Mastodonte do synth pop perde Andrew Fletcher, seu mais discreto integrante e a fonte de segurança nos bastidores durante quatro décadas

Texto por Fabio Soares
Foto: Mute Records/Divulgação
Quando o baixista Andrew John Leonard Fletcher chamou o tecladista e compositor Vince Clarke para o pontapé inicial de um projeto musical em 1977, ambos não sabiam bulhufas o que viria a seguir. Eram tímidos jovens proletários em um buraco esquecido na Inglaterra, com inteligência acima da média e que tinham somente a música como companheira. Em todos os momentos. Tristes em sua maioria. O par de cérebros absolutamente centrados formou o No Romance In China e, logo em seguida, o Composition Of Sound, com a entrada do guitarrista Martín Gore. Era a época dos sintetizadores portáteis, logo adotados por todos eles. Instrumentos fabricados num país que nada tinha de tropical mas que possuíam uma eficiência abençoada por Deus e produziam, assim, um som bonito por natureza.
Mas nenhuma genialidade sintetizadora suficientemente seria capaz de chamar a atenção do público do que as figuras de dois nerds que não sabiam chutar uma bola. Era necessário apelo. Visual, visceral e sexual. Foi, então, que Vince chamou Dave Gahan para um teste. E foi nessa época também que o movimento de rotação da Terra passou a girar ao contrário. O mastodonte sonoro nascido em 1981 em Basildon, cidade-satélite de Londres, atenderia pela alcunha de Depeche Mode e passaria como um trator por quem cruzasse seu caminho.
Se os integrantes do Kraftwerk foram os Beatles da porra toda no cenário eletrônico, os meninos depecheiros foram os Rolling Stones da parada. E tamanha semelhança com a banda de Mick Jagger & Keith Richards fez com que o Depeche Mode tivesse até um clone de Charlie Watts pra chamar de seu: Andrew Fletcher.
No triênio 1994/1995/1996, a banda não acabou por um triz. O multi-homem Alan Wilder, um dos gênios de sua geração e o quarto elemento do grupo desde a saída de Clarke em 1982, picou a mula também. Dave Gahan se afundou em heroína. Martín Gore atravessava péssimo momento conjugal. Era necessário que alguém chamasse a responsa pro barraco não desabar. Andy chamou a responsa e evitou um naufrágio.
Ele foi muitas vezes alvo de piadas sobre sua incapacidade técnica à frente de um instrumento. Quem viu um concerto do grupo tinha a impressão de que sua performance não passava de um caô dos diabos! Dancinhas inverossímeis com os indicadores apontados para lugar algum. A aura blasé permeando toda a apresentação. O semblante assemelhado ao de um funcionário de cartório às quatro e meia da tarde de uma sexta-feira.
Era fake? Se era, foda-se! Todo fã de Depeche Mode sabe que foi a matadora discrição de Fletcher o fator preponderante para que a banda não acabasse antes da hora. Seu tino para gerenciar os bastidores foi tão importante quanto a performance de Dave Gahan como frontman. Não era virtuoso. Não era carismático. Não era falador. Era o mediador de conflitos perfeito. No momento certo. Na hora certa.
Recebi a notícia de sua morte no meio da Baía de Guanabara, a bordo de uma das barcas que fazem a travessia Niterói-Rio de Janeiro. Olhei para o lado e o sol, que durante todo o dia reinou soberano sobre solo fluminense, iria se por cercado de uma pancada de nuvens, na retaguarda, que é o verdadeiro lugar de um observador. E é dessa maneira que o gigantesco Andrew Fletcher me olhava enquanto rascunhava essas malfadadas linhas regadas a muita emoção e três gin tônicas na cabeça. Era a maneira pela qual ele queria ser lembrado: uma liderança paquidérmica, permeada por gestos diminutos e coberta pela magnânima atmosfera da razão.
Um general a serviço de nós! O máximo símbolo da expressão “menos é mais”. Você foi astro-rei sem ofuscar ninguém, Andy. E poucos na História exerceram este papel com tamanha maestria…
>> O falecimento do tecladista e fundador do Depeche Mode, Andrew fletcher, aos 60 anos de idade, foi comunicada pela própria banda em suas redes sociais na tarde desta última quinta-feira, 26 de maio de 2022. O motivo da morte não foi informado mas veículos internacionais como a Rolling Stone e o Pitchfork conversaram com fontes próximas ao trio que apenas confirmaram ter sido uma causa natural.
>> Clique aqui para ler a parte 1 da cobertura feita em 2018 pelo Mondo Bacana dos últimos shows da Global Spirit Tour, a última turnê do Depeche Mode
>> Clique aqui para ler a parte 2 da cobertura feita em 2018 pelo Mondo Bacana dos últimos shows da Global Spirit Tour, a última turnê do Depeche Mode
>> Clique aqui para ler a parte 3 da cobertura feita em 2018 pelo Mondo Bacana dos últimos shows da Global Spirit Tour, a última turnê do Depeche Mode