Music

Titãs – ao vivo

Megaturnê com a formação clássica do grupo reunida novamente no mesmo palco chega ao fim junto com o ano de 2023… Ou não?

Texto e fotos por Tanara de Araújo

Não há falta de romance em pensar que não foi algo muito pensado e estudado. Foi. Mas, com igual certeza, a expectativa de sucesso foi muito, muito além dos cálculos. Titãs Encontro – Todos ao Mesmo Tempo Agora se propôs a reunir os sete integrantes remanescentes da “maior banda do Brasil” para, como diz o título, um encontro. Datas espalhadas por várias cidades, ingressos esgotados em questão de horas, fãs empolgadíssimos, caixa registradora exultante. Rapidinho se impôs a necessidade de uma ligeira extensão, com o subtítulo devidamente rebatizado para Pra Dizer Adeus. E foi o encerramento dessa segunda etapa que se deu no quintal da banda, a cidade de São Paulo, na noite de 21 de dezembro, num Allianz Park bem recheado. As apresentações (supostamente) derradeiras se deram nos dias 22 e 23 de dezembro.

Celebre ou faça cara feia, o fato é que Titãs Encontro não é uma programação de shows que requenta sucessos de um grupo que já tinha esgotado seu fôlego e deixado integrantes pelo caminho. Não é um caça-níquel barato. Não é uma limonadinha saudosista feita de um limão duvidoso. Desculpe, haters, mas Titãs Encontro é um baita espetáculo. Um projeto de entretenimento que recorre a tudo o que pode para ser quase 100% irrepreensível: infinidade de hits, palco bonito com sistema de luzes/telões de primeira, som ok e, sobretudo, uma banda feliz, extremamente a fim de trabalhar e entregar ao público o que o público quer.

É claro que há muita nostalgia envolvida, tanto emocional quanto cultural. “Diversão”, que tem aberto os showsdesde o início da turnê, resgata aquele período que acreditávamos que “a vida até parece uma festa”; assim como “Bichos Escrotos” evoca o tempo que cantar a plenos pulmões “oncinha pintada, zebrinha listrada, coelhinho peludo, vão se foder!” era um ato de profunda rebeldia. Porém, não é só o coração daquele fã desde os 13 anos que batia

mais forte. Titãs Encontro é carregado de saudade de uma época que composições significativas – à base de poesia concreta, dor de cotovelo ou crítica social – namoravam firme com o mainstream. Chegavam a um público massivo, que até hoje é atingido por músicas que, por bem ou por mal, não envelheceram. “Polícia, “Miséria”, “Porrada”, “Homem Primata”, “Lugar Nenhum” e “Nome Aos Bois” (cuja letra ganhou uma atualização que vai da celebração à queixa de parte da plateia) são só alguns exemplos.

São tantos hits, de tantas naturezas, que a apresentação, a certa altura, quebra a seção rock/punk/pop ao meio para encaixar um momento mais leve, num revival de outro triunfo na história da banda, o Acústico MTV Titãs. Em banquinhos nos quais só conseguem sossegar por alguns minutos e Charles Gavin segurar um pouco o braço, eles se reúnem na frente do palco para tocar “Epitáfio” (com participação luxo das luzes de celulares do público), “Os Cegos do Castelo” e “Pra Dizer Adeus”. Ao final desse set, uma justa e delicada homenagem ao guitarrista Marcelo Frommer, morto em 2001 e substituído nesta turnê pelo icônico Liminha: sua filha Alice Frommer se junta ao grupo para cantar “Toda Cor” e “Não Vou Me Adaptar”. E se você não se rende ao lencinho nesse instante (embalado por uma foto belíssima de Frommer no telão), você não é humano, meu amigo.

