Movies, Music

Nosso Sonho – A História de Claudinho & Buchecha

Não há como não se emocionar com a trajetória de sofrimento e perseverança da dupla que levou o funk carioca a outro patamar

Texto por Abonico Smith (com colaboração de Luciano Vitor)

Foto: Manequim Filmes/Divulgação

Na segunda metade dos anos 1980, quando o hip hop se popularizou nos Estados Unidos para muito além dos guetos, seus versos também sofreram um processo de transformação. Passaram das crônicas do dia a dia de seus habitantes – que variavam entre a celebração das festas dos finais de semana ao vício em drogas – para críticas sociais bem mais pesadas em profundas, retratando preconceito racial e os frequentes confrontos violentos com a polícia pelas ruas dos bairros de periferia. Até que o gangsta rap tornou-se praticamente sinônimo desse gênero musical.  Entretanto, uma turma oriunda de Miami e região começou a fazer sucesso ao optar por outra vertente lírica: a temática sexual, muitas vezes de modo bem explícito.

Logo, o miami bass – o nome foi dado por conta dos graves pesados embalados por uma batida eletrônica minimalista extraída de uma Roland TR-808, a mesma utilizada por nomes clássicos do electro como Afrika Bambaataa e Mantronix  – foi o incorporado ao léxico sonoro dos bailes funk realizados nas favelas e morros do Rio de Janeiro por equipes de som como a Furacão 2000 (que também investia em programas de TV). A malícia e a malemolência do jeito carioca de ser encontraram identificação imediata e então o funk caiu no gosto do carioca, a ponto de se tornar uma nova vertente musical acoplando o gentílico ao batismo.

Com o Plano Real e a troca definitiva do formato usado pelo mercado fonográfico (os compact discs substituindo os vinis nas lojas e se multiplicando feito chuchu na serra nos ambulantes com produtos piratas), o funk carioca logo cruzou fronteiras tanto estaduais quanto socioeconômicas, emplacou os primeiros hits nas rádios de todo o país e fabricou seus primeiros ídolos, como Abdullah, Mr Catra e Cidinho & Doca (“Rap das Favelas”). Aos poucos, por causa de linhas melódicas mais adocicadas e letras de cunho romântico, uma turma instaurou o segmento do funk melody. Assim se consagraram MC Marcinho (“Glamurosa”, “Garota Nota 100”) e Claudinho & Buchecha (“Quero Te Encontrar”, “Só Love”). Esta última dupla chegou a ultrapassar a marca do disco triplo de platina (750 mil cópias) com os dois primeiros álbuns e duplo de platina (500 mil) com o seguinte. Tudo isso num espaço de apenas três temporadas, entre os anos de 1996 e 1998. O quarto trabalho, registrado ao vivo e com repertório que pegava o melhor já feito até então, foi lançado no comecinho de 1999 e ganhou o disco de ouro (100 mil).

Onipresentes em quase todos os programas musicais da TV (inclusive os mais famosos, como os de Faustão, Xuxa, Gugu, Hebe e Eliana), os dois amigos do complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, voltariam a experimentar o gostinho de mais um hit nacional, “Fico Assim Sem Você”, composta pelo funkeiro pioneiro Abdullah. A letra citava duplas e dobradinhas impensáveis se rompidas (futebol sem bola, Piu-Piu sem Frajola, circo sem palhaço, beijo sem amasso, Romeu sem Julieta, queijo sem goiabada) para falar sobre solidão e incompletude. Contudo, como uma espécie de premonição (tão involuntária quanto sorrateiramente certeza), havia aqui também um verso como “Buchecha sem Claudinho”. A faixa foi incluída no sexto álbum Vamos Dançar, lançado no primeiro dia de abril e 2002. Pouco mais de três meses depois, ao retornar de uma apresentação na cidade paulista de Lorena, situada no Vale do Paraíba, próxima do sul do estado do Rio de Janeiro, veio a tragédia: o carro de propriedade de Claudinho saiu da estrada naquela madrugada chuvosa de 13 de julho e chocou-se violentamente contra uma árvore. O cantor, que dormia no banco do carona, morreu na hora com o impacto do acidente. A van em que estavam Buchecha e o resto da equipe dos artistas, viajava logo atrás. Encerrava-se desta maneira a trajetória de glória, fama e conquistas de uma das duplas mais queridas da música brasileira dos anos 1990.

Nosso Sonho – A História de Claudinho & Buchecha (Brasil, 2023 – Manequim Filmes) chega nesta semana aos cinemas justamente para contar esta trajetória. Da sólida amizade de infância ao instante fatal, passando pelo sonho adolescente de vencer na vida (fosse como artistas ou, no caso de Buchecha, trabalhando com carteira assinada como office boy) e superar traumas pessoais ligados a problemas de violência familiar e a tênue proximidade com o crime. De um lado o garoto expansivo e descontraído, que se joga nas atividades e inventa soluções criativas para fazer as coisas darem certo (como na já famosa cena do orelhão público servindo como telefone da “firma de agenciamento artístico”). Do outro, um guri mais tímido e racional, mas não menos talentoso e habilidoso com as palavras (a ponto de procurar e achar no dicionário termos nada usuais como abjudicar, só para usar em suas letras). Assim, a vida de Claudio Rodrigues de Mattos e Claucirlei Jovêncio de Sousa é contada em quase duas horas de maneira leve, descontraída e tão certeira quanto as canções gravadas por eles.

