Music

RPM

Luiz Schiavon, que faleceu aos 64 anos, foi o principal responsável pela popularidade do sintetizador na música brasileira dos anos 1980

O RPM em 1985: Fernando Deluqui, Paulo Ricardo, Luiz Schiavon e PA

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Divulgação/CBS

Na manhã da última quinta-feira, 15 de junho, recebemos a notícia da morte de Luiz Schiavon, tecladista e fundador do RPM, aos 64 anos. Além de ser precoce, é uma perda enorme para a música brasileira, uma vez que Schiavon foi um dos grandes nomes – talvez o maior – da inserção do sintetizador nas paradas pop dos anos 1980 em diante. Ele não foi exatamente o pioneiro, mas estava neste momento peculiar do tempo, no qual o instrumento de teclas se uniu à produção em escala cada vez mais massificada. A bordo do RPM, grupo que ele fundou em 1983, Schiavon assumiu condição de protagonista criativo, elaborando o conceito da banda e seu direcionamento musical.

Com a chegada do vocalista Paulo Ricardo – que também assumiria o baixo – um ano depois e mais as presenças de Fernando Deluqui e Paulo Pagni (conhecido como PA) na guitarra e na bateria, o RPM iniciou sua produção de canções, que resultaria num bom contrato com a CBS da época (hoje Sony) e num álbum, que se chamou Revoluções Por Minuto, lançado em 1985. É possível dizer que o quarteto se tornou, ainda que por cerca de um ano e pouco, a banda mais importante do Brasil em termos de execução e vendas de discos. Isso se devia à figura de Paulo Ricardo, que impunha doses generosas de sensualidade em suas interpretações e, sim, à qualidade das canções apresentadas.

Deste primeiro trabalho, o grupo cravou seis singles nas paradas, “Louras Geladas”, “Rádio Pirata”, “A Cruz e a Espada”, “Olhar 43”, “Revoluções Por Minuto” e “Juvenília”, que tocaram em todas as rádios e programas de auditório do país entre março de 1985 e todo o ano de 1986. A estabilidade econômica do Brasil à época, materializada pelo Plano Cruzado, turbinou as vendas deste primeiro álbum e assegurou o lançamento acelerado do segundo, Rádio Pirata – Ao Vivo, que saiu no fim de 1986.

Com este disco gravado ao vivo, o RPM tapava a lacuna da demanda por mais canções do grupo, que, exausto após turnês subsequentes por dois anos, estava esgotado e à beira do fim por conta dos desentendimentos internos. Ainda que parecesse uma usina de sucessos imparável, o RPM era palco de disputas criativas, sempre com Paulo Ricardo desejando inserir mais elementos roqueiros e Schiavon pendendo a balança para os timbres derivados do tecnopop e do new romantic, então vigentes na produção pop anglo-americana. Mesmo assim, a presença de covers de Caetano Veloso (“London, London”) e Secos & Molhados (“Flores Astrais”) no segundo álbum, além de um dueto com Milton Nascimento em “Feito Nós”, single de 1987, mostrava que a banda tinha mais do que o desejo simples pelo sucesso.

Foi preciso muito poder de convencimento para a CBS recolocar o RPM em estúdio para a gravação do terceiro álbum. Ofertas de discos solo dos participantes, mixagem em Los Angeles, orçamento polpudo liberado, tudo foi posto na mesa para que o grupo entregasse mais uma fornada de possíveis hits. Talvez os conflitos internos, talvez uma mudança de perspectiva, talvez o espírito daquele 1988, no qual a lambada já surgia como uma alternativa viável para o público jovem, sabe-se lá, mas o fato é que o novo disco, intitulado simplesmente RPM, veio muito mais profundo e “difícil” em relação aos dois discos anteriores. A preocupação estética da banda com arranjos, timbres e letras afastava o álbum do sucesso almejado, ainda que canções como “Partners”, “Um Caso de Amor Assim” e “Quatro Coiotes” tenham tocado medianamente nas rádios. Foi uma pena, pois este álbum tem detalhes interessantes e excêntricos, como a presença de Bezerra da Silva em “O Teu Futuro Espelha Essa Grandeza”. Poucos meses depois desse lançamento, o RPM encerrou as atividades. 

