Movies, TV

Liga da Justiça de Zack Snyder

Nova versão com o corte do diretor é lançada mas não representa um grande salto qualitativo em relação à original

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Warner/HBO Max/Divulgação

É louvável toda a iniciativa dos fãs da DC e de Zack Snyder em lutar pelo lançamento do corte do diretor de Liga da Justiça, a zona de 2017 que mistura trechos dirigidos por Snyder com regravações de Joss Whedon. Anos após o início desse movimento, a Warner atendeu o clamor popular e liberou um corte do diretor de quatro horas pela plataforma de streaming HBO Max.

Esse Liga da Justiça de Zack Snyder (Zack Snyder’s Justice League, EUA, 2021 – Warner/HBO Max) é muito diferente do longa originalmente lançado nos cinemas, mas essa discrepância se dá, principalmente, na abordagem tonal da trama. O roteiro – assinado por Snyder, Chris Terrio e Will Beall – segue a mesma linha guia que sua contraparte, retratando a união do supergrupo em volta do plano de Batman (Ben Affleck) para defender a Terra dos vilões Lobo da Estepe (Ciarán Hinds) e Darkseid (Ray Porter). O conflito épico-heróico não se torna menos genérico durante as quatro horas de duração, que mostram o supergrupo correndo atrás de uma caixa todo-poderosa e matando inimigos sem nome aos montes.

As maiores diferenças entre este e aquele roteiros estão diretamente ligadas ao tempo que Snyder tem para trabalhar suas exposições – essa é uma trama que depende (e muito) de grandes diálogos expositivos e frases didáticas soltas por seus personagens quando não há interlocutor na cena. Já citadas algumas das divergências entre versões, é conveniente esquecer a de 2017, a fim de abordar precisamente os altos e baixos desse longa sem compará-lo a uma versão capenga de sua intenção.

Dito isso, é importante contextualizar outra característica da obra: sua posição na filmografia de Snyder como “a segunda chance, que serve para que o autor faça o filme que quiser”. Os traços autorais de sua direção estão aqui amplificados pelo coro de fãs que permitiu a concretude de sua visão – e ele abusa dessa boa vontade.  

Snyder entende muito bem como criar uma linguagem de forte simbologia, para muito além do “realismo” que se esperava de uma DC pós-Nolan. No entanto, sua busca incessante por uma imagem mitológica – na qual sua Liga da Justiça é um panteão em guerras cuja dramaticidade é reminiscente de pinturas renascentistas – o faz ignorar a passagem do tempo dentro das regras do próprio filme. 

Ele parece se esquecer de todos os múltiplos fatores, personagens e ações que introduz às suas batalhas que se intentam monumentais, mas resultam em sequências ilógicas. Snyder faz seu vilão esperar pacientemente a dramática encarada entre os heróis; retrata três vezes o Flash (Ezra Miller) gritando que não aguenta correr tão rápido com grandes intervalos, nos dando a impressão de que ele já está em seu limite minutos antes de tornar-se necessário.

São essas tropeçadas temporais que empacam a nova montagem de Liga da Justiça, que suspende a lógica em favor da admiração cega e desinteressada que presume de sua audiência. O “épico” do filme é uma estátua de mármore construída sobre uma fundação de pau a pique. 

Disso resulta um detrimento da narrativa, que se submerge no lugar-comum esquecível da busca por um superobjeto (ou o tal do McGuffin) que motiva uma cena de ação após a outra. Embora pareça haver a intenção de maior densidade nos arcos ao longo dos primeiros atos (ou partes, como se estrutura o filme), pouco se desenvolve a partir deles. Aquaman (Jason Momoa) e Flash ainda são personagens fracos e unidimensionais. Os antagonistas ainda são o monstro da semana buscando a destruição aleatória do planeta.

