Music

Oficina de Música de Curitiba – ao vivo

Homenagem a Paulo Leminski e shows com Fernanda Takai, Maria Alcina, Criolo, Zélia Duncan, Edgard Scandurra, Relespública e Jovem Dionísio

Criolo

Textos por Abonico Smith, Diego Scremin e Janaina Monteiro

Fotos de Cido Marques/FCC (João Egashira + Fernanda Takai, Zélia Duncan + Estrela Leminski + Téo Ruiz, Edgard Scandurra + Relespública, Banda Sinfônica) , José Fernando Ogura/SMS (Jovem Dionísio) e Abonico Smith (Criolo)

Onze dias de incontáveis combinações de 12 notas na capital paranaense. Foram, ao todo, 120 cursos e 180 eventos (mais de uma centena com ingressos gratuitos) promovidos nesta última edição, a 41ª, da Oficina de Música de Curitiba. Entre os dias 25 de janeiro e 4 de fevereiro, números oficiais atestam que mais de 50 mil pessoas (sendo 2 mil só de alunos vindos de todos os lados do Brasil e também do exterior) fizeram parte da Oficina.

O Mondo Bacana esteve presente em sete dos concertos realizados no Teatro Guaíra e conta um pouquinho de como foi cada uma destas noites especiais.

Orquestra à Base de Cordas + Fernanda Takai e Sons Nikkei

Dentre os múltiplos projetos tocados ao mesmo tempo pela cantora e compositora do Pato Fu está o Sons Nikkei, grupo formado por músicos de Curitiba com o objetivo de pesquisar, tocar e espalhar a música de origem japonesa, seja ela do passado ou presente. Além dela e de João Egashira (cabeça da formação e diretor de toda a Oficina), estão outros músicos da capital paranaense. Flauta, shamisen e taikô são instrumentos que, ao se somarem às cordas ocidentais da Orquestra à Base de Cordas do Conservatório de MPB de Curitiba, compuseram um belo mix entre sonoridades orientais e um pequeno resumo da carreira da cantora. No repertório de canções gravadas por Fernanda, destaque para a estreia solo onde homenageava Nara Leão (“Ta-Hi”; “Trevo de Quatro Folhas”) e o disco mais recente (“Love Song”, parceria bilíngua do marido John Ulhoa com a ex-vocalista do Pizzicato Five Mari Nomiya; “Não Esqueça”, um afetuoso recado de pai para filha deixado por Nico Nicolaiewsky, músico gaúcho do duo Tangos & Tangédias) e um inusitado gran finale com a primeira reprodução já feita fora do Pato Fu de “Made In Japan”, prova de que isso não somente é possível como também a troca de timbragens eletrônicas por algo bem mais acústico. Na volta para o bis, a grande homenagem à pedra fundamental da música brasileira contemporânea, o marco zero fonográfico da bossa chamado “Chega de Saudade”. (AS)

Set list: “Oblivion”, “Ta-hi”, “O Ritmo da Chuva”, “Trevo de Quatro Folhas”, “Não Esqueça”, “A Paz”, “Arashi No Osoroshisa”, “Estúdio Nº 1/Melodia Sentimental/O Trenzinho do Caipira”, “The Path of the Wind/Summer”, “Tsugaru Yosare Bushi”, “Miagete Goran Yoru no Hoshi wo”, “Love Song”, “Menino Bonito”, “Odeon” e “Made In Japan”. Bis: “Chega de Saudade”.

João Egashira + Fernanda Takai

Orquestra à Base de Sopros + Zélia Duncan + Estrela Leminski + Téo Ruiz

Dentre as várias atividades exercidas por Paulo Leminski as mais celebradas são de poeta e escritor. Só que ele também deu valorosa colaboração para a música paranaense e curitibana. Instrumentista autodidata e letrista parceiro de muita gente boa, da cidade e de outros estados, que tocava pela capital paranaense nos anos 1970 e 1980, ele teve canções gravadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Ney Matogrosso, A Cor do Som, Guilherme Arantes, Itamar Assumpção, Zelia Duncan, Arnaldo Antunes e tantos outros nomes de peso da MPB. Por isso seu nome foi o grande homenageado desta 41ª edição da Oficina de Música. Um dos concertos realizados em memória de Paulo e suas obras recebeu no palco do Guairão no sábado 27 de janeiro a Orquestra à Base de Sopro do Conservatório de MPB local mais uma trinca especial de intérpretes: Estrela Leminski, seu parceiro de vida e melodias Téo Ruiz e mais Zélia Duncan. Revezando combinações ao microfone, a trinca mandou transformada em melodias toda a elegância verborrágica do pai de Estrela, como na trinca “Dor Elegante”, “Verdura” e “Sinais de Haikais”, programada ainda para a metade inicial. Esta, por sua vez, revelou-se uma boa mestre de cerimônias, com pequenas intervenções sem deixar o humor de lado (“Ainda penso em fazer uma tatuagem, talvez na testa, com ‘Verdura não foi feita pelo Caetano Veloso’ escrito”, mandou, referindo-se ao intérprete que eternizou a canção). Zélia, segundo Estrela “a pessoa que mais gravou músicas do Paulo”, ainda aproveitou a gentileza de uma brecha na homenagem para cantar duas outras não leminskianas de seu repertório (“Arnaldo Antunes não teria escrito os versos se ‘Alma’ se Leminski não houvesse existido”, disparou, sabiamente). E a noite que começou com dois momentos instrumentais da Orquestra à Base  de Sopros do Conservatório de MPB de Curitiba (duas obras assinadas pelo também paranaense Waltel Blanco, sendo uma chamada… “Estrela”) acabou com outras duas pérolas do homenageado: “Promessas Demais” (canção de abertura de uma novela da Globo na voz de Ney) e “Baile do Meu Coração” (sucesso de Moraes em seu auge pós-Novos Baianos). (AS)