Nos anos seguintes até a semana passada, quando lançou o fraquíssimo single “Liberdade”, o RPM veio e foi, em diferentes encarnações. Na mais importante delas, em 2002, a banda gravou um disco ao vivo para a MTV, além de canções inéditas (como “Vida Real”, que se tornou o insuportável tema do não menos insuportável Big Brother Brasil). Alguns discos foram lançados, shows e apresentações aconteceram, além de mais e mais disputas judiciais entre os integrantes da banda. Nada do que foi feito depois de 1988 vale a pena ser considerado seriamente na antologia da banda.

Luiz Schiavon, por sua vez, também trabalhou em trilhas sonoras para a TV, como as das novelas O Rei do GadoTerra Nostra e Esperança, para as quais também escreveu canções originais, além de selecionar músicas que fizeram parte das tramas. De 2004 a 2010, foi diretor musical do Domingão do Faustão, interagindo frequentemente, ao vivo, com o apresentador do programa de auditório da Rede Globo.

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The Beatles: Get Back

Os bastidores do Rooftop Concert, que marcou a despedida da banda em show feito no terraço da Apple e chega agora aos cinemas brasileiros

Texto por Taís Zago

Fotos: Disney+/Divulgação

The Beatles: Get Back (Reino Unido/Nova Zelândia/EUA, 2021 – Disney+), é uma despedida. É sobre as sessões de filmagem dos ensaios dos Fab Four, em janeiro de 1969 no Twickenham Studio (depois no Apple Corps Studio), para o novo álbum com 14 músicas e para um projeto especial/documentário, que, em teoria, deveria marcar a volta da banda, mas que culminou com o fim dela com o famoso último show no terraço da AppleCorps em Londres. São três episódios divididos pelos 21 dias de filmagens, num total de 468 minutos de duração. O último deles, o tal Rooftop Concert propriamente dito, chega aos cinemas brasileiros em sessões especiais espalhadas por redes de dez cidades até o próximo domingo, 13 de fevereiro.

(ACHTUNG! Daqui dá pra pular direto pras conclusões finais para quem não tem paciência para as minhas chorumelas de fã ou não suporta SPOILERS de qualquer tipo).

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Tá aí ainda? So here we go

Primeiramente (dedinho em riste!), sou beatlemaníaca. Daquelas que detestou o filme piadista Yesterday ou a romcom Across The Universe, que lê tudo que acha sobre os caras e ama a música desde sempre (ou pelo menos desde que aprendi o que era música na infância). Então este texto não é isento de idolatria, não é imparcial e muito menos é justo com todos os envolvidos. É passação de pano. TEJEM AVISADOS!

“Segundamente”, quero deixar claro que não sou lá muito fã do estilo bigger/brighter/better/greater de Peter Jackson. O cara adora um filme que nunca acaba. As 7+ horas de O Senhor dos Anéis me pareceram mais longas do que ler a trilogia, que, casualmente, eu adoro e tem um local especial no meu coraçãozinho nerd

EPISÓDIO 1 – Dias 1 e 7

Começo logo com papo de groupie: o fenômeno Yoko Ono não pode ser ignorado. Ela estava em todo o lugar. Tava ali na frente da câmera costurando, comendo, escrevendo, pintando, escondendo a cara nas filmagens, cutucando o Lennon, deitando no ombro dele, sentada junto no banco do piano ou numa cadeira colada com a dele. Ela tava ali, quase como uma segunda pele do John. A única pessoa fora da banda e fora da equipe de produção com essa proximidade toda em todos os 21 dias de filmagens. Linda Eastman, assim como outras moças, também aparece, mas fica tirando fotos de longe, observando. É uma presença relaxante. Ela não reivindicou pra si quaisquer protagonismo e meio que alfineta a Ono nisso (tenho que registrar!). E não, não se trata de machismo: poderia ser o filho, a mãe, o namorado de qualquer um ali. Me pareceu um tanto intromissivo e inconveniente.