A química entre os dois protagonistas é tão impressionantes quanto a dos biografados. Poucas vezes, inclusive, foi visto no cinema nacional uma interpretação tão visceral quanto a de Lucas Penteado na pele de Claudinho. O jeito despachado e de eterno moleque, a língua presa, o sonhar que se permite voar alto e ir atrás para cavar as oportunidades e consegui-las. Mesmo não sendo o foco maior na narrativa, acaba por hipnotizar qualquer espectador. Já o contido Buchecha de Juan Paiva também cativa e conquista um lugar especial para quem assiste ao filme. Dividido entre o temor pela instabilidade da vida de artista e o grande respeito às responsabilidades e obrigações carregados junto com o status social de sua profissão (inclusive na hora de compor versos de pura genialidade como “controlo o calendário sem utilizar as mãos”), o jovem também narra várias cenas e tem sua vida pessoal mais esmiuçada no roteiro. Suas dificuldades são transpassadas na tela diretamente ao coração de todos nós, principalmente na turbulenta relação com o pai, que junta na mesma equação amor, perdão, abusos e sofrimento. Curiosidade: os dois atores trabalharam juntos em Viva a Diferença, a mesma (cultuada e bem-sucedida) temporada de Malhação que revelou a forte união em cena das cinco atrizes que depois viriam a fazer a série As 5ive.

O time de coadjuvantes também brilha. Tal como Lucas, Nando Cunha cresce nas cenas intensas em que faz o Buchechão, muitas delas também envolvendo a paixão pela música. Antonio Pitanga (Seu Américo, o dono do bar frequentado pelo pai de Claucirlei); Tatiana Tiburcio (a mãe, Dona Etelma, que sempre quer imprimir ao adolescente Buchecha uma vida correta e digna); Lellê e Clara Moneke (as namoradas/esposas dos astros, em pequenas grandes pontas); Marcio Vito e Isabela Garcia (Seu Toco e Dona Judite, respetivamente o patrão e a chefe do jovem office boy) abrilhantam o elenco com atuações fidedignas. Se o roteiro não sai muito do trivial, o diretor Eduardo Albergaria aproveita diálogos, interpretações e pequenos trechos musicais (cantados pelos próprios Lucas e Juan, diga-se) para fazer seu filme voar junto com a dupla de funk melody.

Acompanhar todo o corre vivido por Claudinho & Buchecha faz a gente traçar paralelos com a perseverança, a luta, o sonho e o sofrimento de outros artistas que vieram do underground da música brasileira, lendas como Cartola e Lupicínio Rodrigues ou gente contemporânea como Negro Leo e Lê Almeida. O longa sobre a inocência e a descoberta de um novo mundo para quem veio de uma das muitas comunidades regionais sem a assistência do poder público é um dos mais belos e emocionantes enredos cinematográficos nacionais deste ano.

Music

Gal Costa

Oito motivos que confirmam a suprema importância da cantora na história da música popular brasileira das últimas décadas

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução/Divulgação 

O país todo foi pego de surpresa com a notícia da morte de Maria da Graça Costa Penna Burgos na manhã desta quarta-feira, 9 de novembro. Gal Costa faleceu aos 77 anos, em sua casa, na cidade de São Paulo. A causa não foi revelada pela sua assessoria, mas sabe-se que a cantora estava se recuperando de uma recente cirurgia para a retirada de um nódulo na fossa nasal direita. Por conta disso, cancelara seus compromissos oficiais neste mês, como uma passagem pela Europa com a turnê As Várias Pontas de uma Estrela (na qual relembrava grandes sucessos da MPB dos anos 1980) e a participação no festival Primavera Sound São Paulo, realizado no último final de semana.

A voz tamanha de Gal Costa fazia muita gente creditar a ela a condição de maior cantora do Brasil. Nascida em 26 de setembro de 1945, ela estreou nos palcos aos 18 anos de idade, ainda em Salvador. O espetáculo, chamado Nós, Por Exemplo, era formado por jovens músicos locais que tinham a intenção de renovar a música popular brasileira, ainda fincada nos pilares bossanovísticos de alguns anos atrás. Além de assinarem a direção artística, Gilberto Gil e Caetano Veloso também participavam do elenco. A turma ainda contava com Maria Bethânia, Tom Zé e Carlos Lyra (que propunha estabelecer uma conexão entre canções de Milton Nascimento e a obra gravada por ela). Já transitando no eixo Rio-São Paulo, anos depois, fez parte da Tropicália, movimento que a levou a iniciar a carreira fonográfica. Deixou mais de 40 discos gravados, entre produções inéditas de estúdio e registros ao vivo.

Em homenagem a Gal, o Mondo Bacana destaca oito motivos de sua suma importância na história da música em verde e amarelo das últimas seis décadas.

Resistência tropicalista

Quando Gil e Caetano optaram por deixar o país para continuarem vivos e produzindo no exílio europeu naquele comecinho de 1969, coube a Gal liderar a resistência da Tropicália em solo brasileiro. Neste ano lançou seu primeiro álbum de estúdio de fato (antes, gravara um dividido com Caetano), considerado um dos mais importantes trabalhos da música popular brasileira. Gal seguiu a cartilha dos amigos e achou o ponto de fusão exato entre as sonoridades brasileiras (bossa nova, xaxado) e vertentes que rolavam solto no eixo anglo-americano (psicodelismo, soul). Com a direção assinada pelo maestro Rogério Duprat e nomes como Lanny Gordin e Jards Macalé na banda de apoio. Além de releituras personalíssimas de “Sebastiana” (Jackson do Pandeiro), “Namorinho de Portão” (Tom Zé), “Se Você Pensa” (Roberto e Erasmo Carlos) e “Que Pena (Ela Já Não Gosta Mais de Mim)” (Jorge Ben). São deste disco outros três clássicos supremos da Tropicália, todos compostos por Caetano. “Baby”, “Não Identificado” e “Divino, Maravilhoso”. O último, também assinado por Gil, transformou-se em hino da resistência aos anos de chumbo pós-AI-5. Suas estrofes alertavam para a mão pesada do regime militar no Brasil, enquanto o refrão decretava “É Preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte”. Por isso, a composição é celebrada até hoje, mais de meio século depois de estremecer as estruturas da quarta edição do Festival da Record, realizada em 1968.