Set list: “Anjos e Vampiros”, “Estrela”, “Dor Elegante”, “Verdura”, “Sinais de Haikais”, “Milágrimas”, “A Você, Amigo”, “Se Houver Céu”, “Luzes”, “Vou Gritar Seu Nome”, “Alma”, “Promessas Demais” e “Baile no Meu Coração. Bis: “Dor Elegante”.

Estrela Leminski + Zélia Duncan + Téo Ruiz

Relespública + Edgard Scandurra

O trio curitibano nunca escondeu que sua influência máxima no rock nacional sempre foi o Ira! Então, a oportunidade de voltar ao palco do Guairão durante a programação de concertos da Oficina de Música também foi a grande chance de rever o grande mestre em cima do palco. Scandurra aceitou e se uniu aos discípulos como o grande convidado daquela noite de 29 de janeiro, uma segunda-feira. No repertório, a grande surpresa: um grande desfile de lados B da carreira do guitarrista (seja com sua clássica banda ou em sua carreira solo discográfica) que, de uma maneira ou de outra, marcam um momento especial de sua vida naqueles anos da metade final da década de 1980. Claro que houve também espaço para um punhado de hits radiofônicos compostos por Edgard e registrados pela voz de Nasi. Na parte autoral que cabia a Moon, Ricardo Bastos e Fabio Elias, um começo matador com os grandes sucessos da Reles emendados logo de cara e sem dar tempo para a plateia respirar (“Dê Uma Chance Pro Amor”, “Nunca Mais”, “Garoa e Solidão”) e algumas canções de performance dividida com o paulistano que tenham a sua mão (“A Fumaça é Melhor que o Ar”, por exemplo, foi lançada em disco apenas pela Reles) ou predileção (“Sol em Estocolmo”, de Fábio, volta e meia é citada por ele como uma faixa que gostaria de gravar) ou participação em disco da Reles (“James Brown”). O set ainda reservou espaço para duas canções sixties do Who, reverência máxima de todos os quatro velhos mods. No fim de tudo, uma apresentação uma tanto quanto contida em jogo de cena, mas esbanjando sentimento em forma de técnica disposta em cada um dos instrumentos. Tanto que o encerramento se deu ao som da instrumental “Rumble”, lançada em 1958 por um dos primeiros heróis da guitarra no rock (Link Wray, considerado o pai dos power chords e do uso de distorção nas seis cordas). Uma curiosidade: nesta noite quem também brilhou foi a tradutora de libras no canto esquerdo do palco. Kerolyn Costa, que também trabalhou como coordenadora de uma equipe de 12 profissionais que esteve presente em mais de 40 apresentações, também era fã assumida da reles e do Ira!. Protagonizou um show à parte ao não economizar na atuação de caras, bocas e gestos para interpretar visualmente os versos cantados ao microfone. (AS)

Set list: “Dê Uma Chance Pro Amor”, “Nunca Mais”, “Garoa e Solidão”, “Minha Menina/Oraçao de um Suicida”, “Minha Mente Ainda é a Mesma”, “Sol em Estocolmo”, “James Brown”, “Capaz de Tudo”, ‘Saída”, “Casa de Papel”, “A Fumaça é Melhor que o Ar”, “O Girassol”, “Manhãs de Domingo”, ”So Sad About Us”. “Our Love Was”. “Abraços e Brigas”, “Ninguém Entende um Mod”, “Envelheço na Cidade”, “Eu Quero Sempre Mais”, “Núcleo Base”. Bis: “Dias de Luta” e “Rumble”.

Edgard Scandurra + Relespública

Banda Lyra + Maria Alcina

Ela saiu da Zona da Mata de Minas Gerais há pouco mais de meio século para subverter a ordem da música brasileira. Desafiando limites de gênero e a elasticidade de ritmos musicais, sua carreira sofreu com a implacável censura do regime militar lá no início e nesses últimos anos, entretanto, vem renascendo com uma série de CDs e DVDs ao vivo e de estúdio lançados por selos independentes. Às vésperas de completar 75 anos de idade e ganhar um longa-metragem biográfico no cinema, ela chegou à Oficina de Música como convidada da Banda Lyra e acabou chacoalhando as estruturas do Guairão e fazendo, na noite de terça, 30 de janeiro, um dos concertos mais intensos desta edição. Flutuando com leveza entre samba, choro, tango, rock, MPB e até polca, revisitou faixas gravadas nos dois primeiros álbuns, a fase oitentista de letras de duplo sentido, relembrou o discurso sociopolítico afiado de Caetano Veloso e, claro, terminou levantando alucinadamente a plateia com uma dobradinha de louvação rubro-negra de um então chamado apenas Jorge Ben. (AS)

Set list: “Piazzolla no Choro”, “Bonfiglio à Casa Torna”, : Um Chorinho em Cochabamba”, “A Voz da Noite”, “Eu Sou Alcina”, “Tome Polca”, “Como Se Não Tivesse Acontecido Nada”, “Kid Cavaquinho”, Fora da Ordem”, “Tropicália”, “Romeu e Julieta”, “Alô Alô”, “Chica Chica Boom Chic”, “Bacurinha”, “Prenda o Tadeu”, “Kataflam”, “Camisa 10 da Gávea” e “Fio Maravilha”.

