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Homem-Aranha Através do Aranhaverso

Nova animação brinda os fãs das HQs com uma homenagem literalmente antológica do super-herói nas telas do cinema

Texto por Andrizy Bento 

Foto: Sony Pictures/Marvel/Divulgação

Segunda aventura estrelada por Miles Morales nas telonas, Homem-Aranha Através do Aranhaverso (Spider-Man: Across the Spider-Verse, EUA, 2023 – Sony Pictures/Marvel) não se contenta apenas em fazer referências aos quadrinhos e demais adaptações do teioso, preocupando-se, acima de tudo, em ser reverente ao material de origem e às manifestações animadas ou live action do herói em outras mídias. A sequência do bem-sucedido longa-metragem animado de 2018 emula em cores, luzes, formas e estilos as diversas revistas das inúmeras variações e releituras do personagem, bem como suas versões para cinema, televisão, games e até lego.

Não sei dizer se é a memória que me falha, mas não me lembro de muito estardalhaço e expectativas em torno de Homem-Aranha no Aranhaverso em 2018. Pelo menos nos meus círculos (das redes) sociais, havia mais alvoroço mesmo entre os fãs do cabeça de teia, especialmente aqueles decepcionados com a adaptação do MCU e que ansiavam por um filme, nas palavras deles, melhor do que os estrelados por Tom Holland. Portanto, quando o primeiro longa protagonizado por Miles Morales (dublado por Shameik Moore) estreou nas telas, poucas pessoas imaginavam o prestígio artístico de que a produção iria desfrutar. Com uma deliciosa mixórdia de estilos, Aranhaverso revolucionou a indústria da animação e arrematou estatuetas em importantes premiações cinematográficas, incluindo o Oscar de animação em 2019. Obviamente, vislumbrava-se de longe uma sequência, mas a pergunta que rondava a mente de fãs e crítica especializada era se a continuação conseguiria ser mais audaciosa e ousada do que a primeira.

Essencialmente, Homem-Aranha, assim como outros heróis, é uma história que versa sobre o luto. É a morte do tio Ben que exerce uma força transformadora na vida de Peter Parker, obrigando-o a amadurecer da maneira mais difícil e assumir responsabilidades – entre elas, a missão de evitar que civis destituídos de superpoderes experenciem a mesma dor que ele sofreu ao perder um ente querido, vítima da criminalidade. Após esse evento que se torna o principal rito de passagem na vida de Peter, ele percebe que suas habilidades especiais devem ser utilizadas para o bem. O Homem-Aranha avançou pelas revistas e pelas décadas protegendo pessoas comuns, adotando “Amigão da Vizinhança” como uma de suas alcunhas, o que evidencia a humanidade e a bondade intrínseca ao personagem. A base para o seu conto, portanto, é a perda do tio. O luto é o epicentro da mitologia do herói e o que impulsiona sua narrativa em todas as suas versões e derivações. Seja o luto pelo tio Ben ou por alguma outra figura fundamental na vida de quem veste o traje do Aracnídeo.

Em Através do Aranhaverso, o roteiro corajosamente dedica toda uma sequência a explicar, de modo surpreendentemente delicado, o quanto o luto é um elemento importante na vida do herói, é algo que ele precisa aprender e sentir na pele para só assim entender seu objetivo e valorizar seu dom. Em suma, é o que fez com que os Homens-Aranhas de todos os universos possíveis e impossíveis se transformassem exatamente no que são: heróis abnegados dispostos a salvar a humanidade, ainda que, cada um, à sua própria maneira e adotando seu próprio estilo, na aparência e na luta.

O prólogo focado na Spider-Gwen (Hailee Steinfeld) já traz essa perspectiva. Com uma arte belíssima que remete às aquarelas do título em quadrinhos da heroína, na Terra-65, Gwen ainda tenta processar a dor pela perda de seu melhor amigo, Peter Parker, ao mesmo tempo em que enfrenta um dilema com seu pai, capitão da polícia, que acredita que a Mulher-Aranha é a assassina de Parker, promovendo uma verdadeira caçada à heroína mascarada sem saber que se trata de sua própria filha. 

Já no subúrbio de Nova York, o jovem Miles Morales tenta conciliar a vida dupla de herói e estudante do Brooklyn, falhando na comunicação com seus pais. Como se ele já não tivesse problemas suficientes oriundos deste inquietante período da vida, que é a adolescência, um novo e pitoresco vilão surge em seu caminho. Mancha (Jason Schwartzman) é o catalisador da aventura da vez, com uma participação redentora a um personagem considerado lado B e um dos inimigos mais mequetrefes e de quinta categoria do teioso nas HQs. É sua natureza e habilidade de criar portais e se teleportar que representam a mola mestra do filme e dão vazão à narrativa. Devido a um acidental upgrade de seus poderes, Mancha consegue acessar o multiverso.