Já nos primeiros 15 minutos do episódio (e nos 15 últimos, com a Ono berrando no microfone no chamado “Freak Out”) isso me incomodou. Aí eu me perguntei: forçaram a barra pra provar a teoria do efeito Yoko Ono na edição? Quiseram tirar o fiofó do George, do Paul e do próprio John da reta na culpa pela separação? O Lennon obrigava a Yoko a ficar junto dele pra receber o tempo todo aprovação? Ou a relação dela com o Lennon era realmente a de dois carrapatos insuportáveis que não davam um peido sem o outro atrás cheirando? Eu não sei a resposta. Mas me deu incômodo me imaginar no lugar dos outros três músicos que estavam ali. Talvez porque eu seja uma pessoa que detesta ter alguém olhando por cima do meu ombro ou colado em mim enquanto trabalho. Se Lennon e Yoko fossem hoje um casal, acho que seriam daqueles com perfil compartilhado no fêice chamado “Yonnon/Leko”. Not a good picture. Pelo menos não para mim, que curto não ter um gêmeo siamês como par romântico. 

Eu também vi aqui claramente quatro caras que se sentem meninos e sentam no colo das suas mulheres (ou pelo menos John e Paul). Sim, tem aquela infantilização masculina clássica. Os Beatles não foram os primeiros e nem os últimos nisso. E não estou normalizando comportamento tóxico. As mulheres são forçadas em posições desconfortáveis, onde fatalmente são pintadas como bruxas por orbitarem em torno de seus reizinhos (que demandam isso delas).

Intrigas/fofocas/brigas à parte. Que banda, meus amigos! Que banda! Quem nessa vida já assistiu a alguma gravação, ou ensaio ou mesmo uma jam de músicos sabe do que tô falando. Eles eram uma fonte exuberante de criatividade e talento. O som não mente. A gente entende a grandeza dessa instituição que começou como uma boy band produzida pelo Brian Epstein. A gente escuta e vê, é trabalho, é cansaço, é um estresse tremendo, mas também é prazer. A gente enxerga isso nos olhares trocados, nas discussões, nos sorrisos, nas lembranças. O talento flui dos dedos e das bocas.

Mas sim, também é (era) NEGÓCIO. Dinheiro pra muita gente. Muito dinheiro. As trivialidades do backstage de uma banda mundialmente famosa: onde fazer show? Qual figurino? Com ou sem barba? Qual música? Vale cavocar na caixinha das esquecidas? E as lembranças que elas trazem?

Perto do final do episódio, George abandona a banda. John atira: “Se ele não voltar, chamamos o Clapton”. Fade out.

EPISÓDIO 2 – Dias 8 a 16

A pressão sobre a banda é imensa, principalmente a vinda da parte do diretor das filmagens, o tal mala, wannabe vilão do charuto Michael Lindsay-Hogg. Em 1969, as pessoas ainda não viviam em tempos onde se tem responsabilidade emocional (na maior parte, ainda elas não têm). Os produtores não medem as palavras, dão na lata que já faz quatro anos desde o último álbum-show e que esse tem que dar certo. Paul e John já estão afastados. John vive na bolha cor-de-rosa dele com a Yoko. Paul ressente o fato da banda não funcionar como um relógio suíço. Ringo e George não têm o mesmo protagonismo. Mas George foi o primeiro a levantar acampamento, principalmente pelas implicâncias de Lennon.

Numa reunião com a presença de Linda, rola uma reclamação sobre a Yoko falar pelo John. Não sei se foi proposital (por estar na frente das câmeras) ou não. Paul sai em defesa do young love dos dois. Fica claro que John tem dificuldades de conciliar seu amor pela Yoko e a dedicação necessária para os Beatles. O problema é, obviamente, o conflito de John. Alguém curte que alguma pessoa fale no lugar de um colega de trabalho/amigo? Eu não curto. E detesto que falem por mim. Talvez John não tivesse coragem de expor o que realmente sentia aos colegas de banda (chegou a pincelar esse assunto numa conversa com Paul) e usou Ono pra isso – ou não. Aqui as versões divergem, dependendo do testemunho. Porém fica claro que todos se sentem incomodados com a onipresença e a interferência da Ono. Machismo? Não sei. Nesse ponto restaram dois beatles: Ringo e Paul. E ninguém parece saber como continuar. Linda tenta participar das discussões e Paul rebate: “Fique fora disso, Yoko!”. Todos riem, inclusive Linda.