Maria Alcina

Jovem Dionísio

O quinteto que há dois anos tomou de assalto a internet com o megahit “Acorda Pedrinho” teve na Oficina de Música uma grande oportunidade de mostrar que não é apenas uma one-hit band. Jogando literalmente em casa, já que os músicos são de Curitiba, o grupo ainda teve a oportunidade de estrear no Guairão na noite de quarta 3 de janeiro e demonstrar toda a sua energia quando faz um show. O começo se deu com uma projeção de carga emocional, que mostrava a trajetória até aqui por meio de programas de TV e matérias jornalísticas. Depois, o telão usou e abusou de efeitos e filtros mais a própria iluminação do palco. As performances eram muito dançantes, instigando a ginga e o requebrado. Mas no canto esquerdo do mesmo palco estava montada uma salinha, com mesinha e sofá, para dar aquela quebrada e instaurar uma aura mais intimista com arranjos acústicos para “Aguei” (colab com a dupla Anavitória, que, para a decepção de muitos dos presentes, não estava na capital paranaense para fazer aquele feat tão esperado) e “Pontos de Exclamação” (canção responsável pela popularização do grupo, ainda em 2020, iniciada por um momento solo e de improviso do tecladista Ber Hey). Claro que o encerramento se deu com “Acorda, Pedrinho”, uma homenagem ao recém-falecido muso inspirador da letra. O Guairão, todo de pé, não hesitou: jogou-se na dança e cantou em uníssono. (DS)

Set list: “Amigos Até Certa Instância”, “Belnini”, “É Osso”, “Tu Tem Jeito de Quem Gosta”, “Invisível/Não Dá Mais”,  “Copacabana”, “Cê Me Viu Ontem/Pastel”, “Aguei”, “Não Posso Dizer Que Te Amo”, “Algum Ritmo”, “Romance Frito”, “Por Dentro e Por Fora”, “Risco”, “Pontos de Exclamação” e “Acorda, Pedrinho”.

Jovem Dionísio

Classe de Banda Sinfônica

Uma noite de pura nostalgia (para adultos) e magia (para crianças). Foi assim a apresentação da noite de 2 de fevereiro. Sob a regência do maestro e professor Marcelo Jardim, quase 100 jovens talentos participantes dos cursos de Regência e de Prática de Banda se apresentaram para um Guairão lotado. No repertório, clássicos das animações vintage do cinema (sobretudo da Disney, incluindo Branca de Neve), até produções mais recentes do mesmo estúdio (A Bela e a Fera, O Rei Leão, O Corcunda de Notre Dame, Aladdin, Fantasia 2000 e Frozen). Também fizeram parte do programa algumas das chamadas Silly Symphonies (que compuseram uma série de 75 curtas-metragens em animação produzidos por Walt Disney entre 1929 e 1939), obras da Pixar e temas clássicos da TV (Simpsons, Flintstones). Claro que não poderia faltar também “A Pantera Cor-de-Rosa (composição esta que é atribuída a Herny Mancini, mas que teve um bom dedo do paranaense Waltel Branco, na época assistente do americano), popularizada nos anos 1960 pelas aberturas da franquia de filmes protagonizados pelo Inspetor Clouseau. Antes de iniciar o concerto, o maestro Marcelo Jardim destacou a relevância das animações. “Os desenhos tiveram uma grande importância para a qualidade sonora do cinema”, afirmou. Depois, onze alunos conduziram a orquestra, revezando-se na regência com Jardim, que também participou do concerto. A média de idade dos músicos impressionava, com jovens talentos de apenas 20 e poucos anos demonstrando a qualidade e o potencial da formação musical proporcionada pela Oficina de Música de Curitiba. E na penúltima música, “Os Pinheiros de Roma”, a plateia foi surpreendida com músicos posicionados nos balcões, fazendo com o som da orquestra ecoar literalmente por todo o teatro. (JM)

Set List: “Cartoons Overture”, “Disney Fantasy”, “Os Flintstones”, “A Pantera Cor-de-Rosa”, “Os Simpsons”,”A Bela e a Fera”, “Aladdin”, “Os Sinos de Notre Dame”, “O Rei Leão”, “O Pássaro de Fogo”, “Desenhos da Pixar”, “Os Pinheiros de Roma” e “Frozen”.