Fa-Tal – Gal a Todo Vapor

Álbum duplo lançado em 1971, o segundo de toda a história da música brasileira. Com pouco mais de uma hora de duração, traz o registro, na íntegra e com direito a erros e improvisos, de uma noite de série de concertos realizada em dez semanas no Teatro Tereza Rachel no Rio de Janeiro. Sob a batuta criativa do poeta Waly Salomão, então com apenas 28 anos e um dos principais nomes daquele período da contracultura brasileira, Gal tinha a companhia de uma banda de bambas como Jorginho Gomes (irmão de Pepeu e também integrante dos Novos Baianos) na bateria, Novelli no baixo e Lanny Gordin na guitarra e assinando os arranjos. Lanny, então com apenas 20 anos de idade, já demonstrava ser um monstro nas seis cordas, o que se prova com toda a quebradeira jazzy deste disco. Na primeira parte do concerto, Gal apresenta-se sozinha ao violão, sentada de pernas abertas, mesclando sambas tradicionais de Ismael Silva e Geraldo Pereira com obras de Caetano (“Como Dois e Dois”, “Coração Vagabundo), Roberto e Erasmo (“Sua Estupidez”, então recém-lançada por ela em compacto duplo) e um trecho de Jorge Ben (“Charles Anjo 45”). Com a entrada do trio na segunda e última parte (com direito a mais um convidado na percussão), Gal solta o vozeirão ao fazer uma polaróide da poesia marginal carioca daquela época. Apresenta ao público uma canção de amor que o então desconhecido Luiz Melodia fez inspirado por um travesti (“Pérola Negra”); traça um paralelo metafórico entre drogas e ditadura militar em duas parcerias de Waly com Jards Macalé (“Vapor Barato”, também presente naquele mesmo compacto, e “Mal Secreto); homenageia a urbanidade fora-do-sítio dos Novos Baianos em “Dê um Rolê”) e faz um passeio pelo Nordeste com o frevo “Samba, Suor e Cerveja” (de Caetano), a toada sertaneja “Assum Preto” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira). Somando a tudo isso vem uma nova versão elétrica e mais pesada de “Como Dois e Dois”, mais Waly e Jards (agora separados, com “Luz do Sol” e “Hotel das Estrelas”) e uma vinheta com “Maria Bethânia” (homenagem à amiga, outra composta pelo irmão dela) e inserções de canções de domínio público (“Gigoia”, “Bota a Mão nas Cadeiras”). Com todo esse repertório incendiário e um figurino ousado (cabelos longos ondulados, batom vermelho e roupa hippie) à frente de um palco com cenografia avermelhada, Gal exorcizou como nunca havia feito sua persona política, desafiando a ditadura e reunindo a cada noite, naquela plateia de apenas 600 pessoas, um pequeno recorte de toda a resistência poético-comportamental do Rio de Janeiro, que logo depois se espalharia por outras capitais brasileiras com outras minitemporadas fervorosas do mesmo espetáculo. A efervescência ainda se estendeu a comentários bastante empolgados de uma imprensa musical estupefata com todo aquele furacão sonoro e visual. Resultado: o registro nu e cru do ápice do desbunde brasileiro contra a ditadura.

Ousadia e liberdade

Durante toda a sua carreira Gal serviu de inspiração para meninas e mulheres, foi sinônimo de liberdade e ousadia, tanto nos figurinos e performances quanto nas atitudes de vida. Gal irritou a ditadura militar com as fotos da capa do álbum Índia (1973), seu sexto álbum, produzido por Gil. Ela estava de tanga vermelha e com uma saia de palha indígena caindo pelas coxas. A fotografia, estendida para a contracapa, revelava ainda os seios desnudos, apenas cobertos por colares. A Censura Federal, sempre burra e estúpida, detestou a personificação de uma índia seminua (num tempo em que revistas com Status e Playboy ainda não existiam por aqui) e decretou que o disco só poderia ser vendido nas lojas envolto em um saco plástico. Era “imoral”, acima de tudo. Em 1985, aos 40 anos, posou nua para a Status. Em 1994, na turnê chamada O Sorriso do Gato de Alice, dirigida por Gerald Thomas, provocou frenesi no público carioca ao cantar a icônica “Brasil”, de Cazuza, com todos os botões da camisa abertos. Quando levantava o braço no brado final da música, com o nome do nosso país, seus seios apareciam para o público. Nunca defendeu bandeiras sobre a sexualidade ou o feminismo, tampouco gostava de abordar os assuntos em entrevistas. Teve relacionamentos com outras artistas, como a atriz Lucia Veríssimo e a cantora Marina Lima. Estava casada com a empresária Wilma Petrillo, sua produtora, desde 1998. Gal e Wilma eram mãe de Gabriel, adotado pela cantora aos 60 anos de idade – ela sempre desejara ser mãe mas problemas de saúde a impediram de realizar qualquer gestação.

