Turnê apoteótica reafirma o show do grupo carioca como a melhor sessão de descarrego de sentimentos e emoções à flor da pele
Texto e foto por Janaina Monteiro
Permanecer vinte anos casado sem deixar que o peso da rotina abale o relacionamento é um desafio e tanto. Para a união durar duas décadas, é necessário ter sabedoria. Saber dosar paciência, respeito, confiança, amizade, bom humor, diálogo e muita, muita criatividade. A premissa vale para relacionamentos amorosos e pode se estender a bandas de rock.
Outro ponto que deixa o casamento mais light e saudável é a distância. E é assim que muitos casais e bandas sobrevivem hoje em dia. Em 2007, Los Hermanos decidiram dar um tempo, aderiram ao relacionamento aberto e Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante foram tocar projetos solo. A pausa durou dois anos. Em 2009, o retorno foi triunfal e o quarteto tocou no festival Just it, em São Paulo, abrindo para Kraftwerk e Radiohead, na primeira apresentação dos britânicos alternativos em terras brasileiras. Foi memorável (eu estava lá!).
Depois disso, foram realizados outros shows esporádicos até que, em 2012, o grupo voltou com tudo para uma turnê com quinze shows pelo Brasil. O segundo retorno foi em 2015 e o último, após um hiato maior, agora de quatro anos, terminou no mês passado. Só que desta vez o revival teve um motivo especial: celebrar os 20 anos da banda.
E por resistir ao tempo – entre dez anos de convivência intensa e dez anos de pausas e recaídas – Camelo, Amarante, Rodrigo Barba e Bruno Medina merecidamente comemoram as bodas de porcelana. Há quem diga que eles retornam para monetizar a banda (será que eles precisam mesmo disso?). Mas o fato é que os fãs que assistiram aos doze shows dessa última turnê pouco se importam com suas razões. Porque são fãs fiéis, de várias gerações, que sempre acompanharam a trajetória, assim como aqueles amigos que ficam do seu lado pro que der e vier, na alegria e na tristeza.
No total, foram cerca de 24 horas no palco e um público que certamente ultrapassou 150 mil pessoas. O set list trouxe praticamente metade do repertório dos quatro filhos gerados em estúdio durante a união: Los Hermanos (1999), Bloco do Eu Sozinho (2001), Ventura (2003) e 4 (2005). Além de dois ao vivo: Ao Vivo no Cine Íris (2004) e Na Fundição Progresso (2008).
O pontapé inicial da turnê foi no festival Lollapalooza, para os portenhos de Buenos Aires, onde os “hermanos” se sentem em casa. E após percorrer várias capitais brasileiras, os cariocas despediram-se dos fãs em São Paulo, onde tocaram para 45 mil pessoas, no mesmo Allianz Parque onde o ex-beatle Paul McCartney se apresentou para um número equivalente de espectadores.
Mas a “apoteose” mesmo foi a apresentação para 42 mil pessoas no palco das grandes partidas de futebol: o Maracanã. O show foi transmitido ao vivo e era nítida a sensação de que os eternos barbudos estavam realizando um sonho. Foi um misto de deslumbramento e tensão. O fenômeno Los Hermanos se apresentava no mesmo estádio onde Pelé fizera seu milésimo gol.
Dava pra notar o nervosismo da banda, principalmente quando houve problemas técnicos nos equipamentos. Amarante tentou contornar a situação e improvisar uma conversa com o público gigantesco: os presentes em carne e osso e a multidão espalhada pelo Brasil, assistindo ao Multishow, cantando e dançando em voz alta no meio da sala de casa.
Foi um verdadeiro gol de placa: quem assistiu pela televisão e pela internet se arrependeu de não ter ido ao show ou ficou com uma vontade tremenda de fazer parte dessa catarse maravilhosa, que nenhuma outra banda é capaz de repetir no Brasil hoje em dia. Assim é que se faz.