Liga da Justiça de Zack Snyder, no fim das contas, não representa um salto qualitativo enorme em relação à estratégia original da Warner. É apenas uma visão mais concisa de sua história. O forte traço autoral é bem-vindo em uma indústria tão acuada com tal abordagem, mas traz consigo a mancha dos defeitos de Snyder. Com um ritmo desnecessariamente arrastado (seria fácil diminuir ao menos uma hora dessas quatro, a começar pelo uso excessivo do slow motion, muitas vezes injustificável), a nova edição agrada os fãs do gênero e se beneficia (muito) da má recepção de sua versão de 2017.

Music

Marvin Gaye

Obra-prima em que o ícone da Motown traçou um melancólico retrato social da época completa meio século sem perder a atualidade

Texto por Fábio Soares

Foto: Reprodução

“Experimente mexer nesta canção e nunca mais gravarei porcaria alguma para sua gravadora”. Foi com este ultimato dirigido a Berry Gordy, seu cunhado e proprietário do conglomerado Tamla-Motown, que Marvin Pentz Gay Jr forjou o lançamento de sua definitiva obra-prima.

Era o início de 1971. Aos 32 anos de idade e completamente deprimido e devastado pela morte praticamente em seus braços (ocorrida um ano antes) de sua eterna parceira musical Tammi Terrell, Gaye tornou-se recluso. Entregue às drogas, abandonou as turnês e nem pensava em lançar um disco tão cedo. Com um casamento fracassado, problemas financeiros e um total desalento com o que acontecia ao seu redor, parecia que nada, absolutamente nada poderia fazê-lo novamente despertar ao seu ofício. Nada, exceto um fator: a Guerra do Vietnã.

Foi em meados de 1970 que seu irmão, Frank, retornou para casa após quase três anos servindo na investida norte-americana ao país asiático. Contou a Marvin os horrores da guerra e os vilipêndios sofridos por uma população inocente, açoitada pela pobreza, fome e dezenas de enfermidades. Se o cantor precisava de um estopim que servisse como mola propulsora para que retornasse a trabalhar esta ignição estava ali, à sua frente. Seu próximo álbum teria em músicas de protesto seu norte, seu principal cerne, sua prioritária motivação. Mas ela não viria sozinha. 

No dia 4 de Abril de 1968, o pastor batista Martin Luther King Jr, um dos maiores ativistas pelos direitos dos negros americanos, fora assassinado em Memphis, Tenessee. A questão racial aliás, seria mais uma das principais peças deste quebra-cabeças do desalento, da desilusão, da dor.

Voltemos ao primeiro parágrafo: por que cargas d’água, Marvin enfrentou seu cunhado e patrão exigindo que uma de suas canções não fosse modificada, mutilada ou suprimida? Bem, seria inexato afirmar que o cantor resistisse tanto à pressão diretiva da Motown em modificar uma das faixas de seu repertório. Mas aquela em especial não poderia ser modificada nem por um decreto. Por um simples e cabal motivo: não era uma faixa qualquer. Era “What’s Going On”.

A composição da faixa teve inspiração em um específico episódio. Em maio de 1969, Renaldo “Obie” Benson, líder dos Four Tops, estava preso em um engarrafamento em São Francisco, na Califórnia, quando se deparou com um grupo de jovens negros sendo espancado por policiais brancos. Reza a lenda de que ele teria saído de seu carro e bradado: “Por que estão espancando estes meninos? O que eles fizeram? O que está acontecendo?”.

O embate com Gordy citado no início deste texto se deu porque o manda-chuva da gravadora de Detroit não queria que o cantor enveredasse pelo caminho das músicas de protesto porque não enxergava nas mesmas um real potencial de vendas. “Marvin, por que quer destruir sua carreira desta maneira?”, chegou a perguntar. Parecia que o sonho de lançar uma canção de protesto e, consequentemente, um álbum inteiro sobre este tema chegaria ao fim. Chegaria, se Marvin não tivesse, naquele momento, o melhor “advogado” que poderia ter para convencer Gordy: o produtor e compositor Smokey Robinson, braço-direito do chefão da gravadora.