Voz feminina de Caetano

Quer uma tarefa árdua? Pegue a discografia de Gal Costa e conte quantas canções ela gravou que foram compostas por Caetano Veloso, então. Desde Domingo (1967) até A Pele do Futuro Ao Vivo (2019) a lista é extensa – tem até um disco de estúdio, Recanto (2011), cujo repertório é TODO assinado por ele, além da direção musical. A química artística entre os dois era enorme e até se refletia na relação cotidiana: a jornalista Dedé Gadelha, primeira esposa de Caetano, era amiga de infância de Gal. Só para citar três dezenas de nomes de obras dele que receberam fino tratamento na voz dela: “Divino, Maravilhoso”, “Não Identificado”, “Baby”, “London, London”, “Samba, Suor e Cerveja”, “Como Dois e Dois”, “A Rã”, “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Os Mais Doces Bárbaros”, “Flor do Cerrado”, “Tigresa”, “Caras e Bocas”, “Força Estranha”, “Paula e Bebeto”, “Meu Bem, Meu Mal”, “Dom de Iludir”, “Luz do Sol”, “Vaca Profana”, “Tenda”, “Tropicália”, “Odara”, “O Quereres”, “Língua”, “Cajuína”, “Milagres do Povo”, “O Ciúme”, “Sertão”, “Desde que o Samba é Samba” e “Recanto Escuro”.

Doces Bárbaros

Quando estabeleceram as diretrizes para a Tropicália, em 1967, Caetano e Gil tinham como intenção primeira dar uma bela sacudida na música brasileira. Em 1976, para celebrar os dez anos de carreira artística individuais, chamaram Gal Costa e Maria Bethânia para ser criado o supergrupo Doces Bárbaros. A intenção, de novo, era dar uma nova sacudida da MPB, voltando a misturar o regionalismo com influências pontuais vindas do exterior: desta vez a tônica não era bem a sonoridade psicodélica, mas mais a estética hippie, reproduzida nos figurinos e cenografia do palco. Tudo isso para dar um choque na pauta de costumes do Brasil ainda mergulhado no regime militar ditatorial (era o ano em que o general Ernesto Geisel fingia estar começando a distender a mão de chumbo), responsável pela prisão dos dois baianos e o consequente exílio de pouco mais de um ano na Europa. Um repertório foi criado somente para o espetáculo, ensaiado em apenas quinze dias. No set list estavam canções como “O Seu Amor” (um recado nas entrelinhas subvertendo o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, mas usando os verbos em nome do amor e da liberdade), “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Esotérico”, “Chuck Berry Fields Forever”. Ao lado de sete músicos de apoio, o quarteto rodaria em turnê que passaria por várias capitais brasileiras e ainda renderia um álbum duplo gravado durante os concertos. De quebra, o cineasta iniciante Jom Tob Azulay, recém-chegado de Los Angeles, onde trabalhara como diplomata e fizera um curso de cinema, comandaria um documentário com registros de viagens, shows, entrevistas para a imprensa e cenas de bastidores. Depois da estreia em São Paulo, porém, um imprevisto mudou os rumos da trupe: a polícia – que, assim como o governo, estava “acompanhando de perto” o projeto – deu uma batida no hotel onde estavam hospedados os músicos e prendeu Gil (de novo!) e o baterista Chiquinho sob a acusação de porte de maconha. Depois de algumas semanas de esfriamento da turnê e cancelamento de datas, o grupo voltou aos palcos no Rio (no extinto Canecão, tradicional casa de espetáculos da zona sul carioca) e o documentário acabou saindo. Nele se revela todo o furacão provocado pelos quatro juntos no palco, sobretudo na química do afiado jogral ou nos passos e improvisos das performances de dança. Gal e Bethânia, então, são soberbas em suas interpretações gestuais, corporais, visuais e vocais.

Ícone LGBT

Gal, apesar de não expor isso publicamente em atitudes e entrevistas, relacionava-se com mulheres. Mas não foi pela sua orientação sexual que acabou se transformando, ao longo dos anos 1970 e 1980, em um dos maiores ícones gay do país. Desde que a baiana se estabeleceu como um dos pilares da música brasileira, com sua voz encantadora (e que de vez em quando alcançava uns agudos de arrepiar), figurino ousado (quando não colorido e cheio de apetrechos), os negros cabelos volumosos e performances cênicas arrebatadoras, também passou a ser homenageada por trans, travestis e drags em shows de dublagens nas boates de norte a sul. Personificar Gal Costa sob as luzes de um ribalta – por menor e mais escondida no mapa que ela seja e esteja – não significa somente um ato de libertação. É também uma sensação extrema de empoderamento, apesar da efemeridade. Empoderamento sexual e artístico, diga-se de passagem.