Outro take, outro dia. Do nada, aparece Peter Sellers pra um chit chat com John, Ringo & Paul. Assim como aparece, também some. Nonsense e encheção de linguiça. Aqui Peter Jackson mostra a sua incapacidade de síntese.

Os Beatles pleiteam a volta de George e John e mudam as gravações para os estúdios da Apple Corps e abandonam a ideia do especial para a TV. As coisas parecem melhorar. 

Ear candy pros fãs: começam as gravações, e a gente se sente um mega stalker adentrando solo sagrado. “Don’t Let Me Down”, “She Came In Through The Bathroom Window”, “Oh Darling”, “Get Back”, “Across The Universe”, “Dig A Pony”, “The Long And Winding Road”, “I’ve Got a Feeling”, “Two Of Us”, “Let It Be”. Tem tudo ali, como sai, como foi criado. Assim como a aula sobre centenas de artistas (muitos de blues) que inspiraram o som dos Fab Four. Lennon/McCartney é a dupla criativa dos sonhos (pelo menos para mim), George também tem suas participações, mas Ringo é quase um baterista contratado, sua contribuição não é extensiva. Se isso já não fosse claro antes, fica muito óbvio em “Get Back”. Assim como a assimetria das suas sobrancelhas.

Mas a força motriz, que finalmente impulsiona as gravações, chega na figura de Billy Preston (tecladista de Little Richard). Amigo de longa data dos Beatles (ainda do tempo da turnê em Hamburgo), ele assume o piano e parece resolver o último impasse técnico-criativo nas gravações. Oficialmente, Billy passou no estúdio apenas pra dar um “oi”. E ficou. Billy vira o quinto beatle no álbum. 

No impasse sobre o show/apresentação ao vivo para a TV previsto no começo das filmagens, todas as sugestões dadas são abandonadas, para o descontentamento de Paul. O que vejo é que ele simplesmente não queria que a experiência acabasse sem uma apresentação da banda. Interesse comercial? Apego saudosista? Whatevah. Achei fofo, sim. No final, alguém surge com a ideia de fazer o show no rooftop da Apple Corps. Paul se entusiasma na hora.

EPISÓDIO 3 – Dias 17 a 22

O terceiro episódio inicia com um raro momento somente entre Ringo e George, quando Ringo apresenta pra ele “Octopus’s Garden” ao piano. John chega e assume a bateria. Mais um clássico surgindo da jam das filmagens para o Abbey Road de 1969 (não tô citando nem de longe tudo que os quatro nos apresentam nessas oito horas de documentário… Watch and hear!).

Heather visita o estúdio com Paul. Primeira e única criança a fazer aparição no reality. Tem momentos fofura dela com a banda, inclusive no colo de Paul com ele tocando “Let It Be” ou brincando na bateria de Ringo. Mas assim como aparece ela some de novo e daí temos pela terceira vez (uma por episódio) a Yoko Ono berrando desafinada no microfone, no que chamam de “Freak Out”(imagino que fosse um exercício de descontração para todos). Pessoalmente esse seria o momento que eu, estando na produção, sairia pra fumar um baseado na rua ou tomar um rivotril. Imagino que tenha muita gente que deva achar os grunhidos e gemidos da Ono uma performance poderosa e libertadora. Count me out, eu não acho.

As discussões em torno dos aspectos técnicos das gravações são incessantes. Principalmente Paul mostra insatisfação com os PAs. A captação do som não é satisfatória: os quatro reclamam que não se escutam. Paul se coloca o tempo todo sob pressão e, como não teria como deixar de ser, quem se coloca sob enorme pressão exerce essa mesma pressão nos outros. Paul é um perfeccionista. Ainda não enxergo a pura ambição financeira, apenas a (auto)exigência artística. Portanto, acusar Paul de pensar apenas nos Beatles como uma “empresa” (como ele é frequentemente acusado) é um tremendo erro de julgamento (do ponto de vista de uma fã).

George apresenta “Something”, na qual ele trabalhou nos últimos seis meses. E a gente se derrete escutando. Só não derrete quem é feito de pedra diante de tanta doçura. Billy Preston testa um stylophone trazido pelo John ao estúdio. O mesmo modelo que dei de presente pra alguém num passado longínquo, o prateado original. Get Back is also forcing me back to old memories. Faz parte.