Em seu livro de memórias Smokey: Inside My Life, lançado em 1989, a lenda da soul music relata que pessoalmente peitou o chefão da gravadora em favor de Marvin: “Berry, esta canção é brilhante! Eu mesmo ouvi o arranjo. Não lançá-la será um dos maiores erros de sua existência”. Convencido a novamente ouvir o single, Gordy duramente criticou seu arranjo. “Essa coisa meio Dizzy Gillespie já está ultrapassada! Não vai vender!”, exclamou, demonstrando toda a sua má vontade em lançar a canção nem que fosse como single. Sete meses de “batalha” depois, finalmente o single “What’s Going On” foi lançado em 17 de Janeiro de 1971. 

A repercussão foi estrondosa. O hino antibelicismo esgotou as 100 mil cópias iniciais de sua prensagem em pouquíssimos dias, Como contra fatos não há argumentos, Gordy foi obrigado a dar o braço a torcer: seu cunhado teria carta branca para a produção de um álbum solo inteiro. Nascia ali a concepção de What’s Going On, o álbum, porém, com uma condição: teria Gordy dito diretamente a Marvin: “você tem 30 dias para me entregar um disco inteiro. Nem um dia a mais!”.

Com o desafio lançado, Marvin enfiou-se no estúdio. Relatos da época dizem que as sessões diárias de gravação atingiam inacreditáveis dezesseis horas. O emocional do cantor, no entanto, estava no buraco. Seu casamento com Anna Gordy, irmã do dono da Motown chegara ao fim, a depressão batia-lhe à porta e ele só tinha uma alternativa para exorcizar seus demônios: trabalhar, trabalhar e trabalhar. Muito!

Se arte é dor, What’s Going On foi totalmente concebido sobre este espectro. As gravações iniciaram-se em 17 de março de 1971 e a temática corria longe das canções de amor que tanto sucesso fizeram sob sua interpretação. “What’s Happening Brother”, por exemplo, é justamente sobre o relato de seu irmão quando o mesmo retornou do conflito vietnamita.

Não somente o tema da guerra permeia o álbum que soa como uma ópera. O final de cada faixa serve como fio condutor para a próxima e assim vai. Seu lado religioso é escancarado em “God Is Love” (“Deus é meu amigo/Jesus é meu amigo/ Ele fez o mundo para vivermos e nos deu tudo). Passa pela ecologia, que é esmiuçada na antológica “Mercy, Mercy (The Ecology)” (“Radiação subterrânea e, no céu, animais e pássaros que vivem próximos estão morrendo”) para, finalmente, desaguar nas drogas em “Flying’ High (In The Friendly Sky)” (“Mas eu fico louco quando não consigo encontrar/De manhã, ficarei bem, meu amigo/Mas logo, a noite trará as dores/A dor, oh, a dor”).

Já a capa, esta é um caso à parte. Registrado nos fundos de sua residência, em Detroit, mostra um Marvin com serena expressão em seu rosto sob um chuva fina, transmitindo uma melancolia atroz em seu olhar. Eram tempos difíceis. Difíceis como este biênio 2020/2021, açoitado pela pandemia, pela fome e por uma atmosfera de luto interminável.

Neste 21 de maio de 2021, o multiplatinado What’s Going On, completa cinquenta anos mais atual do que nunca. Uma das mais extraordinárias obras de arte do século vinte, envelheceu bem, porém, ainda triste. Venhamos e convenhamos, entretanto: há motivo para sorrirmos?