A carga humana, aliás, é o grande segredo do sucesso de Titãs Encontro. São todos sessentões, com famílias, filhos, carreiras paralelas. Têm todo o direito de estarem cansados. Mas não. Não é só dinheiro, é felicidade. Ao longo de praticamente três horas, eles entram no palco, tocam, cantam, dançam e, o mais importante, mantêm um sorriso genuíno no rosto, aquela expressão que não mente sobre alguém que está fazendo verdadeiramente o que gosta, que está onde gosta, com quem gosta. Perde-se a conta de quantas interações, abraços e risinhos felizes eles trocam entre si no decorrer do show, assim como as manifestações de carinho, via gestos ou discursos, direcionadas aos fãs. Essa entrega fica muito evidente, é quase um tapa na cara, na figura de Joaquim Cláudio Corrêa de Mello Júnior, que a gente conhece por Branco Mello. Após passar por uma cirurgia para combater um tumor agressivo na hipofaringe que lhe custou boa parte da voz, o que ele faz? Segue não só fazendo seus tradicionais backings, como cantando do jeito que dá – e ele faz dar – clássicos como “Flores”, “Cabeça Dinossauro” e “32 Dentes”.

É um negócio absolutamente perfeito? Não. Nem sempre se pode ser Deus. O som, ao menos em parte da pista do Allianz Park nessa quinta-feira, pecou no retorno da voz, tornando por vezes difícil distinguir o que eles cantavam. O que salvava era que basicamente todo mundo sabia todas as entradas e todas as letras. O público era legal e participativo? Dava para se dizer que, guardadas as devidas proporções, sim. É claro que os adoradores de shows vistos pela tela do celular sempre marcam presença, assim como, apesar de haver vários jovens e até crianças na plateia, não é mais uma opção para a esmagadora maioria pogar em “Polícia”. Já o acompanhamento das músicas na ponta da língua e do fundo da alma somado à obediência aos comandos de mãos, braços e palmas estava em dia. Parabéns aos acadêmicos da associação!

Foram, enfim, 36 canções, cinco a mais desde a estreia do projeto em maio deste ano, no Rio de Janeiro. Ganharam vez “Será Que é Isso o Que Eu Necessito?”, “Nem Sempre Se Pode Ser Deus”, “Domingo”, “Querem Meu Sangue” e “O Quê”. Incrementos bem-vindos num inventário que podia render pelo menos mais um outro set list inteiro com composições de sucesso e lados B queridos dos fãs (cadê “Corações e Mentes” e “Eu Não Vou Dizer Nada”?).

Se fosse um projeto de longo prazo, a estrutura engessada do repertório, que não costuma abrir brechinhas para surpresas de uma noite para a outra, talvez fosse um ponto sensível. O planejamento detalhado do set list é, com certeza, peça importante para o funcionamento (e triunfo) da turnê como um todo. Por outro lado, não incentiva a ida a mais de um show ou dois – exceto, claro, se você for do tipo obcecado. Seria um problema ótimo para lidar. Infelizmente, porém, segundo garantem os próprios Titãs, Encontro se encerra junto com 2023. Mas é aquilo: não confio em ninguém com 32 dentes.

Set list: “Diversão”, “Lugar Nenhum”, “Desordem”, “Tô Cansado”, “Igreja”, “Homem Primata”, Será Que é Isso o Que Eu Necessito?”, “Nem Sempre Se Pode Ser Deus”, “Estado Violência”, “O Pulso”, “Comida”, “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”, “Nome Aos Bois”, “Eu Não Sei Fazer Música”, “Cabeça Dinossauro”, “Epitáfio”, “Os Cegos do Castelo”, “Pra Dizer Adeus”, “Toda Cor”, “Não Vou Me Adaptar”, “Família”, “Querem Meu Sangue”, “Go Back”, “É Preciso Saber Viver”, “Domingo”, “Flores”, “32 Dentes”, “O Quê”, “Televisão”, “Porrada”, “Polícia”. “AA UU”e “Bichos Escrotos”. Bis: “Miséria”, “Marvin” e “Sonífera Ilha”.