Classe de Banda Sinfônica

Orquestras da Oficina de Cordas e Sopros + Criolo

Emocionante é pouco para descrever o show de encerramento dos cursos da Oficina de Música. Teve até estudante que participou das orquestras no palco se debulhando em lágrimas ao final da apresentação. Também pudera. Com Kleber Cavalcante Gomes não poderia ser diferente. De fala baixinha e mansa, bom humor extremo e um carisma dos píncaros, Criolo acertou quando, logo no início, declarou que aquele seria um show para ser vivido intensamente e ter cada segundo aproveitado ao máximo. “A batida do coração desse povo vai ajudar na cadência”, disparou lá pelo meio, antes da execução de um dos clássicos mais bonitos do samba, “As Rosas Não Falam’. Por falar nisso, o rapper, que nos últimos anos vem se dedicando a interpretar esse outro gênero em seus concertos, sentou-se à frente e ao centro de alunos escolhidos e regidos pelos maestros João Egashira (cordas) e Paulo Aragão (sopros) para comandar um repertório de excelência no território do samba. Clara Nunes, Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Cartola, Pixinguinha, Adoniran Barbosa, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa e Demônios da Garoa estavam entre os autores e intérpretes homenageados no decorrer do set list. A parte das execuções instrumentais, quando Criolo não estava no palco, abriu espaço também para choro e polca, com obras de Jacob do Bandolim (que ressignificou o instrumento de origem europeia que lhe deu parte do nome artístico), Radamés Gnatalli e Ernserto Nazareth. O convidado especial da noite ainda foi agraciado com arranjos especiais para duas de canções autorais e também não conseguiu a emoção por conta disso. No fim da apresentação, um medley com três dos maiores hits do bairro paulistano do Bixiga levantou todo mundo da cadeira e transformou aquele restinho de Oficina em uma grande celebração em uníssono. Mas ainda era pouco: na volta para o bis, um matador gran finale com “Carinhoso” mostrou que certa estava a saxofonista hermana que tentava enxugar as lágrimas a todo instante. Foi não só de arrepiar a interpretação de Criolo. Foi também de fazer chorar. (AS)

Set list: “Pra Naná”, “Canto das Três Raças”, “Menino Mimado”, ”Barracão”, “Palpite Infeliz”, “Vibrações”, “Remexendo”, “Ameno Resedá”, “Agoniza Mas Não Morre”, “Folhas Secas”, “As Rosas Não Falam”, “Dilúvio de Solidão” e “Saudosa Maloca/Tiro ao Álvaro/Trem das Onze”. Bis: “Carinhoso”.

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João Donato

Músico elevou os limites da bossa nova e deixou o legado de uma discografia soberba mas não muito conhecida no Brasil

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Postei nas redes sociais no último dia 17 de julho: quando morre alguém da estatura de João Donato, a gente tem a certeza que a lacuna deixada dificilmente será preenchida. Senão vejamos. Donato, 88 anos, mais de 70 de carreira, ajudou a criar a bossa nova ainda em meados dos anos 1950. Foi um dos expoentes do “lado jazz” da bossa, composto por músicos brasileiros que deram suas próprias versões para o ritmo americano, ajudando a criar uma nova variante, que se casou com as experiências que vieram do lado de Jobim, Gilberto e cia. É correto dizer que a turma de Donato seria uma das responsáveis pelo que se chamou de samba-jazz nos anos 1960. E também é correto dizer que ele encontrou um espaço muito mais interessado e cheio de oportunidades nos Estados Unidos. E foi com Jobim que Donato viria a realizar a sua estreia em disco, Chá Dançante, lançada antes do estouro da bossa nova, em 1956.

João já era pianista profissional desde os 19 anos e liderava o Donato e seu Conjunto quando recebeu a oportunidade. A atuação de Jobim foi como curador do repertório do álbum, que seria lançado pela Odeon. Entre as canções escolhidas estavam No Rancho Fundo” (Lamartine Babo – Ary Barroso), “Carinhoso” (Pixinguinha – João de Barro), “Baião” (Luiz Gonzaga – Humberto Teixeira), “Peguei um Ita no Norte” (Dorival Caymmi). Dali em diante, ele iniciaria uma carreira de sucesso e prestígio, que o levaria para uma temporada nos Estados Unidos, tocando em cassinos e boates. Voltaria em 1962, com a bossa nova já estourada mundialmente. Ficou pouco tempo, regressando para a terra do Tio Sam e mantendo sua trajetória lá fora, já tendo na bagagem discos importantes como A Bossa Muito Moderna (1963) e The New Sound of Brasil (1965).

O trabalho mais surpreendente desta fase da carreira de Donato, que, na verdade, antecipa o momento que viveria na primeira metade da década seguinte, é A Bad Donato, lançado em 1970. É um disco surpreendente e impressionante, que mostra como João se tornara fluente no jazz moderno, quase tangente ao funk, com arranjos que também incorporavam psicodelia, trazendo versões diferentes para canções que, àquela altura, já se tornaram clássicos de sua lavra como “A Rã” e “Cadê Jodel?”. Os arranjos ficaram por conta de Eumir Deodato, uma estrela em ascensão na época , que recrutou gente como Bud Shank, Oscar Castro Neves, Dom Um Romão e Paulinho Magalhães para participar do álbum.