>> A Universal Music, que detém os direitos do nome e do catálogo da Tamla-Motown lancou nas plataformas digitais uma edição comemorativa dos 50 anos de What’s Going On?, com doze faixas-bônus escolhidas entre demos, versões alternativas e edições para rádios

Music, TV

Karol Conka – A Vida Depois do Tombo

Oito motivos para você não deixar de assistir à série documental da Globoplay sobre a participante mais polêmica do BBB21

Texto por Abonico Smith

Foto: Globoplay/Divulgação

Foram necessários apenas dois meses para separar a saída de Karol Conká do Big Brother Brasil 21 e a estreia de A Vida depois do Tombo, série documental em quatro episódios que acaba de estrear nas opções de streaming da Globoplay. O foco aqui é justamente mostrar o que o título já adianta: como ficou a vida – pessoal e profissional – da rapper curitibana depois de sua passagem polêmica pelo reality show mais visto e comentado dos últimos anos na televisão brasileira.

Lá dentro da casa sitiada nos estúdios do Projac, no Rio de Janeiro, ela aprontou quase que diariamente por quatro semanas. Tretou diretamente com alguns participantes, chegando a demonstrar seguidas vezes um comportamento agressivo em toda a sua verborragia, o que assustou, irritou e desagradou quase toda a audiência. Não por acaso, a cantora conquistou a maior porcentagem de votos em toda a história do programa, não só no Brasil como também no mundo. Karol obteve quase todos os votos computados, deixando para seus então dois concorrentes na ocasião a divisão de menos de 1% da escolha para a eliminação daquela rodada – vale lembrar ainda que era apenas o quarto paredão da edição deste ano. Na manhã seguinte, ao ser entrevistada por Ana Maria Braga em seu programa matinal, ela não perdeu a chance de dar uma alfinetada com seu habitual deboche, dizendo que se sentia uma Carminha ou Nazaré Tedesco lá da casa, fazendo referência a duas supervilãs de novela que até hoje, anos depois, o público ama odiar.

Desde as inacreditáveis atitudes e declarações que Karol disparou na vigésima primeira edição do BBB que a artista vem sendo alvo de uma gigantesca campanha de cancelamento. Nas redes, nas ruas, no dia a dia. De artista com respaldo suficiente para garantir sua entrada no programa no grupo dos famosos (denominado Camarote) a alvo constante de xingamentos, racismo e até mesmo ameaças de violência à família foram pouco mais de dois meses. É justamente isto o que A Vida Depois do Tombo procura mostrar: como a rapper fodona, dona de língua superafiada vem lidando com a fama e a carreira depois de ter caído em desgraça durante a experiência televisiva recente e, sobretudo, suas reações ao se deparar com uma pequena retrospectiva das barbaridades que protagonizara. 

Abaixo, o Mondo Bacana elenca oito motivos para você não deixar de assistir ao documentário seriado. Tenha sido espectador(a) assíduo do BBB ou não. Seja fã de rap ou não. Seja alguém que ama a cultura pop ou não.

Extrema rapidez de realização

Da eliminação de Karol (última semana de fevereiro) à disponibilização do documentário (últimos dias de abril) passaram-se apenas dois meses. E além do prazo bastante curto, pode-se dizer que a produção foi extremamente ágil. Afinal, já a partir do segundo dia da rapper fora da casa as câmeras já a seguiam captando tudo o que acontecia ao redor dela, ainda no calor de todas as quentes reações de rejeição quanto a ela. Do reencontro com o conforto da família ainda no hotel no Rio de Janeiro à viagem rumo à casa em São Paulo e a volta gradativa à normalidade do cotidiano com cachorro, comida caseira e o trabalho de criar e gravar canções em estúdio.  Então tudo ali se passa antes mesmo do fim desta temporada do BBB. Tudo em 25 dias consecutivos. E mais: antes mesmo de Karol ter voltado à casa na noite da final, para cantar justamente a música “Dilúvio”, com parte da letra sobre esta terrível experiência. Mais up to date com os fatos impossível!