Depois do Rio, foi a vez do Sul receber a turnê. Em Curitiba, a noite de 10 de maio estava perfeita. A chuva e o frio haviam dado uma trégua. O showde abertura ficou por conta do vocalista d’O Terno, Tim Bernardes (que intercalou a função com Rubel em outros estados). Solo, Tim montou seu quarto no palco. Ao piano, proporcionou uma viagem intimista com suas canções que, segundo ele mesmo diz, transformam sofrimento em beleza. A aura da apresentação combinou com o ar bucólico da Pedreira Paulo Leminski, rodeada de árvores e um lago cristalino.
O público ansioso pela volta do quarteto conseguiu relaxar um pouco. Até que perto das 21h, os músicos subiram ao palco com “A Flor”. Uma das melhores canções sobre rejeição no amor foi entoada em uníssono pelo fãs e Amarante fez uma brincadeirinha longe do microfone quando Camelo cantava a sua parte (“sua flor serviu pra eu me f****!!!!”).
Aliás, diga-se de passagem, fã de Los Hermanos é aquele capaz de cantar absolutamente todas as músicas do início ao fim do concerto, de vestir a camisa mesmo. Fidelidade absoluta. E show dos Los Hermanos é como se fosse uma sessão de descarrego. Quem precisa de apoio moral ou está se sentindo deprê se debruça em “O Vencedor”, a terceira do set list. Quem prefere a liberdade canta “Todo Carnaval Tem Seu Fim”. Quem deseja o frescor de amor tranquilo canta a novinha em folha “Corre, Corre”. Quem sofre por amor e não quer saber de relacionamento aberto entoa o refrão de “Sentimental” aos quatro ventos.
Quem está de coração partido libera toda a dor durante a apresentação, como na dobradinha com tons de ska e hardcore “Tenha Dó” e “Quem Sabe” (“Quem sabe o que é ter e perder alguém, sente a dor que eu senti”, berra Amarante), do primeiro álbum e tocadas na sequência na metade do show. Quem está revoltado com o presidente da república aproveita o intervalo entre uma canção e outra para se manifestar com o coro dos descontentes acompanhado pela bateria de Barba.
Quem é nostálgico e quer dançar fica com “Anna Júlia”. Quem quer simplesmente celebrar o amor canta o hino “Conversa de Botas Batidas”, a última antes do bis (“Diz quem é maior que o amor/ Me abraça forte agora/ Que é chegada a nossa hora”, ouviu-se a Pedreira Paulo Leminski numa só voz). Tudo termina com “Pierrot”.
Por ser um set list completo executado em duas horas, os músicos interagiram na medida com a plateia. Houve um momento em que Camelo citou que mais um pedido de casamento havia sido feito durante o show. É o amor que ninguém mais vê.
Na despedida da apresentação, o mesmo Camelo disse em tom de satisfação: “Obrigado a todos vocês que sempre vêm”. Obrigado dizemos nós. E adeus a vocês. Agora é esperar que o próximo hiato seja inversamente proporcional à sabedoria da banda.
Homenagens
A demonstração de carinho dos fãs durante esta turnê amoleceu o coração dos “hermanos”. Tanto foi que o tecladista e porta-voz do grupo publicou uma carta aberta aos fãs na página do Spotify no Facebook. “No fundo, tudo se resume a uma única e singela frase: ‘nós somos porque vocês são’”. Vale a pena conferir a íntegra dessa declaração de amor aqui.
Na última semana de maio, a banda agradeceu aos fãs publicando um vídeo, no YouTube, que marcou o encerramento da turnê. É um clipe ao vivo de “O Vencedor” com cenas de cidades por onde a banda tocou. Confira aqui.
Set List: “A Flor”, “Além do Que se Vê”, “Retrato Pra Iaiá”, “O Vencedor”, “O Vento”, “Todo Carnaval Tem Seu Fim”, “Condicional”, “Corre, Corre”, “Primeiro Andar”, “A Outra”, “Morena”, “Pois É”, “Sentimental”, “Samba a Dois”, “Tenha Dó”, “Quem Sabe”, “Descoberta”, “Anna Júlia”, “O Velho e o Moço”, “Paquetá”, “Do Sétimo Andar”, “Último Romance”, “De Onde Vem a Calma” e “Conversa de Botas Batidas”. Bis: “Deixa o Verão”, “Azedume” e “Pierrot”.