Rainha das trilhas de novela

Não foi só a carreira de Gal e dos outros baianos tropicalistas (ou quase isso, no caso de Bethânia) que se consolidou na música brasileira dos anos 1970 para cá. Outra presença significativa no segmento foram as trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Até a transformação do consumo musical no mercado fonográfico virar praticamente digital, na década passada, eram justamente as coletâneas dos folhetins globais quem mandavam e desmandavam nas vendagens dos formatos físicos (LP ou CD). E mais: ter uma faixa incluída em um destes discos (sobretudo os das novelas do horário nobre – antigamente às oito e agora ali pelas nove da noite) era para um artista daqui praticamente o mesmo que ter um bilhete premiado na loteria. São muitas dezenas as vezes em que uma soundtrack televisiva contou com a voz de Gal Costa. Teve canção que já apareceu em duas ou até três vezes em novelas distintas. E ela também proporcionou o embalo musical de aberturas inesquecíveis de tramas não menos inesquecíveis. Só para citar duas delas. “Modinha Para Gabriela” foi composta Dorival Caymmi sob encomenda para Gabriela, novela da emissora veiculada na faixa das 22 horas entre abril e outubro de 1975. A história de Walter George Durst se baseava no romance literário Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado e, por isso, a letra descreve o eterno espírito livre da protagonista. A Globo chegou a sugerir que Gal interpretasse o papel principal, mas ela recusou a proposta exatamente por não se achar atriz, apenas cantora. Coube então a Sonia Braga personificar Gabriela e criar um dos mais icônicos personagens dos telefolhetins nacionais. A outra vez em que os créditos de abertura foram exibidos ao som de uma Gal Costa contundente e afiada foi em Vale Tudo, de maio de 1988 à primeira semana de 1989. Até hoje cultuada e exibida em reprises na Globo e no Canal Viva, a novela escrita por Gilberto Braga era centrada na relação de desprezo que uma filha má e alpinista social (Maria de Fátima, papel de Glória Pires) mantém pela mãe, uma modesta senhora de vida simples e vendedora de sanduíches na praia (Raquel, vivda por Regina Duarte). Entre as pessoas em órbita dela estava a multimilionária Odete Roitman (Beatriz Segall), assassinada por um tiro disparado por um misterioso nome revelado apenas no último capítulo (e que embalou o país todo na pergunta sobre quem a havia matado). Ao expor as mazelas da luta de classes no país e ainda escancarar barbaridades proporcionadas por atitudes do povo, Vale Tudo esfregou na cara do Brasil os podres do próprio Brasil, isso trinta anos antes da chegada de um certo nome à presidência da república (atenção para o quase spoiler: repare bem em dois nomes centrais do elenco e o quanto eles significam ontem e hoje para as nossas dramaturgia e política!). Para completar, a música-tema era mais um tapa na cara da bandeira nas cores verde e amarela: o hino “Brasil”, composto e gravado originalmente por Cazuza, que bradava contra o fedor da burguesia. Entretanto, o autor – que havia acabado de lançar um contundente álbum chamado Ideologia –  ainda estava restrito ao nicho da zona sul carioca e dos intelectuais nacionais. A convite da Globo, Gal regravou a canção para a novela, tornando-a, assim, popular de norte a sul do país e levando-a para gente de todas as classes sociais e econômicas.

Voz suprema de todos os gêneros

Cantar sempre foi um dom natural para Gal Costa. Suas próprias colegas de profissão, gente respeitada da música, não escondem tanto a admiração quanto a estupefação ao ouvi-la soltar o gogó ao microfone. Não apenas por atingir os agudos inacreditáveis como mostrava em “Meu Nome é Gal”, mas sobretudo pela leveza com a qual levava toda e qualquer canção, sem qualquer dificuldade durante o exercício em cena. Toda essa fluidez ainda se estendia às escolhas de repertório de Gal. Como em um passe encantado de mágica, a voz tamanha dela se encaixava em todo e qualquer gênero que escolhesse. Do rock ao jazz, do frevo à balada romântica, da marchinha carnavalesca ao bolero, da bossa nova ao forró, do samba ao standard do pop norte-americano. Gal passeou por todos estes territórios em sua imensa discografia. Até para o público infantil ela fez algo. Isto foi em 1985, quando foi um dos nomes convidados (ao lado de Xuxa, Pelé, Menudo, Fevers, Lucinha Lins e Carequinha) para participar do primeiro álbum oficial Trem da Alegria. O grupo vocal era formado por três pré-adolescentes: Patricia Marx e Luciano Nassyn (que já haviam realizado juntos, no ano anterior e com a apresentadora Xuxa, o disco da trilha sonora do programa Clube da Criança, exibido pela TV Manchete) mais o recém-chegado Juninho Bill. A Gal coube entoar com os meninos os versos da versão em português da valsa “Lili (Hi Lili Hi Lo)”. Mas ela não foi o único nome externo do Trem da Alegria aqui. Ela carregou consigo seu afilhado Moreno Veloso, filho de Caetano e da amiga de infância Dedé Gadelha, então com 11 anos e em sua estreia no mundo musical.

>> Volte aqui nesta segunda, quando será incluído o oitavo motivo desta matéria.

Music

Guns N’ Roses

Oito motivos para não perder o show desta nova passagem de Axl Rose, Slash e Duffy McKagan por terras brasileiras

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Divulgação

Prepare a sua bandana porque o Guns N’ Roses vem aí! Os norte-americanos trazem o rock “mais perigoso do mundo”, que estourou no final dos anos 1980, aproveitando a esteira de shows internacionais que desembarcaram no Brasil recentemente. 

A turnê, com o sugestivo nome Guns N’ Roses Are F’ N’ Back!, inclui 13 apresentações na América do Sul, passando por várias cidades brasileiras. Serão seis no total, em setembro. São elas: Recife, dia 4; Belo Horizonte, dia 13; Ribeirão Preto, 16; Florianópolis, 18; Curitiba, 21; e Porto Alegre, 26 (mais informações sobre locais, horário e compra de ingressos, clique aqui). Vale lembrar que o grupo também estará no Rio de Janeiro como um dos headliners do Rock In Rio no dia 8.

Também pudera… Depois de um período pandêmico em que público e artistas ficaram trancafiados em casa, a partir deste ano de 2022 o lema é recuperar o tempo perdido. O tempo, aliás, chega a ser cruel com alguns rockstars. Principalmente aqueles que “enfiaram o pé na jaca”. Ou melhor, enfiaram o nariz e a boca em alguma substância nociva e abusaram disso sem qualquer moderação.

É este o caso de Axl Rose.  Ao contrário de alguns frontmen da mesma geração, como Morten Harket (que esteve mês passado no Brasil com o A-ha e parece ter se congelado nas geleiras do Polo Ártico para manter o físico e a voz cristalina diante dos seus quase 63 anos), o tempo não surtiu o mesmo efeito no nome maior do Guns N’Roses. Para Axl, outro sex symbol daquelas décadas que antecederam a virada do século, a lei da gravidade não foi tão generosa. Tanto é que, alguns anos atrás, quando ele se reuniu aos antigos integrantes para uma nova turnê, caiu nas garras da indústria dos memes e chegou a pedir para que suas fotos em que aparecia acima do peso fossem retiradas do ar.