Cancelamento que passou dos limites

Karol cometeu erros execráveis lá dentro da casa, tanto que foi eliminada com a maior porcentagem de toda a história em todas as franquias do Big Brother no mundo. Só que toda a reação de cancelamento a ela foi desproporcional, como mostra o documentário. Para começar, antes da votação maciça, ela foi “homenageada” com diversas paródias (sem um pingo de graça, aliás) com vídeos superproduzidos e upados no YouTube. Na noite do paredão, foram registradas comemorações com o estouro de fogos e muitos gritos com xingamentos para ela. Nos dias subsequentes à saída, vem o pior: o sofrimento com contínuas ameaças à família, sobretudo ao filho adolescente, na escola e na internet. Agora ficam as perguntas. Será que o ódio dado a ela não passou de todos os limites também? O que ela fez justificaria o que recebeu, tal qual a expressão “olho por olho, dente por dente”? E mais: isso aconteceria da mesma forma se não fosse ela mulher e preta?

Black Mirror mode on

A Vida Depois do Tombo é uma série documental feita já para o streaming. Então o seu público-alvo é aquele que está justamente acostumado com o maior chamariz destas plataformas: as séries. Para mostrar as reflexões de Karol acerca de seus erros mais recentes foi armado todo um circo tecnológico em um estúdio. Ela fica no meio, sentada em uma cadeira, com meia dúzia de telões gigantescos mandando mensagens escritas a ela, da forma mais direta e objetiva possível. Quando não são revividas imagens-chave de seu comportamento inadequado no BBB, aquilo ali fica piscando intermitentemente com os letreiros direcionados a ela. Passa uma sensação de pequenez a quem está no centro das atenções e recebendo um bombardeio de adrenalina. Os (bem) mais velhos podem se lembrar de um programa que a TV Record exibiu entre 1968 e 1971, chamado Quem Tem Medo da Verdade? e que submetia importantes artistas brasileiros daquela época a uma espécie de tribunal inquisidor baseado em polêmicas sensacionalistas. Já os mais jovens… bem, estes vão poder disparar “mas isso aí é bem Black Mirror, hein?”.

Flagrante durante o dilúvio

Um dos grandes acertos do documentário é justamente dar uma de BBB fora do Projac e dentro da casa da cantora. Durante uma reunião, com a câmera afastada da mesa, a assessora de imprensa de Karol é flagrada dando instruções a ela sobre como proceder durante a (temida) entrevista no Domingão do Faustão. “Fala que você surtou lá dentro”, orienta a profissional de comunicação, sem qualquer pudor. Quem também está nesta reunião é o produtor que comanda as redes e a equipe ao redor da rapper.  Ele ganha uma bronca por ter se precipitado em algumas decisões durante o dilúvio do cancelamento descomunal e dispensado gente sem o o conhecimento e o consentimento da “patroa”. Não resta a menor dúvida de que todos ali não se deram conta de que estavam sendo filmados…

Carreira no rap curitibano

Nem só de BBB vive A Vida Depois do Tombo. Outro belo acerto do documentário é deixar o passado recente de lado e mergulhar em toda a trajetória profissional de Karol e mostrar como a jovem Karoline se encontrou com o mundo do ritmo-e-poesia e decidiu focar todas as suas energias nele. Através de depoimentos do ex-marido e pai de seu filho, o rapper e produtor Cadelis, é desvendada a sua breve ascensão no hip hop de Curitiba, uma cidade outrora brindada em outras grandes cidades do país pelas suas guitarras barulhentas. Depois de um breve período de afastamento dos palcos por causa da maternidade, Karol voltou com tudo para lançar (em 2013) um primeiro álbum acachapante, adicionando doces melodias e elementos de música brasileira às batidas quebradas e ao canto falado. Daí em diante o estouro foi meteórico, chegando a fazer turnês pelo exterior e se apresentando na cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro (2016).