João voltaria ao Brasil em 1972 e lançaria os dois discos mais representativos de sua música no Brasil: Quem é Quem (1973) e Lugar Comum (1975). O primeiro é o grande trabalho de jazz samba que ele sempre desejou fazer, devidamente turbinado por suas vivências musicais acumuladas em mais de dez anos nos Estados Unidos. É o primeiro trabalho em que Donato canta, com produção de Marcos Valle e alternando clássicos como “A Rã” (cantada pela primeira vez, com letra de Caetano Veloso), “Cadê Jodel?”, “Me Deixa” (que recebeu letra de Geraldo Carneiro), o instrumental “Amazonas” e até uma composição inédita de Dorival Caymmi, feita especialmente para o disco, “Cala Boca Menino”. Em seguida veio o “disco baiano” de João Donato, Lugar Comum, cuja faixa-título já marcava sua parceria com Gilberto Gil. Outras duas faixas também receberam letra de Gil: “A Bruxa de Mentira” e “Emoriô”, esta última bem em sintonia com o momento pelo qual o baiano atravessava, a transição entre os álbuns Refazenda (1975) e Refavela (1976). Os dois ainda assinariam pelo menos uma canção de muito sucesso, cerca de dez anos depois: “A Paz”, que seria gravada por Zizi Possi e, posteriormente, por Gil em seu álbum Em Concerto, de 1987.

Falando nisso, Donato só regressaria ao disco cerca de vinte anos depois, compondo esporadicamente para outros artistas. Deste período é a nossa canção preferida de sua lavra, “Nasci Para Bailar”, que ganhou interpretação marcante de Nara Leão em 1982. Ele teria um belo álbum instrumental lançado em 1986, Leilíadas, totalmente dedicado à esposa, Leila, mas sua volta efetiva ao mercado fonográfico seria mesmo em 1995, com Coisas Tão Simples, no qual retorna aos clássicos dos anos 1960, gravaria inéditas (como a linda “Gaiolas Abertas”) e reveria canções mais recentes, caso da própria “Nasci Para Bailar”, que ele interpretaria com o filho, Donatinho, ainda bem jovem. Daí pra frente, ele lançaria dezenas de álbuns, entre registros ao vivo, discos de inéditas, colaborações e parcerias. A gente destaca A Blue Donato (2006, com interpretações minimalistas de alguns clássicos perdidos), Água (2011, bela colaboração com a cantora Paula Morelenbaum), Aquarius (2012, em parceria com Joyce Moreno, no qual os dois dividem repertórios), Donato Elétrico (2016, um discaço com canções arranjadas tendo o jazz fusion como linha-mestra) e a trinca mais recente de álbuns: Sintetizamor (2017, em parceria com Donatinho, numa pegada de funk-jazz oitentista), Síntese do Lance (em parceria com Jards Macalé) e o sensacional Serotonina, lançado em 2022, no qual Donato surge atemporal, totalmente sintonizado com novos parceiros, como Anastácia, Céu, Maurício Pereira e Rodrigo Amarante.

João Donato teve uma carreira impressionante e muito influente para a consolidação da música brasileira no exterior. Aqui, como vários outros contemporâneos seus, foi menos conhecido e reconhecido do que deveria. Por essas e outras, é necessário recomendar alguns destaques de sua vastíssima trajetória. Hoje e sempre. Obrigado, João.

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Astrud Gilberto

Cantora que popularizou a bossa nova no mundo todo deixa legado inestimável apesar de ter passado os últimos anos no isolamento

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Acordamos nesta terça-feira 6 de junho com a notícia triste do falecimento de Astrud Gilberto. Ela foi, durante um bom tempo, a cantora mais importante e conhecida do Brasil no exterior, responsável pela voz em “The Girl From Ipanema”, canção que popularizou a bossa nova em nível mundial, gravada em 1963. Filha de pai alemão e mãe brasileira, ele professor, ela instrumentista, Astrud já tinha certa familiaridade com a música, mas a participação no clássico de Tom Jobim e Vinícius de Moraes foi sua primeira gravação profissional, aos 22 anos. E aconteceu por acaso: na cabine de gravação do estúdio da Verve Records, em Manhattan, naquele dia 18 de março de 1963, estavam monstros como o produtor Creed Taylor, o letrista Norman Gimbel (que compôs a versão em inglês de “Garota de Ipanema”), o engenheiro Phil Ramone, além de João Gilberto (então marido de Astrud), o saxofonista Stan Getz e o próprio Tom Jobim. Taylor queria alguém para cantar a versão em inglês e Astrud se ofereceu para a tarefa. O resultado – um dueto entre João e Astrud – foi parar em Getz/Giberto, o álbum que catapultou a bossa nova para os Estados Unidos e, dali, para o mundo.

Este episódio, ainda que pareça o início de uma carreira brilhante, marca, na verdade, um grave caso de abuso. Astrud, inexperiente e jovem, recebeu apenas 120 dólares por sua participação em Getz/Gilberto. João, segundo Chega de Saudade, livro escrito por Ruy Castro, lucrou cerca de 23 mil dólares, enquanto Stan Getz arrebatou perto de um milhão de dólares. Além disso, a participação dela foi omitida dos créditos do álbum, mesmo sua interpretação sendo indicada ao Grammy como melhor gravação em 1964. Nos meses seguintes, ela integrou a banda de Getz em um papel secundário, ganhando mal, ao mesmo tempo em que via seu casamento com João terminar por conta da relação dele com Miúcha.

