blues”, “Stare It Cold”, “Sometimes Salvation”, “WIser Time”, “Thorn In My Pride”, “Sting Me” e “Remedy”. Bis: “Virtue And Vice”.

Movies

A Baleia

Darren Aronofosky volta a incomodar com um espetacular Brendan Fraser como um professor em desenfreada busca pela não existência

Texto por Taís Zago

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Samuel D. Hunter escreveu A Baleia tendo sua própria vida e trajetória como inspiração. Nascido em Moscow, Idaho, ele foi compelido a se assumir gay já na adolescência, sofreu com a homofobia provinciana e suas mazelas emocionais refletiram em um ganho rápido de peso durante os anos de universidade. Então, Samuel cria em A Baleia um “e se…” caso ele tivesse continuado o caminho que estava posto diante de si. Darren Aronofsky assistiu à peça em uma de suas muitas apresentações e rapidamente vislumbrou no roteiro material rico para um longa-metragem.

Para os que estão familiarizados com a obra cinematográfica de Aronofsky não é segredo algum que o diretor, roteirista e produtor se expressa, não raramente, usando os extremos dos comportamentos humanos. Ora aborda o vício em drogas em obras como A Vida Não É Um Sonho (2000), ora as profundezas da alma humana como em Cisne Negro (2010). Também não é raro em seu oeuvre uma jornada de modificação corporal baseada na busca de aceitação e fama que acaba por deteriorar lentamente seus personagens, como em O Lutador (2008). O ponto convergente de sua obra é uma visão desiludida do humano, o que não raramente nos arrasta a lugares incômodos e quase insuportáveis dentro de nossas cabeças.

Em A Baleia (The Whale, Estados Unidos, 2022 – Califórnia FIlmes), Aronofsky e Hunter trabalharam juntos para transpor dos palcos para o cinema toda a gama de sentimentos de Charlie, interpretado brilhantemente por Brendan Fraser, um homem solitário que vem seguindo um caminho sem volta de deterioração física, emocional e psicológica desde a perda de seu grande amor e companheiro de vida. Charlie é um excelente professor universitário de ensaios literários, ministra suas aulas via EAD, mas nunca permitiu a seus alunos que o vissem pela câmera. Há muito tempo Charlie não sai de casa, não cuida da saúde, não vê muitas pessoas. Uma de suas grandes dores foi o seu afastamento compulsório da filha, na época com 8 anos de idade, por ele ter assumido uma relação homoafetiva com um de seus estudantes. Tudo em Charlie é machucado. Apesar do foco em sua aparência como alegoria para a ruína, a parte mais evidente da tremenda dor que carrega é revelada pelos olhos e pela voz. Ao seu lado, tem a fiel amiga Liz (Hong Chau), uma enfermeira que o acompanha e tenta fazer os seus dias o mais confortável possível sem criticar com clichês e sem esmiuçar os motivos. Liz os conhece bem, mesmo que no fundo ela não queira aceitar o caminho escolhido por ele.

O filme, mesmo antes de ser lançado, gerou uma onda de críticas em relação à patologização da obesidade e do uso das chamadas fat suits (trajes de gordura) que os atores vestem para interpretar pessoas gordas e que muitas vezes já contribuiu para o estigma do grupo com representações em filmes de gosto duvidoso – como O Professor Aloprado (1996), com Eddie Murphy interpretando diversos personagens usando fat suits como uma característica depreciativa, ou em comédias românticas como O Amor É Cego (2001) com Gwyneth Paltrow, onde, bem, o titulo em português é autoexplicativo. Não foram raras as alegações de crueldade e de voyeurismo da obesidade. Aronofsky não é famoso pela sobriedade de suas representações. Ele procura sempre o limite, o que, às vezes, pode beirar uma caricatura de mau gosto. Tanto que A Baleia foi classificada como uma espécie de fat horror por uma ala da crítica. 

Sabendo isso de antemão, apelei para um artifício ao assistir A Baleia – reduzi a luminosidade da minha tela, diminuindo assim a importância e o impacto da apelação visual e concentrando apenas nas vozes, e, algumas vezes, nos olhares. E só pude chegar a uma única conclusão: Brendan Fraser é espetacular. Desconectando a caracterização, o que nos resta é uma alma partida de alguém que perdeu completamente o interesse de continuar vivendo. O que sentimos é um ser humano em rota de colisão irremediável e desesperançada. E nesse caminho pouco importa o figurino, a maquiagem ou o método escolhido para se alcançar o objetivo, quer seja ele por meio de drogas, comida, ausência de comida, sexo ou qualquer outra forma de se obter o resultado desejado – a não existência.

A dor de Charlie é profunda demais para ser remediada. O luto diário que mantém pelo seu amor perdido de forma violenta é insuperável, a ausência da filha e a culpa que o ronda de forma repetitiva o oprimem. Charlie tanto ruminou suas dores que se entregou a elas. O ponto de retorno já foi há muito abandonado. A depressão retirou a luz quase que completamente de sua rotina. E é exatamente nessa reta final de sua jornada que ele faz um último esforço desesperado para reatar o contato com sua filha Ellie (Sadie Sink), uma adolescente, que segundo as palavras da própria mãe (Samantha Morton, em aparição relâmpago) é simplesmente uma menina má. Charlie se nega a acreditar nisso. Mesmo em toda a escuridão em que vive, ele ainda nutre a esperança na luz de Ellie. Da mesma forma acolhe Thomas (Ty Simpkins), jovem que escolheu pregar a palavra de Deus como sendo a forma irrefutável da salvação humana.