Music

Molho Negro + Stolen Byrds – ao vivo

Quarta-feira com psicodelia paranaense e paraenses deixando em Floripa aquele sentimento tosco de felicidade pós-show

Stolen Byrds

Texto e fotos por Frederico di Lullo

Show em plena quarta-feira é para foder o cu do palhaço.

Noite de 25 de outubro. Lá estávamos nós para mais um rolê na Ilha do Desterro. Desta vez, a primeira data das bandas Molho Negro (PA) e Stolen Byrds (PR) em turnê pelo do Sul do Sul do Mundo. Oito shows em dez dias. Uma turnê estradeira, com milhares de quilômetros em dois estados. Empolgante desde onde você quiser.

Cheguei ao Desgosto Bar atrasado e perdi quase toda a apresentação da Jovens Ateus, banda local (leia-se de Floripa) que fez as honras de abrir os trabalhos da noite. No currículo, várias datas neste ano, levando inclusive o seu post-punk até SP. Logo me programo melhor e assisto a um show completo dos caras. 

O Desgosto Bar é um pico legal para ver bandas tocarem ao vivo, acho que já falei isso algumas vezes. Aquele clima de porão europeu, elementos simples e diversas bandeiras penduradas. Também sempre tem promoção de gelada. Desta vez, a morta eram três chopes Pilsen por R$ 30. Sair na quarta-feira é uma merda, mas tem suas vantagens. 

Após um rápido abastecimento alcoólico, encontrei meus amigos quando os primeiros acordes dosparanaenses Stolen Byrds começaram a ecoar pelo recinto. E os moleques me surpreenderam positivamente.

Com mais de dez anos de estrada, o quarteto passou os próximos 40 minutos apresentando seu vasto repertório, tendo a psicodelia como principal motor. Mas não o único. Ora parecia Sonic Youth, ora o sintetizador rumava para os lados de MGMT e Tame Impala. Realmente, uma distopia musical que me pegou de jeito. A banda ganhou mais um fã que vai acompanhar de perto e atento.

Molho Negro

Na sequência, pouco depois da meia-noite, João Lemos, Raony Pinheiro e Antonio Fermentão subiram, vindos de Belém do Pará. Sim, era a vez do Molho Negro, headliner da turnê, começar um show que durou quase 60 minutos.

Criada em 2012, a banda moldou seu repertório passando por todos os discos, mas focando sobretudo em Estranho (2022). Assim, não faltaram novos hits como “23” e “Berrini”, sem deixar de ter espaço para clássicos como “Fã do Nirvana”, “O Jeito de Errar” e “Gente Chata”. 

Ficou evidente que a banda tem alguma ligação com o público daqui.Mesmo em plena quarta-feira, a galera compareceu em bom número para prestigiar e, sim, foi agito do início ao fim (até rimou essa porra). 

Em suma, uma baita quarta-feira. Saímos bêbados e completos. Com aquele sentimento tosco de felicidade pós-show. Contudo, poucas horas depois precisei acordar e encarar uma campanha de marketing, alguns meetings e mudar o mindset

Por isso que show em plena quarta-feira é para foder o cu do palhaço. 

Movies, Music

Priscilla

Cinebiografia assinada por Sofia Coppola mostra como, longe dos holofotes, o idolatrado Rei do Rock prendia a esposa em uma gaiola

Textos por Janaina Monteiro e Abonico Smith

Fotos: O2/Mubi/Divulgação

As lágrimas custam a cair dos belos olhos azuis de Priscilla Beaulieu. Aos 27 anos, em 1972, a jovem texana simetricamente perfeita está diante de um Elvis Presley milimetricamente sugado pela exaustão da fama e já em processo de deterioração. Ela, finalmente, consegue dizer “não”.