A gente sabe. A voz de Axl não é mais a mesma. Seu corpinho também não comporta mais kilt. Os shortinhos de couro colados, então, não combinam num senhor que já chegou aos 60 anos. Mas o fato de Axl não manter a forma física extrapola o fator puramente estético. Isso prejudica consideravelmente não só sua performance de palco, mas o alcance das notas mais agudas. Ou seja, exercícios vocais não fazem milagre.

Mas quem entre os fãs se importa se o cantor precisa abandonar um show porque o excesso de drive o fez perder a voz? Por trás daqueles cabelos loiros ainda está a mente criadora de hits épicos que marcaram toda uma geração: do clássico “Sweet Child O’Mine”, lançado no primeiro álbum da banda, passando por ‘Patience”, “Paradise City”, “Welcome To The Jungle”, “You Could Be Mine” e “November Rain” e outras canções que embalaram a minha e a sua juventude (ou a de seus filhos e netos).

O GN’R foi a típica banda que levou ao pé da letra a tríade sexo, drogas e rock’n’ roll, como revelou uma reportagem de capa da revista Rolling Stone em 2007, quando o álbum de estreia, Appetite For Destruction, completava 20 anos. Por conta desse comportamento rebelde e a potência das músicas, levou o título de “the most dangerous band in the world”.

E como o apetite para a autodestruição era grande, a banda se desintegrou em 1993. Aí que o fator tempo entra novamente. Se a rotação da Terra não perdoa a queda de cabelo ou a falha na voz, pode, sim, amansar velhos desentendimentos. Em 2016, Axl Rose, o guitarrista Slash e o baixista Duff McKagan voltaram aos palcos, com passagem por Curitiba, na Pedreira Paulo Leminski, e outras cidades de nosso país. E, agora, seis anos depois, eles retornam para a alegria das quarentonas, como eu. Da formação original segue o trio, junto há 37 anos e que conta agora com os reforços do guitarrista Richard Fortus, o baterista Frank Ferrer e os tecladistas Dizzy Reed (músico do GN’R desde 1990, aliás) e Melissa Reese.

Em ritmo de revival e torcendo para que Axl consiga terminar as 27 músicas que devem compor o set list em terras brasileiras, o Mondo Bacana cita oito motivos para não perder de jeito nenhum a nova turnê do GN’R.

Appetite For Destruction 35 anos

O Guns já entrou na cena rock estourando. Isso porque o début, lançado em 21 de julho de 1987, já trazia aquele que virararia o maior clássico da recém-formada banda californiana, “Sweet Child O’Mine”. E se você gosta de dar uma espiadinha no set list antes, já deve ter visto entre as canções programadas para esta turnê, boa parte delas (pelo menos oito por show) faz parte do primeiro álbum. 

Este álbum é icônico. Vendeu nada menos, nada mais do que 15 milhões de cópias somente nos Estados Unidos. Hoje, é considerado um dos discos de estreia de maior vendagem da história da música pop. 

Qual o motivo para ter feito tanto sucesso? Começa pelo faro musical da banda, que conseguiu mesclar o hard rockcomercial com uma crueza punk. Axl fazia questão de utilizar técnicas tradicionais, e, por isso, Appetite For Destruction é considerado um dos últimos grandes álbuns de rock “feito à mão”, aos moldes de Layla (Derek and The Dominos, 1970) e Abbey Road (Beatles, 1969). Este termo, aliás, foi usado pelo produtor e técnico de som do álbum, Mike Clink, em entrevista à Rolling Stone.

Slash

A gente sabe que Axl já não chama tanto atenção no palco. Ele ainda consegue correr de um lado a outro, mas sua performance não é mais a mesma. Seu corpinho, uma vez estonteante, não comporta mais aquelas roupas de couro justíssimas e o peitoral exposto, que era capaz de arrancar suspiros e gritos eufóricos até das moças mais recatadas.

Numa situação mais confortável, Slash soube envelhecer debaixo da sua cabeleira sempre vasta e pretíssima, da cartola mágica, dos óculos escuros e outras coisinhas mais. Aliás, o guitarrista revelou para o podcast Conan O’Brien Needs a Friend que sua primeira cartola fora roubada durante uma turnê do Guns N’ Roses em 1985.

O guitarrista, que já fez parte do grupo Velvet Revolver com outros membros do GN’R e tocou com Michael Jackson, completou 57 anos no último dia 23 de julho. No decorrer da carreira, ganhou fama por conta da sua habilidade de fazer solos incríveis, apesar de uma turma do contra dizer que ele só sabe mandar bem na escala pentatônica. Uma prova de que isso é um completo absurdo é um dos trechos do mais famoso solo dele, o de “Sweet Child O’ Mine”. Aqui, Slash usa a escala de mi menor harmônica e cala a boca de muita gente por aí. 

Aliás, em uma entrevista, Slash confidenciou que não suporta mais tocar “Sweet Child O’ Mine”…

Momento nostalgia

Curtir um show de rock depois de passar tanto tempo no isolamento de casa não tem preço. Ainda mais de uma banda que fez tanto sucesso e ainda continua com hits nos topos da parada, como o Guns N’Roses.

Basta acessar o túnel do tempo, fechar os olhos e lembrar daquele show apoteótico na segunda edição do Rock in Rio 1991, quando a banda estreou a turnê Use Your Illusion, que só terminou em julho de 1993 aqui do lado, na Argentina. Aquela edição do festival, por sinal trouxe ícones como George Michael e Prince, mais  bandas que estouraram na época como Faith No More, INXS e o trio norueguês A-ha – que se tornou headliner de um dos dias, atraindo um público de 200 mil pessoas, mas simplesmente fora esnobado pela imprensa.