A Baleia, em parte por ser uma dramaturgia adaptada do teatro, é encenada com poucos personagens, tendo como única locação a casa de Charlie e, na maioria das cenas, apenas sua sala de estar. A fotografia é escura em quase sua totalidade, em parte para cooperar com os esforços de tornar a caracterização física mais verídica, mas também como alegoria da profunda depressão do protagonista. A música segue o mesmo caminho, assim como a edição. Tudo nos conduz para a melancolia e para a desesperança. Aronofsky sendo Aronofsky, portanto.

A Baleia é uma tragédia humana real sendo arrastada para o macabro, uma câmara de vácuo e ausência de luminosidade, um palco trágico, uma jornada de redenção e purificação por meio do sofrimento e do sacrifício. Poderia não ser assim, como aponta Samuel ao falar de seu roteiro, mas foi. Brendan Fraser recebeu o merecidíssimo Oscar de melhor ator, preenchendo todos os requisitos que Hollywood busca: um protagonista que retorna das cinzas após ser massacrado e abandonado pela indústria cinematográfica; um roteiro tenso, teatral e dramático; e um personagem que requer modificações físicas complexas da parte do ator para ser interpretado.

Movies

Garoto dos Céus

Representante sueco ao Oscar deste ano traz forte disputa de poder dentro de uma das mais prestigiosas universidades do Egito

Texto por Carolina Genez

Foto: Pandora Filmes/Dilvugação

Adam (Tawfeek Barhom), filho de pescador, recebe uma bolsa de estudos para uma das mais prestigiosas universidades da cidade do Cairo, Al-Azhar, o epicentro do poder do islamismo sunita. Porém, ainda com pouco tempo dentro da instituição de ensino, o Grande Imã – a maior autoridade religiosa no Egito – acaba falecendo. Assim começa a disputa de quem irá ocupar o cargo, à qual Adam acaba sendo levado.

Segundo o diretor e roteirista Tarik Saleh, que nasceu na Suécia e tem raízes paternas egípcias, a ideia para Garoto dos Céus (Walad Min Al Janna, Suécia/França/Finlândia/Dinamarca, 2022 – Pandora Filmes) nasceu quando ele releu o livro O Nome da Rosa, de Umberto Eco, e começou a pensar sobre como seria essa história em um contexto mulçumano. Apesar de ter pensado no filme sobre a obra de Eco, as histórias são bem diferentes.

A trama envolve justamente por conseguir trazer uma história recheada de suspense e mistério – o longa inclusive foi um dos destaques da premiação de Cannes de 2022 onde acabou levando a estatueta de melhor roteiro. Além disso, a obra consegue trazer bastante da cultura árabe para o espectador, como as tradições, regras, política, religião e o cotidiano da universidade. A relação entre a política e religião, inclusive, é mostrada de maneira explícita, evidenciando não só sua importância dentro da universidade, mas no país como um todo, impactando todas as vidas, até daqueles que nem tinham tanta conexão assim, como o próprio protagonista. Saleh  ainda consegue ser mais abrangente e tocar em assuntos como o extremismo, a manipulação, a fé e o próprio destino.

Apesar de possuir todos esses detalhes, muito pode acabar se passando despercebido aos brasileiros, não só por falta de contextualização sobre aquela cultura e conhecimento do público, mas também pelo grande número de informações disparadas em duas horas de duração (o que provoca confusão em diversos momentos). A narrativa é interessante, mas pela falta de tempo para a quantidade de informações, boa parte acaba pouco desenvolvida e aproveitada. Mesmo com este percalço, entretanto, o filme consegue se sustentar e entregar uma história com diversas reviravoltas.

Um fator que auxilia muito na conexão do brasileiro com o longa é a sua ambientação, já que o filme se passa em um contexto atual. Além disso, a obra transporta quem está no cinema para dentro da realidade dos personagens, onde paredes têm ouvidos e o perigo é sempre iminente. Por conta da sensação de alerta, Garoto dos Céus também consegue imprimir ótimo ritmo, deixando o espectador na ponta da cadeira e se preparando para o que pode acontecer. 

No decorrer do filme, acompanhamos a visão de Adam, descobrindo tudo juntamente com o personagem. Ele não só é arrastado para dentro do jogo de poder, como também passa por um período de amadurecimento e crescimento. Na primeira metade, o jovem tem pouco desenvolvimento e falta de personalidade. Na segunda, porém, Adam muda e estabelece conexões com o espectador.

Garoto dos Céus é o representante sueco para uma vaga para o Oscar de filme internacional (o longa ficou entre os finalistas para as cinco indicações, que saem no próimo dia 24). Envolta em um mistério muito interessante, a história vale a pena ser assistido pela narrativa envolvente e também por conseguir trazer muito sobre a cultura árabe. Mesmo que de forma atropelada.