Movies, teatro

A Tragédia de Macbeth

Joel Coen filma clássica peça de Shakespeare e volta a suscitar o debate sobre a diferenciação entre palcos e telas

Texto por Luca Passos

Foto: Apple TV+/Divulgação

Mais uma adaptação do teatro ao cinema, mais uma abertura para voltar à discussão que exercita mãos e bocas de estudiosos das duas artes há tempos: a diferenciação essencial dos palcos e das telas. O rótulo pejorativo “teatro filmado” seguiu por muito tempo, dentro da crítica de cinema, aqueles filmes que não se propunham a ser mais do que uma captação da imagem dos atores e das atrizes e a gravação de suas falas. Ao contrário, o filme real deve, idealmente, tratar o material-fonte escrito – seja uma peça ou um roteiro – de modo a se utilizar do específico do cinema enquanto arte, assim não apenas justificando a escolha da mídia, mas também, pela própria consciência desse dever que o diretor traz, realçando a obra em todos os seus aspectos. Resta-nos, portanto, tentar desvendar se esta nova gravação de uma das mais famosas peças shakespearianas, A Tragédia de Macbeth (The Tragedy Of Macbeth, EUA, 2021 – Apple TV+), consegue tal feito, seja a conquista ao menos parcial. 

Como acontece com toda boa história, são necessárias poucas palavras para fazer um resumo: o enredo versa sobre a ascensão e queda do regicida Macbeth (Denzel Washington), apoiado em sua crescente loucura de ambição pela não menos ambiciosa Lady Macbeth (Frances McDormand). A trama é profetizada logo nos minutos iniciais do filme pelas famosas Bruxas (interpretadas corporal e espetacularmente por Kathryn Hunter) e também é sustentada por elas, que vêm e voltam durante todo o filme. A grande espiral de paranoia e arrependimento em que o casal principal cai durante todo o filme tem grande vazão visual: os delírios, sonoros ou visuais, são constantes. Essa descida é acompanhada por um vasto mosaico de personagens secundários e terciários que orbitam o centro de poder e lamentação dos Macbeth. No entanto, a vida na nobreza, com seus títulos, seus castelos e seu jogo político, não parece ser mais que um adorno da profunda exploração da natureza humana que permeia tanto a peça original quanto, mais por consequência do que por mérito, o filme.

Nesse sentido, o diretor (e também roteirista) Joel Coen, no primeiro esforço sem seu irmão Ethan, agora aposentado da cadeira de diretor cinematográfico, filma a história de aproximadamente 400 anos com um grande acento minimalista, elaborando cenários que oferecem apenas o essencial à mise en scène. O apelo dos filmes do diretor Carl Theodor Dreyer, fortemente influenciado pelo teatro, é crucial ao diretor, que faz como o dinamarquês ao sobrevalorizar a atuação, o rosto dos atores e das atrizes. A câmera de Coen não investiga as pessoas que filma, são essas mesmas pessoas que parecem investigar as palavras que saem de suas bocas, e nós apenas observamos esse espetáculo. É, de fato, espetacular acompanhar atores e atrizes do peso dos protagonistas interpretarem personagens que já passaram nos corpos de tantos outros. Mas um filme não pode ser só isso. Existe ainda o risco de se cair no teatro filmado.

O mais velho dos Coen sabe bem usar e movimentar sua câmera e uma composição cadenciada de luz e sombra, a repetição variada de certos elementos geométricos, o som abafado, o desfoque dramático. Mas para quê, exatamente? Em que espaço sua câmera se projeta? De onde vêm a luz e a sombra? No coração de quem elas guerreiam? Esse drama, essa tragédia toda reflete algo ou é apenas o trabalho desinteressado sobre um texto, este sim, profundo? Há, pelo que parece, uma grande fábrica subterrânea nos galpões da A24 (produtora do filme) onde se confecciona um verniz que é aplicado na maioria das obras por ela executadas, um produto que se passa sobre cada obra a ponto de fazê-la brilhar para os prêmios e festivais. Um plasma que encapsula tudo o que é de bom gosto. Não há como mentir: os planos do filme são agradáveis, vistosos, e serviriam, sim, como um bom papel de parede, uma fotografia no centro da sala, perfeita em si mesma como adereço. Porém, o cinema não é o teatro filmado de modo aprazível. O cinema é o que vaza.

É estranho que o texto de Macbeth caia como uma luva na filmografia de Coen – a história da ambição de um homem e sua posterior derrocada apenas transposta dos rincões estadunidenses para a Escócia feudal – e, mesmo assim, o diretor patina ao tentar dar uma significância cinematográfica às palavras do texto de Shakespeare. Tudo cai no vazio dos símbolos imagéticos que já nascem esgotados e teimam em se repetir durante todo o filme, como se Joel quisesse que víssemos neles a essência do texto de William Shakespeare. Se isso fosse verdade, Macbeth, enquanto obra, nunca teria chegado nestes tempos. No entanto, ele bem consegue fazer de todos esses cacoetes ancorados tão somente nas atuações dos personagens o centro de seu filme. Diferente do já citado Dreyer, que compreende os espaços como jogos cênicos, mesmo que sejam quase vazios, Coen realmente faz suas personagens e imagens ficarem presas a um nada.Tudo o que aparece no filme é um mundo que não existe sequer em si mesmo, e que, no entanto, não tem a menor força de atração: é frio e esquemático, algo que repele, mas que ao mesmo tempo temos que acompanhar, por ser a única coisa disponível.

Tudo fica, portanto, contido em si mesmo, nada vaza ou se sobressai de sua própria aparência num estado sentimental. As próprias atuações são, como já disse, atuações. Nunca nos vendem algo fulcral: a realidade. A filmagem vira também um teatro, passível de desacobertamento pelo público durante o próprio ato da projeção: pecado capital do cinema. Tal qual o personagem Macbeth, que às cegas tenta lutar contra seu destino já prenunciado pelas Bruxas, também o diretor parece se debater inutilmente, já desde o começo, contra uma obra que excede muito às suas capacidades enquanto realizador. 

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