Felizmente, Astrud meio que renasceu em 1965, deixando a banda de Getz e todo o resto para trás, iniciando, de fato, uma carreira vitoriosa na Verve, tendo gravado, de 1965 a 1971, nada menos que oito discos solo – The Astrud Gilberto Album (que lhe rendeu mais uma indicação ao Grammy de melhor interpretação vocal, feminina), The Shadow Of Your SmileLook To RainbowBeach SambaA Certain Smile, A Certain SadnessWindySeptember 17, 1969 e I Haven’t Got Anything Better To Do – tendo a chance de trabalhar com luminares como Gil Evans e Walter Wanderley (e com Quincy Jones, em “Who Needs Forever”, tema de Deadly Affairthriller dirigido por Sidney Lumet. Além destes, Astrud também gravou dois álbuns para a CTI Records, Astrud Gilberto With Stanley Turrentine e Now, até 1972.

Os primeiros trabalhos, registrados até 1966, investem nos desdobramentos e interpretações de Astrud como uma cantora de bossa nova, pegando todos os standards possíveis do estilo e colocando-os a serviço de sua voz agridoce. A partir de A Certain Smile…, de 1967, os produtores começaram a enxergá-la como uma cantora versátil o bastante para se apropriar do cancioneiro pop mais universal da época. Não por acaso é deste álbum a bela versão dela para “Call Me”, cavalo de batalha interpretado por Chris Montez no ano anterior e gravado por todo mundo que importava naquele tempo. Neste disco ela trabalhou com o sensacional organista Walter Wanderley mas foi com Windy, de 1968, que esta transição ficou mais forte. Já na faixa-título Astrud surge triunfal, levando sua formosura também para “Never My Love” (ambas foram sucesso com o grupo Association) e até para uma releitura belíssima de “In My Life”, dos Beatles. Mesmo assim, ela não deixou seu repertório original de lado, trazendo “Chup Chup I Got Away”, “Crickets Sing For Anamaria” (ambas de Marcos Valle) e “Dreamy” (Luiz Bonfá) para compor o álbum.

Essa tendência se intensificaria nos trabalhos seguintes, com destaque para o impressionante September 17, 1969, um disco psicodélico e plural, no qual Astrud interpreta canções gravadas por Beatles (“Here, There And Everywhere”), Doors (“Light My Fire”), Harry Nilsson (com uma adorável “Don’t Leave Me”), Chicago (“Beginnings”), além de momentos realmente belos, como a versão anglo-francesa para “Love Is Stronger Far Than We” e o pequeno épico soft-psicodélico “Summer Sweet Parts 1 & 2”, espantoso para uma voz que, cinco anos antes, representava a garota de Ipanema no inconsciente das pessoas. Os álbuns gravados para a CTI são o ápice deste movimento. Mesmo que Creed Taylor, dono da gravadora, tenha sido um dos responsáveis pela exploração que Astrud sofreu no início da carreira, ele sabia muito bem que apostar no talento dela era garantia de sucesso. Em Astrud Gilberto With Stanley Turrentine, de 1971, ela passeia com graça e desenvoltura por um repertório que vai de Eumir Deodato a Bacharach/Davis, passando por Jorge Ben (com uma versão jazzística e sensacional de “Zazueira”), Edu Lobo e Milton Nascimento. Em “Now”, do ano seguinte, ela reinventa novos sucessos de Jorge Ben (“Take It Easy My Brother Charles”) e Milton Nascimento (“Bridges”, a versão em inglês de “Travessia”), sem falar em algumas composições autorais, como a ótima “Zigy Zigy Za”, uma reinvenção de “Escravos de Jó”, com viagens instrumentais deliciosamente pop e “Daybreak”, impressionante. Ainda são dignas de menção as versões para “General da Banda” (de Blecaute) e “Baião” (de Luiz Gonzaga). 

Depois deste álbum, Astrud iniciou um processo de reclusão. Ela ainda gravaria um disco em 1977, That Girl From Ipanema, tentando atualizar algumas composições dos tempos da bossa nova sem muito sucesso, mas realizando um sonho antigo: gravar com ninguém menos que Chet Baker, o que aconteceu na faixa “Far Away”. Ao longo dos anos seguintes, ela se apresentou com seu repertório mais clássico em poucos festivais de jazz na Europa e nos Estados Unidos, gravou com a James Last Orchestra em 1986 e parecia fadada ao esquecimento, quando participou da campanha contra a aids promovida pela Red + Hot Organization, sendo convidada para gravar “Desafinado” por um fã recente, George Michael. No ano seguinte, Astrud realizou mais um disco solo, Temperance, em 1997 e anunciou sua aposentadoria permanente dos palcos e aparições públicas em 2002, após lançar um último e fraco álbum, Magya.

Os últimos tempos, no entanto, foram extremamente difíceis para Astrud Gilberto, que completou 83 anos em março deste ano. Suas experiências no mundo da música a afetaram profundamente e prejudicaram sua confiança nas pessoas, tendo feito vários álbuns sem contratos formais, apenas acreditando na palavra dos contratantes e produtores. Recebeu menos do que deveria, teve muito menos créditos como compositora do que merecia. Ela viveu seus últimos dias isolada, em seu apartamento com vista para o rio, na cidade americana da Filadélfia, com a companhia de um gato e as visitas e ligações dos filhos. Acabar isolada e desconhecida é um destino doloroso para uma artista tão exuberante, que seu filho João Marcelo a descreve com razão como “a cara e a voz da bossa nova para a maioria do planeta”. Ela merece ser homenageada como uma cantora que trouxe alegria ao mundo com uma música que, em suas próprias palavras, deu a todos “romance e sonho”.