Trajetória pessoal x obra profissional

Se existe um gênero musical bastante transparente na história da música pop ele é o rap. Quase sempre a vida pessoal dos artistas influencia diretamente a criação das letras e ilustra a trajetória deles em discos, declarações e atitude. Com Karoline dos Santos Oliveira não foi diferente. E o documentário também vai através de rastros da infância e adolescência que moldaram a persona Karol Conká. Um dos momentos mais fortes é sem dúvida quando ela e a mãe passam a limpo a relação com o vício etílico do falecido pai e os problemas de bullying e racismo enfrentados nos tempos de colégio. A soma destes dois elementos praticamente forjaram uma Karol que sempre se obriga a ser forte emocionalmente e, sobretudo, defender-se com a língua, fazendo da fala e do discurso suas armas mais afiadas – a ponto de ferir gente e gerar um alto índice de rejeição nacional, como bem foi demonstrado em sua passagem pelo BBB.

Tretas em série

Batuk Freak, o primeiro álbum, foi um grande sucesso. Entretanto, revelou-se uma obra envolta em polêmicas durante e depois da sua concepção e gravação. No documentário, Karol revela ter se mudado para a casa do produtor artístico DJ Nave e sua esposa, a produtora executiva Drica Lara e vivido dias de extrema instabilidade emocional por lá. Depois de uma série de apresentações para a divulgação do disco, rompeu laços com a dupla, chegando às vias judiciais. Na sequência, Karol se aliou ao DJ Zegon, ex-Planet Hemp. Para seu selo gravou alguns singles com um som mais pesado, contundente e rápido. O maior hit da carreira dela, “Tombei”, foi uma destas gravações feitas para o selo eletrônico de Zegon na efêmera gravadora digital Skol Music e criadas ao lado da dupla Tropkillaz (isto é, Zegon e o beatmaker curitibano Laudz). Só que o tão esperado segundo álbum não saiu, ficou emperrado por anos – até Karol se associar ao terceiro produtor, o DJ Hadji, e assinar, enfim com a Sony Music para lançar Ambulante, em 2018, já tirando o pé do acelerador e se voltando mais a atmosferas pop. Pelo documentário, descobre-se que também houve altas tretas nos bastidores entre os dois. Tanto de Zegon, assim como Nave, proibiram o uso de sete de dez gravações no documentário, por também serem registrados como autores (à revelia de Karol, que, furiosa ao saber disso, questiona com um “mas fui eu quem escreveu as músicas”). As três composições restantes e ouvidas em A Vida Depois do Tombo, são parcerias de Karol com outros produtores. E se não bastasse serem destrinchados os desafetos com os ex-parceiros, ainda há uma boa parte dedicada à briga com outra grande rapper brasileira, a brasiliense Flora Matos. Flora se negou a gravar um depoimento. Sobre as confusões envolvendo Karol, Nave e Zegon, os três estão proibidos, por determinação da justiça, de se pronunciar sobre isso.

Operação Passa-Pano?

Assim que foi anunciado o seu lançamento, a série documental foi vista por muita gente como uma tremenda operação “passa-pano” da Globo para minimizar os danos provocados à carreira de Conka e a ela própria. Depois das quase duas horas divididas em quatro episódios, não é mesmo a impressão que ela passa. Com extrema coragem e ousadia, Karol se expõe ainda mais aqui. Muito de sua vida, carreira e suas atitudes acaba sendo escancarado e até explicado, porém não justificado. A tentativa de reconciliação com os concorrentes afetados diretamente por ela no BBB também acaba fracassando de certa forma, embora ela diga estar arrependida do que fizera e conseguir reconhecer os erros pelos quais pede perdão logo em seguida. Em uma entrevista exibida no Fantástico, a diretora Patricia Carvalho, entretanto, é muito incisiva na resposta à pergunta se a rapper iria gostar do que está mostrado na série. “Não, porque esta é a Karol diante do espelho. Durante o documentário a gente ficou em dúvida muitas vezes. Isso é falso ou é verdadeiro? Ela está sentindo isso mesmo ou está me manipulando?”, disparou.

>> Veja abaixo o clipe de “Dilúvio”, a nova música de Karol Conká, gravada logo após a saída do BBB21 e que tem parte da letra que fala sobre sua experiência no programa