Cilla, como era carinhosamente chamada pelo eterno Rei do Rock, sai de cena antes de assistir à derrocada de um dos principais artistas de todos os tempos, ídolo de uma geração. Um astro de tamanha magnitude, cujo brilho, aos poucos, ia sendo ofuscado pelos excessos. 

“O casamento transforma muitas loucuras curtas em uma longa estupidez”, escreveu o alemão Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra, obra que inspirou o também alemão Richard Strauss a compor seu poema sinfônico de mesmo nome (Also Sprach Zarathustra). A música foi tema do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço e serviu de introdução para a turnê de Elvis nos anos 1970, em arranjo assinado e gravado pelo brasileiro Eumir Deodato. 

No semblante de Priscilla, interpretada gloriosamente por Cailee Spaeny no filme homônimo da diretora Sofia Coppola, o espectador acompanha a odisseia da ex-mulher do astro. É o desgaste de um relacionamento que começou em um terreno puro e cristalino e culminou em um árido deserto chamado ofuscamento e solidão. 

O que vemos em Priscilla (EUA, 2023 – O2/Mubi) é um blend de emoções: a triste decepção do não finalmente dito se une ao alívio de um sim. Um sim diferente daquele que simbolizava a autorização dos pais de Priscilla em consentir o relacionamento amoroso entre uma adolescente de 14 anos e um dos rapazes mais cobiçados do mundo, que na época tinha 24. 

Era um sim diferente daquele proclamado seis anos antes, quando Elvis pediu o amor da sua vida em casamento. Trata-se do sim à liberdade, do sim à busca pelo sua verdadeira identidade. Uma resposta que exigiu muita força e coragem para ser verbalizada.

Como num soneto de Vinícius de Moraes, o conto de fadas que havia começado em 1959, chegava ao fim. Mas, nesse caso, é Dolly Parton quem entrega a trilha sonora do desfecho de uma das histórias de amor mais icônicas do mundo, “I Will Always Love You”, canção composta por uma das mais representativas cantoras da country music e que, inclusive, Elvis tentou gravar mas não conseguiu. 

Nesse coming of age, Sofia Coppola acrescenta mais uma mulher forte e solitária à sua lista de protagonistas e se torna especialista em levar relacionamentos tóxicos às telas. Como no caso de Encontros e Desencontros, que, aliás, trata do próprio divórcio de Sofia com o diretor de cinema Spike Jonze. 

Coppola, com a montagem frenética e elipses temporais que já se tornaram sua marca registrada, consegue condensar esse romance supostamente improvável diante das inúmeras assimetrias da vida. Mas nem a diferença de idade (10 anos) e nem a diferença de altura (Priscilla tem 1,63; Elvis, 1,82) serviram de obstáculo para o casal. Priscilla estava no lugar certo, na hora certa.  

Inspirado na biografia Elvis e Eu, lançada em 1985 e assinada por Priscilla Presley e Sandra Harmon, o filme chega aos cinemas brasileiros no ano seguinte ao lançamento de Elvis, de Baz Luhrmann, em que todos os holofotes se voltavam ao grande ídolo pop do século 20 e sua relação turbulenta com o pai e o empresário salafrário. Contudo, agora, pela primeira vez, Elvis é o coadjuvante da história retratada a partir da versão de sua ex-mulher.

Coppola nos faz mergulhar de cabeça entre os anos de 1959 e 1973. Para isso, utiliza outra caraterística de sua cinematografia: uma trilha sonora impecável, que traz hits daquela época, alguns em versões mais recentes como “Baby I Love You”, de Ramones. As músicas que eram sucesso na voz de Elvis e não foram autorizadas para o filme definitivamente não fizeram falta.

De início, já somos fisgados pelo ar angelical da protagonista, que era fã de Elvis (afinal, quem não era?). Da fase idílica do relacionamento até a separação, imergimos no mundo de Priscilla, solitário e puro, que transparece na paleta de cores usada pelo diretor de fotografia Philippe Le Sourd (que trabalhara com a cineasta em O Estranho que Nós Amamos). 