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Azymuth

Baterista Mamão foi o arquiteto da fusão rítmica que abriu diversas possibilidades estéticas para a música brasileira dos anos 1970 em diante

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Far Out/Divulgação

Acordar com a notícia da morte de um gigante como Ivan Conti (Mamão) não é pra qualquer um. E foi exatamente o que aconteceu hoje, em meio a mensagens emocionadas de sua esposa Sandra e de sua gravadora, a Far Out Recordings, colocando-o como um dos maiores bateristas de todos os tempos. Não é exagero, visto que Mamão foi um dos arquitetos da fusão do samba-jazz com o funk e, a partir daí, com uma vastidão de possibilidades estéticas que vieram na segunda metade dos anos 1970. Até então, ele já fizera parte de vários conjuntos e, junto com Alex Malheiros e José Roberto Bertrami, integrava o Azymuth desde 1968. Cinco anos depois, a banda estrearia em disco com O Fabuloso Fittipaldi, acompanhando Marcos Valle.

Os músicos do Azymuth eram muito requisitados para tocar em álbuns de outros artistas, de Erasmo Carlos a Raul Seixas. Apesar do sucesso nacional que tiveram em 1975, quando “Linha do Horizonte” se tornou hit por conta da trilha sonora da novela Cuca Legal, o grupo demorou para ser reconhecido por aqui. Precisou chegar aos anos 1990 para que a cena dos clubes ingleses enxergasse o brilhantismo dos álbuns que a banda continuou a gravar durante as décadas de 1970 e 1980 para que o trio ganhasse notoriedade por lá e, num movimento “de fora pra dentro”, ser valorizado por aqui. O Azymuth vinha produzindo álbuns com regularidade nos últimos anos, mesmo após a morte de José Roberto Bertrami em 2012, tendo chamado Kiko Continentino para assumir suas funções. O próprio Mamão chegou a gravar, também pela Far Out Recordings, um belo álbum solo em 2019, chamado Poison Fruit, no qual seus companheiros de banda tocam todos os instrumentos.

No ano passado, o baterista participou do show de Marcelo D2 no festival MITA e se apresentou com sua banda aqui no país e lá fora. O Azymuth, agora, preparava-se para uma turnê mundial de comemoração dos 50 anos da banda. Faria um concerto no Blue Note de São Paulo no próximo dia 24 de abril.

Mamão era ótima praça, talentosíssimo e cheio de vida. Vai fazer falta aqui neste mundo cada vez menos povoados por seres como ele. Obrigado, meu caro.

Music

Burt Bacharach

Homenagem ao autor de dezenas canções que viraram inesquecíveis clássicos da música pop do século 20

Textos por Abonico R. Smith

Foto de Leandro Delmonico/Mondo Bacana (show em Curitiba) e reprodução (com os oscars)

O final da manhã desta quinta-feira, dia 9 de fevereiro, trouxe a notícia de mais uma perda de um integrante estelar na história da música pop do século 20 nessas intensas semanas dos últimos três meses. Depois de Terry Hall (Specials), Thom Bell (produtor, criador do Philadelphia soul), Tim Stewart (cofundador da Stax), Vivienne Westwood (estilista, mentora do visual dos Sex Pistols), Alan Rankine (Associates), David Crosby (Byrds, Crosby Stills & Nash/Crosby Stills Nash & Young), Jeff Beck (Jeff Beck Group, Yardbirds) e Tom Verlaine (Television), chegou a vez deste plano espiritual se despedir de Burt Bacharach. O maestro, pianista, arranjador, compositor e cantor faleceu de causas naturais, aos 94 anos de idade, em Los Angeles, onde morava.

Bacharach e seu parceiro e letrista Hal David criaram centenas de canções a partir do final dos anos 1950 que os colocaram no panteão dos grandes times de compositores da música em todos os tempos. Em popularidade, talvez só tenham rivalizado com John Lennon e Paul McCartney.

Para homenagear este magistral artista, o Mondo Bacana reposta uma resenha de uma década atrás, que analisa como foi o concerto realizado por ele em terras curitibanas, durante sua última passagem pelo Brasil, em abril de 2013. Aqui estão descritos todos os porquês de sua genialidade, que residirá para sempre no inconsciente coletivo do cancioneiro internacional.

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>> Texto originalmente publicado pelo Mondo Bacana em abril de 2013

Burt Bacharach – ao vivo

O roteirista Charlie Kaufman escreveu o filme Being John Malkovich (1999), no qual se descobria um portal que levava para dentro da mente de um dos mais cultuados diretores e produtores das últimas décadas do cinema dos EUA. No fim da noite daquela terça-feira 16 de abril de 2013 muita gente deve ter saído do Teatro Positivo, em Curitiba, querendo achar uma entrada secreta para a cabeça de outro ícone do entretenimento americano: o maestro e pianista e arranjador e compositor e cantor Burt Bacharach.

Ele é um dos grandes gênios da canção do século 20. Entre as décadas de 1960 e 1980, compôs quase uma centena de músicas capazes de grudar no cérebro humano como um chiclete e de lá nunca mais sair em tempo algum. São melodias, riffs e letras (grande parte delas sobre o amor e suas variáveis) que qualquer pessoa que tenha prazer em ouvir música popular já escutou por aí na vida e nunca mais conseguiu se esquecer. Não adianta. Estão lá, guardadas em algum cantinho. Em algum momento você vai acabar se lembrando disso. Mesmo que não saiba quem é Burt Bacharach e que quem criou foi ele.