Paul fala: “O melhor de nós sai quando estamos sob pressão. With our backs against the wall”. Não acho que isso se aplique aos quatro da mesma forma. E, contrariando expectativas, John concorda com Paul. O ponto de divergência parece ser bem mais George. Ringo segue sendo Ringo, entrega o que se espera dele sem drama e sem crises. John quer mais pelo menos seis semanas no estúdio.

Dia 20 das gravações e apenas sete músicas são consideradas “prontas”. Michael, o “diretor” do filme, é uma figura extremamente irritante. Vemos aqui os tempos pré-reality/documentário de música, quando a expectativa é apresentar uma imagem polida e ordenada da banda. George não quer subir no terraço para a apresentação, contrariando os outros três que curtiram a idéia. Eles começam a ensaiar para o show.

Abbey Road encontra Let It Be. George quer partir para a carreira solo. “Fuck all that, I’m gonna do ME for a bit.”

Chega o dia do antológico Rooftop Concert. Câmeras foram posicionadas no prédio do outro lado da rua da Apple Corps. Dentro do estúdio, Glyn Johns (engenheiro de som) se prepara para gravar a apresentação. As pessoas começam a se juntar em telhados e na rua em frente ao prédio e a espicharem pescoços nas janelas. Em meia hora de show, a polícia londrina recebe 30 chamados de perturbação do silêncio. A produção faz o que pode pra impedir que os coppers invadam o terraço e acabem com a festa.

A partir daqui nem tem como narrar mais nada. Só ouvir mesmo. Esse spoiler eu não dou. É só arrepios.

The End.

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CONCLUSÃO (pulem pra cá se vocês não tiveram saco pro textão):

The Beatles: Get Back é sobre reminiscências. É uma espécie de ajuste de contas poético. Me senti uma penetra. Mesmo sem estar ali na cadeira entre Paul e John (como a Yoko Ono aparece em vários takes). Eles tinham um mundo só deles, por mais que divergissem em quase tudo. E eu admiro essa conexão, mesmo sabendo do risco e da intensidade desse tipo de comprometimento e suas consequências.

A qualidade de som e vídeo, a maestria de combinar o som com as imagens é indiscutível. É uma obra impecável (não esperaria diferente dessa parceria Disney/Jackson). Geral anda chamando Get Back do “Melhor Reality do Mundo”. Pra mim vai além, é uma documentação histórica.

Vale a pena, mas só pros fãs (tanto dos Beatles como do processo de criação musical). O que já inclui MUITA GENTE. 

Quem tem ranço dos Beatles ou não tem paciência para o formato “ensaio”/reality involuntário, já aviso: fica longe. Tu vai dormir.

Movies

First Cow – A Primeira Vaca da América

Análise peculiar de um instante da colonização do oeste americano faz relações simbólicas com o capitalismo dos dias atuais

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

A embarcação contemporânea cortando a paisagem aparentemente inexplorada é um prenúncio do choque de perspectivas que veremos. Assim é, também, o quase literal simbolismo da descoberta dos cadáveres nos primeiros minutos do filme. First Cow – A Primeira Vaca da América (First Cow, EUA, 2019 – Vitrine Filmes) pretende escavar – como quem descobre corpos que um dia foram – a metáfora perfeita para o passado humano, visitar esse tempo com a perspectiva de um cinema atual. A colonização do Oeste norte-americano está sob nova investigação.

First Cow (disponível em streaming no Brasil pelo MUBI) é a pacata história da amizade entre Cookie (John Magaro) e um assassino somente identificado como “o homem chinês” (Orion Lee). Com a chegada da primeira vaca da região de Oregon, uma oportunidade de negócios atrai sua atenção, junto a riscos cada vez mais graves. Embora se tente encarar o longa como um western contemporâneo, não há identificação (ao menos com as linhas gerais do gênero) que não a época em que ele se passa. Ao contrário das narrativas bem arqueadas, submersas em conflitos morais e filosóficos, a simplicidade do florescimento de uma amizade.