Interpretado por Jacob Elordi (mais conhecido por aqui pelo trabalho no filme A Barraca do Beijo), o furacão Elvis é visto aqui em sua intimidade, com seus caprichos, manias e vícios. Com seu jeito sedutor de falar, suas pernas inquietas, seu gosto por decoração esdrúxula. Mas longe do spotlight e do frenesi ao redor, existia um drama particular: as dores de Priscilla ao se tornar a senhora Presley. 

Sofia permanece fiel ao início da biografia e nos introduz à protagonista ao som dos acordes oníricos de “Venus”, de Frankie Avalon, na fase em que ela está na Alemanha. No livro, Priscilla conta que, como seu pai era oficial do exército, as mudanças eram constantes em sua vida, o que dificultava manter laços de amizade. Portanto, quando ela é abordada por um amigo de Elvis, que a convida para ir à casa do cantor, o tédio de seus olhos se transforma em esperança.

No primeiro ato, acompanhamos o encontro de dois corações solitários. A adolescente tímida, que ainda não usava as maquiagens e roupas cheias de glamour, e um astro da música e do cinema, que havia recém perdido a mãe. Depois do primeiro encontro, a adolescente passa a viver nas nuvens e numa constante espera por alçar voo. Se uma garota já perde o chão por um simples mortal, imagina quando esse namorado se trata de Elvis Presley. 

Apesar da diferença de idade, Priscilla acreditava que Elvis havia encontrado nela uma confidente, alguém para conversar. Aos poucos, entretanto, o filme nos mostra como ela era moldada conforme a vontade do rei. Trata de como o rei a prendeu numa gaiola.

Quando é convidada a se mudar para Graceland, em Memphis, Priscilla passa por uma transformação aquém da sua vontade. É Elvis quem dita como ela deve se vestir (“listras não valorizam o seu corpo”), como se maquiar (devia usar o delineador mais marcado para valorizar os traços) e até a cor do cabelo. Elvis também lhe oferece pílulas para dormir (que são uma constante no filme!) e a introduz no mundo psicodélico do LSD. E assim segue a viagem pelos anos 1960, com olhos delineados de gatinho, sapatos de salto alto adornados com margaridas e laquê. Muito laquê.

Priscilla vira uma espécie de bibelô de Elvis. Uma boneca de porcelana intocável e munida de uma resiliência impressionante. Tanto é que seu relacionamento leva anos para ser consumado. Não por sua vontade, mas por capricho e prudência de Elvis. O romance permanece limitado a beijinhos e abraços, tanto é que muitas das cenas são rodadas com o casal na cama, como num namoro adolescente. Cristão devoto, Elvis pedia para que ela esperasse o momento certo. 

Enquanto o marido viajava para gravar seus filmes, Priscilla passava seus dias em Graceland acompanhando as mesmas revistas de fofoca que agora estampavam os supostos affairs dele. Numa certa altura do filme, a angústia chega a tomar conta. Será que ela vai suportar tudo isso sem se rebelar? Sem gritar? Sem se descabelar? 

Até que, afinal, chega o momento do confronto. E a resposta de Elvis é direta: quero uma mulher que seja capaz de entender e suportar essa situação. Nesse ponto, Cailee mostra porque foi indicada ao Globo de Ouro. Sua fisionomia expressa a dualidade de sentimentos: o olhar frustrado e amargurado diante dos rumores rapidamente se transforma numa postura de conformismo. Priscilla é a oficial e conseguiu cumprir o pacto das vistas grossas que tantos casais famosos acabam assumindo. 

Por outro lado, o roteiro de Sofia mostra um Elvis que também buscava transcender, seja com LSD ou com suas leituras sobre espiritualidade, como o livro Autobiografia de um Iogue, que ele queima depois na fogueira. Infelizmente, Elvis não teve um coach ou um empresário à altura.