Burt está hoje com 84 anos de idade. Muito lúcido e surpreendentemente ainda na ativa. Não só viajando pelo mundo para apresentar ao vivo suas grandes criações. Mas ainda compondo, arranjando e gravando obras inéditas, como o musical Some Lovers, que estreou em um teatro de San Diego no ano passado. Atualmente ele trabalha ao lado do fã e discípulo Elvis Costello, um dos grandes nomes revelados durante a explosão do punk rock inglês na segunda metade dos anos 1970.

Curitiba foi a primeira das três cidades a receber a nova passagem de Bacharch pelo Brasil. Na capital paranaense, o show foi um pouco mais curto do que no Rio e em SP, já que o maestro chegara pouco tempo antes. Ele mesmo brincou a respeito disso em uma de suas conversas dirigidas à plateia: “música é bom para tudo nesta vida, até mesmo para fazer passar o jet leg”. Mesmo assim, o que se viu foi uma inacreditável sequência de 31 canções, quase todas com extremo poder para seduzir imediatamente quem as ouve. Afinal, não se cria à toa uma extensa coleção de prêmios como o Grammy (seis), Emmy (um), Globo de Ouro (dois) e Oscar (três).

À frente de sua competente banda de apoio formada por sete outros músicos e três vocalistas, o set list foi daqueles de deixar o espectador sem fôlego. Uma porrada atrás da outra, sempre com socos fortes e muitas vezes sem interrupção, chegando a emendar várias canções em um mesmo medley. Burt ainda pode se dar ao luxo de interpretar seus greatest hits não por inteiro, mas apenas através de seus trechos mais marcantes. E é impressionante também a precisão da distribuição dos instrumentos nos arranjos. O piano e os teclados cumprem o lado harmônico (vale lembrar que não há a presença das cordas da guitarra ou do violão) e o flugelhorn (sopro da família dos metais de trompetes) acaba sendo bastante privilegiado durante a execução de muitos riffs. Bateria e baixo assumem escancaradamente a função de cozinha e dão a cama rítmica que passeia entre a bossa nova, o rock, o jazz e outros grooves derivados dos negros norte-americanos.

No meio de tudo isso, Burt se concentra tanto em cada música que ele entra no espírito de cada uma dela durante a interpretação. E quando o momento é só seu, tocando piano e cantando sem qualquer acompanhamento como em “Alfie”, ele eleva o transe à plateia, que fica enfeitiçada e em silêncio absoluto só para curtir as emoções da viagem particular do astro da noite.

Este arsenal de hits planetários que ficaram célebres nas vozes de cantores como Dionne Warwick (sua principal e mais conhecida intérprete até hoje), Aretha Franklin, Dusty Springfield, Tom Jones, Walker Brothers, BJ Thomas, Barbra Streisand, Whte Stripes e Carpenters (e os Beatles!) ou trilhas sonoras de filmes de sucesso produzidos em Hollywood (Butch Cassidy & Sundance Kid; Alfie; Arthur, o Milionário; O que é que há, Gatinha?) foi quase todo assinado em parceria com o letrista Hal David, falecido em setembro de 2012, aos 91 anos de idade. Iniciada em 1957, a alquimia entre Hal e Burt se transformou em uma das mais bem-sucedidas crias do Brill Building, prédio nova-iorquino no qual compositores batiam ponto diariamente como trabalhadores e tinham como função a criação de obras musicais inéditas para serem gravadas, ali mesmo, por diversos cantores e grupos de pop e rock do final das décadas de 1950 e 1960.

Isso explica toda a classe e maestria das composições de Bacharach: o trabalho apurado de lapidação autoral e a adoção de uma rotina de labuta constante em busca da melhor resolução musical entre acordes, melodias e palavras para se encaixar na métrica. Ele diz que pensa em música em todas as horas e já criou hits até quando estava no trânsito. Deve ser mesmo algo fenomenal descobrir o que se passa – e o que já se passou nas últimas seis décadas – dentro de sua cabeça.

Set List: “What The World Need Now Is Love”, “Don’t Make Me Over”, “Walk On By”, “This Guy Is In Love With You”, “Save A Little Prayer”, Tranis & Boats & Plains”, “Wishin’ & Hopin’”, “Always Something To Remind Of”, “One Less Bell To Answer”, “I’ll Never Fall In Love Again”, “Only Love Can Break A Heart”, “Do You Know The Way To San José?”, “Anyone Who Had A Heart”, “I Don’t Know What To Do With Myself”, “Waiting For Charlie To Come Home”, “My Little Red Book”, “(They Long To Be) Close To You”, “The Look Of Love”, “Arthur’s Theme”, “What´s New, Pussycat?”, “The April Fools”, “Raindrops Keep Fallin’ On My Head”, “The Man Who Shot Valance”, “Making Love”, “Wives And Lovers”, “Alfie”, “A House Is Not A Home”, “That’s What Friends Are For”. Bis: “Every Other Hour”, “Hush”, “Any Day Now” e “Raindrops Keep Fallin’ On My Head”.