O livro Guns N’ Roses – O Último dos Gigantes revela que, apesar de algumas estreias na formação da banda, aquele show representaria o fim do grupo como o público conhecia até então. Isso porque Axl passou a apresentar um comportamento cada vez mais problemático, o que potencializou sua relação com Slash, Duffy e Izzy Stradlin, que abandonariam o barco meses depois.

“Sweet Child O’ Mine”

Quem conhece a história desta música sabe que ela foi composta meio que por acidente. Slash, Duff e Izzy estavam sentados na sala de estar, onde Slash tocava a introdução da música. Axl se encontrava no andar de cima e ao ouvir aquele riff sensacional começou a escrever a letra, pensando em sua namorada. E assim, meio que numa inspiração de supetão, surgiu um clássico que voltou ao topo das paradas semanas atrás, por conta do lançamento do filme Thor: Amor e Trovão, da Marvel. 

O hit também fez aparições na trilha de outros longas, como a de Capitão Fantástico, numa versão acústica belíssima, interpretada pelos filhos do protagonista, vivido por Viggo Mortensen. Há ainda por aí diversas regravações, como a de Sheryl Crow e a do grupo de indie rock Luna.

“You Could Be Mine”

Outra canção icônica que você ouvirá nesta nova passagem por aqui é “You Could Be Mine”, que fez parte da trilha sonora do filme O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final, de 1991. Foi o próprio protagonista da franquia, Arnold Schwarzenegger, que solicitou à banda a inclusão da música no filme.

Segundo a revista Rolling Stone, o astro chamou Axl para jantar e pediu permissão do uso da faixa, que, até então, não havia sido lançada oficialmente. O ator, inclusive, aparece no clipe oficial da música, que rodava direto nas MTVs mundiais, inclusive a brasileira.

“You Could Be Mine”, que integra o álbum duplo Use Your Illusion II, surge em algumas cenas principais etambém  nos créditos finais do filme. 

Versões famosas

O GN’R foi responsável por revisitar canções em versões não deixam nada a desejar para as originais. Um exemplo é a cover de “Live and Let Die”.

Lançada, em 1973, pelos Wings, banda de Paul e Linda McCartney, foi regravada por Axl e companhia para a trilha do filme de mesmo nome da franquia de James Bond. Quase 20 anos depois do clássico do ex-beatle, a versão na voz de Axl entrou no álbum duplo Use Your Illusion I e integra o set list da banda até hoje. Apesar de ter ficado incrível, a versão da banda só alcançou o número 33 na parada da Billboard americana.

E sabe o que o Paul achou da releitura? Questionado em 2016, durante uma entrevista ao jornal New York Times, Macca aprovou a homenagem e ainda revelou um fato curioso. Quando a música foi lançada, seus filhos estavam na escola e diziam que era composição do pai. Os coleguinhas retrucavam: “De jeito nenhum. Ela é do Guns”. 

Por falar em versões famosas, o repertório desta turnê ainda traz a versão do clássico do Bob Dylan, “Knockin’ On Heaven’s Door”, que integra Use Your Illusion II. Aliás, o sucessor desses dois álbuns duplos de 1991 álbum foi o disco The Spaghetti Incident?, de 1993.  Aqui o grupo colocou a sua assinatura em canções clássicas de nomes como Stooges, T. Rex, Soundgarden e Johnny Thunders.

Clássicos reunidos

Para esta décima vez que a banda vem ao Brasil (a última passagem foi no São Paulo Trip, em 2017, com ingressos esgotados) os fãs podem esperar um concerto repleto de clássicos. Se levarmos em conta o set list dos últimos anos, desfrutaremos dos hits e canções lendárias que marcaram a melhor fase da banda, entre 1987 e 1991. 

Do primeiro álbum, a gente pode esperar no mínimo oito músicas: “It’s So Easy”, “Mr. Brownstone”, “Welcome To The Jungle”, “Rocket Queen”, “Sweet Child O’ Mine”, “My Michelle”, “Nightrain” e “Paradise City”.  Além dos outros clássicos posteriores como “Don’t Cry”, “November Rain”, “You Could Be Mine” e “Patience”. 

Material inédito

Por conta da pandemia, a banda parou com os shows. Por isso, há uma enorme expectativa para esta nova turnê, que só foi vista nos EUA e marcará essa lendária retomada por aqui.

O público deve ficar atento também para algumas novidades. Desde Chinese Democracy (2008), a banda californiana não lançava material inédito e o novo EP Hard Skool, que conta com a faixa “Absurd”, é só uma amostra do que pode pintar por aí.

Slash, em recente entrevista, avisou que estão preparando mais uma ou duas músicas, que podem ser incluídas nestes shows vindouros.

Movies

Ataque dos Cães

Protagonistas fogem do passado para tentar aceitar o presente ao seu redor em faroeste dirigido pela veterana neozelandesa Jane Campion

Texto por Luca Passos

Foto: Netflix/Divulgação 

Há, no cinema estadunidense atual, uma onda revivalista de diversos movimentos passados. Com o faroeste não é diferente, mesmo que este gênero seja considerado, ainda que um tanto injustamente, baluarte de um classicismo temático conservador. As paisagens semi-inóspitas, os casarões de madeira e saloons voltaram a abrigar as figuras arquetípicas que, de uma maneira ou de outra, moldaram a sociedade que agora volta seus olhos ao seu próprio passado, porém trazendo muitas questões de seu presente.