Mais uma vez, uma produção do gênero se propõe a discutir multiversos, rasgos no tecido espaço-tempo, rupturas e anomalias temporais, linhas de tempo alternativas e realidades paralelas. Ao contrário de seus pares, contudo, Através do Aranhaverso é muito mais inventivo, audacioso e preocupado em contar uma boa história. Para além do caráter de homenagem, o filme dirigido pelo trio Joaquim dos Santos, Kemp Powers e Justin K. Thompson ainda lança mão de autorreferências espertas e paródias, fazendo o personagem debochar de si mesmo, mas mantendo um tom respeitoso a todas às variações do herói. 

Graças ao retorno de Gwen Stacy à sua dimensão, Miles tem acesso a um esquadrão de elite formado pelos melhores heróis forjados no estigma da Aranha de todas as realidades possíveis, liderados por Miguel O’Hara (Oscar Isaac), o Homem-Aranha 2099. Aliás, trata-se de uma verdadeira população de versões do herói (algumas nem tão boas assim…). Após ser introduzido a esse grupo, Miles conhece diferentes dimensões protegidas por seus próprios Homens-Aranhas. Além da Nueva York de O’Hara, destacam-se a New London steampunk da versão do herói dublada por Daniel Kaluuya e a realidade de Mumbattan (mistura de Mumbai e Manhattan), que bebe da fonte da estética indiana. É nesta última que Miles impede a ocorrência de um evento canônico com o Homem-Aranha local (Karan Soni). E, no multiverso, romper com o cânone representa a deterioração daquele universo específico.

Mais uma vez, somos arremessados a um amálgama de estilos distintos e aparentemente dissonantes, mas que convergem e dialogam entre si harmoniosamente na tela, gerando um impressionante equilíbrio e passando longe do caos visual que toda essa fusão de tipos, signos e gêneros poderia acarretar se estivesse em mãos menos cuidadosas. Todo o experimentalismo que deu o tom ao primeiro capítulo do Spiderverse é amplificado nesta continuação, soando muito mais psicodélico e beirando o surrealismo. O longa une elementos tradicionais das HQs, tais quais divisão de quadros na tela, imagens pontilhadas, notas de rodapé, onomatopéias, balões de fala, painéis e splash pages, com técnicas de animação 2D e 3D, trafegando do traço realista para ilustrações estilizadas e até por colagens e combinações de animação com live action, resultando quase em uma antologia do Homem-Aranha no grande ecrã.

A realidade do Spider-Punk, por exemplo, é um achado, ao reproduzir a estética das fanzines que tão bem representam a natureza underground do personagem. Dignos de menção, também, são os movimentos suaves, mesmo em sequências vertiginosas, como os saltos dos Homens-Aranhas, especialmente Miles, de um arranha-céu a outro. Este é um herói que não pode voar, mas que consegue planar pela cidade ao disparar suas teias, se pendurando pelos prédios. É um deleite assistir a essas sequências, pois elas efetivamente transferem ao espectador a mesma sensação que Miles e Gwen procuram: de fuga dos problemas, de um momento acima de todo o caos urbano para desanuviar a mente e espairecer. Uma pausa para respiro em meio à problemática e ação.

Para além do visual arrebatador, em termos de roteiro, Através do Aranhaverso nos proporciona uma história bem arquitetada e, por vezes, emocionalmente devastadora. Ao assumir as teias como metáfora das ramificações do universo e da existência de realidades alternativas devido à sua complexa e orgânica estrutura, o longa chega muito perto até mesmo um teor filosófico, sem nunca perder de vista a diversão, o tom de aventura familiar e o bom humor. E com o perdão da analogia infeliz, a excelente construção de personagens torna tridimensionais mesmo aqueles concebidos com técnicas de animação 2D.

Destacando-se como a aventura mais divertida, frenética e emocionante do verão americano, Através do Aranhaverso ainda alcança a proeza de ser a animação mais bonita dos últimos tempos e uma das adaptações cinematográficas de super-heróis mais satisfatórias da atualidade. É fanservice, sim, mas com uma história bem contada e estruturada e cujo final em aberto anuncia um épico iminente. Nos resta aguardar e torcer para que os realizadores façam uma continuação à altura desta segunda parte da trilogia. Ao explorar todo o potencial criativo do gênero e formato animação, o trio de cineastas, juntamente com um time formado por cerca de mil animadores, concebeu um verdadeiro espetáculo visual e sonoro, transportando tanto seu protagonista quanto o espectador a uma experiência sensorial deslumbrante muito superior à proposta pelo filme original.

Para completar, Homem-Aranha Através do Aranhaverso serve como um tributo profético a John Romita (Sr), lendário desenhista da Marvel que faleceu recentemente, em 12 de junho, dias após a chegada do longa aos cinemas mundiais. O artista foi responsável por algumas das cenas mais definitivas do personagem nos quadrinhos e que dão o ar de sua graça neste filme. Só mais um dos inúmeros motivos para conferir a obra.

E que venha Homem-Aranha: Além do Aranhaverso. O terceiro capítulo da série tem previsão de estreia para 2024.

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