Justamente por isso, First Cow demora a engrenar narrativamente. Contudo, se não há conflito ou tensão, há beleza e um retrato distinto da vida nos fortes americanos deste século. Kelly Reichardt, a diretora, prefere desenvolver Cookie e seu amigo com paciência, embora não hesite em demonstrar visualmente sua sinergia desde o início de sua interação. A sutileza da mise en scène de Reichardt, que retrata a primeira metade de seu longa com forte presença de planos fechados e, quando muito, médios, é o ponto focal mais interessante aqui.

A visão peculiar, porém, estende-se ao cenário sociopolítico da região. Se, como colocam os personagens, a civilização americana expande-se floresta adentro rumo ao inexplorado, são inegáveis as oportunidades de ganho de capital que irrompem. A constante busca por uma maneira de explorar o meio apenas para, inevitavelmente, escapar dele rumo a uma melhor paisagem, “mais quente” e agradável, é o principal vetor do conflito que balança o filme. No entanto, roubar o leite da recém-chegada vaca, propriedade do Comerciante-Chefe (Toby Jones), não é, em última análise, uma exploração da natureza ao redor. Ao contrário, diferente de todas as empreitadas sugeridas pelo imigrante chinês, ciente das demandas do mundo no momento, essa “estratégia de negócios” é uma afronta direta à estrutura capitalista do forte.

Assim sendo, o navio que quebra o quadro de paisagem também é simbolismo do processo de construção social que se fez presente nos Estados Unidos. A descoberta dos dois cadáveres pode ser surpreendente, mas o motivo de sua morte já nos é corriqueiro. First Cow acaba como um filme íntimo e muito terno, mas germina e transforma-se numa análise de um “desbravamento capitalista”, progenitor do capitalismo tardio em que vivemos.

Movies

Divaldo – O Mensageiro da Paz

Cinebiografia do médium baiano fica à altura de sua obra ao tratar de temas como a sua atividade filantrópica, o suicídio e o que há após a morte

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Fox/Divulgação

A ideia de que o ser humano é livre para optar pelo seu futuro e tomar decisões sobre seus atos sempre foi debatida pela filosofia e religião. Há quem diga, porém, que o livre-arbítrio é inverossímil, que nosso destino já está predefinido, escrito, seja por Deus, pelos astros ou pela entidade que for. Os budistas, pelo contrário, acreditam na lei da ação e reação, o “karma”, que diz que para toda decisão há uma consequência, boa ou ruim. A doutrina espírita também segue nesta linha, de que a evolução do ser humano depende de um constante aprendizado, o qual demanda esforço diário, pessoal e interpessoal. Nosso objetivo é alcançar a tal da perfeição, outro termo bastante complexo. Por isso, algumas almas precisam reencarnar tantas vezes quantas forem preciso até que essa transcendência moral e intelectual aconteça, por meio da caridade, da tolerância, do perdão, da fraternidade, do amor ao próximo como pregava os líderes espirituais Jesus Cristo ou Mahatma Gandhi.

Um desses seres que beiram a perfeição teve sua biografia transformada em longa-metragem. Divaldo – O Mensageiro da Paz (Brasil, 2019 – Fox) é um filme que retrata um ser humano exemplar que tem se dedicado de corpo e alma a acolher o próximo. Aos 92 anos, Divaldo Pereira Franco segue em atividade na Mansão do Caminho, a obra social do centro espírita Caminho da Redenção, erguido há 67 anos em Salvador e que presta diversos serviços além de ajuda espiritual a milhares de pessoas independentemente da religião. Hoje são 600 crianças acolhidas pela entidade filantrópica.

Ao contrário do popular Chico Xavier, o nome Divaldo é conhecido apenas entre os seguidores do espiritismo, mesmo tendo proferido dezenas de palestras ao redor do mundo e vendido mais de oito milhões de livros. Por isso, estava mais que na hora da cinebiografia sobre o médium entrar para o rol dos filmes espíritas.

O diretor Clovis Mello, que assina também o roteiro, conseguiu entregar uma obra correta e à altura do médium, tirando alguns tropeços perdoáveis. O longa foi baseado no livro Divaldo Franco: a Trajetória de um dos Maiores Médiuns de Todos os Tempos, de Ana Landi, e, assim como o filme Kardec (sobre o pai do espiritismo, lançado no primeiro semestre deste ano), também deveria ser visto por adeptos de qualquer doutrina ou religião. Primeiro por tratar de temas delicados, como o suicídio (lembrado neste mês pela campanha Setembro Amarelo), e pela visão que católicos e espíritas têm sobre a morte. Outro motivo está explícito no título do longa: a mensagem de Divaldo, que abdicou de uma vida tradicional para dedicar-se à filantropia, para levar um pouco de paz e amor àqueles que sofrem de carência, financeira ou afetiva.