Ataque dos Cães (The Power Of The Dog, EUA/Canadá/Austrália/Nova Zelândia, 2021 – Netflix), dirigido e com roteiro adaptado do livro de 1967 escrito por Thomas Savage pela veterana neozelandesa Jane Campion se passa em Montana, estado no noroeste dos Estados Unidos, no ano de 1925. A trama retrata a relação de dois irmãos, Phil (Benedict Cumberbatch) e George Burbank (Jesse Plemons), que há 25 anos são vaqueiros e donos de um rancho no rincão de lá. A interação dos dois durante o início do filme é de uma incompreensão mútua: Phil é um homem do passado, duro, porém orgulhoso de lembrar de seu falecido mentor, “Bronco” Henry, sempre que tem a oportunidade; enquanto George é retraído, contempla soturnamente as paisagens ao seu redor e vive num entretempo de presente e futuro, um vulto que tenta ser moderno em meio à aspereza de seu ambiente.

Durante uma das conduções que a dupla faz de seu gado pelas redondezas, George conhece a viúva Rose (Kirsten Dunst), dona da estalagem em que seu grupo se abriga e que logo se casará com ele. Ao mesmo tempo, o filho de Rose, Peter (Kodi Smit-McPhee), é apresentado já em clara oposição ao “bronco” Phil: um jovem sensível e ingênuo que quer estudar medicina. O centro dramático é montado quando esse quadrado de protagonistas é forçado a conviver na casa dos Burbank durante as férias de Peter. 

Portanto, o filme se desenrola nas fraturas e possíveis adequações das diferenças dos quatro, com pontuais interações com outros personagens, que, por sua vez, fazem apenas o trabalho de moldar a psique de cada um dos protagonistas. Campion trabalha essa construção lentamente, sem, porém, deixar o ritmo cair a uma contemplação exagerada e auto-condescendente – apenas exige que o espectador preste atenção em pequenos detalhes, nas vestimentas, no uso ou não das palavras, nas reações silenciosas de cada personagem. O clima de tensão aumenta nessa soma de pequenos atritos ou enlaces entre os personagens, em conjunto com a trilha sonora ansiosa de Jonny Greenwood (integrante do Radiohead) que, por vezes, passa por cima de um intimismo que fica apenas desejado – vale lembrar que o livro-base foi uma das inspirações para outro faroeste revivalista, Brokeback Mountain.

A solidão de cada personagem, seja ela virtual ou real, é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo que evita a abertura da barragem de sentimentos de forma piegas, fortemente verbalizada, também pesa sobre os atores, que devem passar emoções que, por vezes, podem até não ser captadas ou nunca expressadas em palavras. Entretanto, todos os quatro nomes principais são capazes de entregar atuações convincentes, mesmo que o casal interpretado por Plemons e Dunst tenha um tempo diminuído de desenvolvimento em relação à dupla de Cumberbatch e Smit-McPhee. Isto, aliás, acaba deixando seus problemas muito mais abstratos e impenetráveis, chegando ao ponto de haver, no ato final, uma ruptura entre a intensidade de suas ações e suas pretensas justificativas. 

É provavelmente nessa ambiguidade relacional entre os personagens, porém, que o filme se sai melhor com a dupla Peter e Phil, onde a trama caminha numa suspensão em que a flor da intimidade deles vai aos poucos sendo desabrochada. Seus espaços intocados, os passados, acabam sendo invadidos sutilmente enquanto Campion e a diretora de fotografia Ari Wegner se deleitam em captar o entorno da casa dos Burbank, com suas colinas e esparsas árvores, em composições belíssimas – evidente herança do tempo em que a diretora foi estudante de Artes Visuais.

Por fim, tomando o gancho, é a herança que faz Ataque dos Cães ser o que é. Campion tem consciência disso. Os personagens se montam a partir de sua aceitação (quase prisão) ou fuga do passado (seja num carro ou numa garrafa de bebida). Tudo remonta ao que não podemos mais ver. Um relógio de pulso, o fraquejar da mão, um olhar perdido, uma corda, uma sela, todas as coisas são símbolos. Mais que isso, são objetos que gravitam do que foi para o que é, uma presença viva do que está morto (há coisa mais viva que as cenas de Phil na floresta?). Mesmo que algumas partes fiquem enevoadas, a atmosfera está lançada e isso se reflete no próprio filme enquanto um faroeste.

Os westerns, além de um gênero altamente popular nos Estados Unidos, são o mito de criação desse país, o contar ininterrupto de uma história que mexe tanto com o passado de uma nação quanto com seu presente. E não é à toa que Campion coloca na boca de Phil a comparação dos irmãos com Rômulo e Remo, gêmeos míticos fundadores de Roma. Além de ter parte na criação de uma nação por meio da narração, também foram os faroestes que ajudaram a sedimentar uma imagem de homem que segue certos preceitos dos “machos” encapsulados por figuras como John Wayne e Gary Cooper e que atualmente vem sendo desmitificada –  processo do qual o longa-metragem de Campion faz parte, junto com outros desta mesma ainda curta década, como o fascinante Cry Macho, de Clint Eastwood, promotor central e agora desconstrutor da “imponência masculina” do oeste profundo.

O poeta Walt Whitman, orgulhoso fruto dos Estados Unidos do século 19 e que lembra o Phil de Cumberbatch por seu afastamento intencional da sociedade moderna e alto nível intelectual, comenta, muito melhor do que eu poderia, essa relação central que permeia Ataque dos Cães. “O que é o presente além do crescimento do passado?”, pergunta. O sentimentalismo do filme, com seu fascínio pelos desejos proibidos, por uma história marginal, é também um crescimento do passado, de uns certos homens e mulheres que não passaram nas telas nas décadas de 1940, 1950 e 1960, e que reclamam, por meio de relíquias, seu lugar nas criações de suas nações e do cinema. Tudo, afinal, termina com o sacrifício de um amor no momento histórico em que começarão a ser criados os mais clássicos faroestes. Um enterro duplo.