O filme conta a trajetória do menino, nascido em Feira de Santana, Bahia, que desde os quatro anos de idade se comunica com os mortos e, por isso, precisa a aprender a conviver com o preconceito dos incrédulos. Pela mediunidade ter se manifestado cedo, conversar com a avó morta por exemplo era tão natural quanto bater um papo com um familiar de carne e osso.

Três atores interpretam o médium: João Bravo, na infância; na mocidade, Ghilherme Lobo; e pelo recifense Bruno Garcia, na fase adulta. A história é contada de forma linear e Mello mostra a evolução do caráter de Divaldo, com sua teimosia e orgulho presentes na juventude, até a aceitação da sua vocação e a posterior conquista da serenidade.

A escolha do elenco, aliás, foi decisiva para garantir coesão à trama e alcançar a empatia do espectador, principalmente em relação ao sotaque. Os pais de Divaldo, por exemplo, são interpretados por atores de teatro baianos. A mãe, dona Ana, é Laila Garin, que conduz sua personagem com uma doçura irresistível. Caco Monteiro é Seu Francisco, o pai severo, porém capaz de absorver ao longo do tempo as diferenças do filho.

Divaldo pertencia a uma família católica e, logo no início do filme, surgem várias críticas à igreja. Numa das cenas mais cômicas, o médium, na pele de Ghilherme, vê o espírito da mãe do padre com quem está se confessando. Curioso, o religioso pergunta como sua mãe está vestida e a resposta de Divaldo o faz se libertar de suas amarras.

O longa ainda mostra como o espírita recebeu apoio de pessoas queridas, verdadeiros “pontos de luz”: dona Ana é uma delas e representa a verdadeira mãe de sangue nordestino. Do início ao fim da sua vida, concede o apoio incondicional ao filho, quando, por exemplo, ele é convidado pela médium Laura (Ana Cecília Costa) ainda na adolescência a se mudar para Salvador para estudar a doutrina e trabalhar como datilógrafo. Outro que permaneceu ao lado do médium desde jovem foi o amigo Nilson.

Em sua jornada, Divaldo recebe orientações de sua guia espiritual, Joanna de Angelis, reencarnação de Santa Clara de Assis, a quem é atribuída a maior parte das mensagens psicografadas pelo baiano. A entidade é interpretada por Regiane Alves, que logo coloca os pingos nos is a Divaldo, alertando-o sobre as dificuldades, resistência e preconceito que enfrentaria. Por mais que a doutrina espírita evoque o livre-arbítrio, o filme nos leva a entender que Divaldo já estava predestinado e que ter filhos de sangue não estaria incluso na sua missão. Ele teria filhos de coração.

O contraponto de Joanna vem na forma do espírito obsessor incorporado pelo ator Marcos Veras, que soa um tanto caricato, vestido de preto, com maquiagem pesada e fantasmagórica. A alma assombra a mente de Divaldo, sempre atiçando-o para o lado negro. Outro ponto forçado é a trilha sonora, que parece ter sido escolhida a dedo para arrancar lágrimas dos olhos dos espectador mais sensível – como na cena em que Divaldo perde a sua mãe com “Ave Maria” ao fundo.

No geral, Mello preocupou-se em enfatizar a doutrina espírita em sua essência, de uma forma leve, graciosa e com diálogos bem-humorados. Porém, as falas de Regiane Alves, principalmente, fogem desse viés e soam um tanto cansativas, em tom de sermão. Em certas cenas, a atriz chega a perder o fôlego para dar conta do texto extenso.

Entre tantos ensinamentos transmitidos por Joanna a Divaldo, um deles é determinante para acolher em nosso cotidiano tão trivial, quando encarar alguns vivos chega a ser mais aterrorizante do que topar com uma alma penada. A melhor resposta para enfrentar a intolerância é o silêncio.