E quando os dois finalmente se casam, Coppola opta pela elipse: Priscilla ressurge grávida de Lisa Marie, que, por sinal, não aprovou o roteiro da cinebiografia. À imprensa internacional, disse que pai fora retratado como um sujeito predador e manipulador. 

Nas cenas pós-créditos da vida real, Priscilla conhece um novo amor: o brasileiro Marco Antônio Garibaldi, de Curitiba, com quem teve um filho, o músico Navarone Garibaldi (Garcia), e de quem também se separou. Esta é a prova de que o mundo dá voltas. É a prova que nossas escolhas definem o nosso destino. (JM)

***

Priscilla (EUA, 2023 – O2/Mubi) é, como entrega seu título, sobre Priscilla Presley, por mais que Elvis apareça em cena como um belo coadjuvante da história (e, detalhe, quase nunca em ação em palcos e estúdios). Só que justamente por retratar a intimidade da esposa do astro e sua conturbada relação conjugal que se arrastou por mais de uma década do lado de dentro dos suntuosos portões de Graceland que é perfeitamente possível dar uma de Gay Talese (que em 1965 cunhou um marco do New Journalism fazendo uma extensa reportagem-perfil sobre Frank Sinatra apenas entrevistando mais de uma centena de pessoas que gravitavam ao redor dele e sem trocar uma palavra com o astro) e perceber, no decorrer das cenas dirigidas e roteirizadas por Sofia Coppola, uma “cinebiografia paralela” do Rei do Rock.

Ok, você pode até argumentar que Baz Luhrmann já havia feito isso ano passado, com louvor e inclusive recebendo prêmios e indicações ao Oscar. Só que o objetivo de seu filme era justamente revelar como determindas particularidades da vida pessoal do cantor transformaram-no na persona pública que conquistou o mundo. O longa de Sofia, que faz da ancoragem da perspectiva feminina a principal marca em toda a sua trajetória de cineasta, revela justamente o inverso: como o maior astro do rock’n’roll interferiu no cotidiano de quem mais tempo esteve ao seu lado sem ter  vínculos familiares.

Por meio de aparições do Elvis ídolo pode-se ver como tudo isso o tornou em opressor, agressor, vilão. Claro que a intenção de Coppola passa longe do maniqueísmo, por mais que a filha Lisa-Marie, nos meses que antecederam a precoce morte, tenha chiado publicamente com a diretora e roteirista a respeito do modo como seu pai fora retratado por ela. Também não há a intenção de embate com a extensa legião de fãs do artista. Pelo contrário: entendendo como Elvis interagia com o mundo dá para entender como isto prejudicou (e bastante) a intimidade com a companheira, dez anos mais nova. Vale a pena ressaltar também que o filme é adaptado das memórias escritas por Priscilla e que a própria é diretora executiva da empreitada. Portanto, a fidelidade aqui é alta e sem passar pano para a imagem construída pela indústria do entretenimento.

Aqui estão oito passagens de Priscilla que servem também como testemunho de quem viveu de perto um pouco da História do rock.

A invenção da adolescência

Foi tudo culpa do cinema de Hollywood e seu amálgama com o efervescente rhythm’n’blues que saiu dos guetos noturnos negros para dominar rádios e lojas de discos com o novo batismo de rock’n’roll. No decorrer da primeira metade dos anos 1950 os mais jovens começaram a se sentir representados nas grandes telas. Seus problemas, suas angústias, seus comportamentos muitas vezes erráticos diante de uma sociedade repressora e, sobretudo, o fato de querer gritar ao mundo que, mesmo deixando de usar calças curtas e serem tratados como crianças, eles eram bem diferente do mundo chato de seus pais, tios e avós. O rock fez a função de trilha sonora de toda essa rebeldia que, de fato, já andava sendo reproduzida havia alguns anos nas ruas dos grandes centros urbanos estadunidenses. Os filmes representaram a mola propulsora para amplificar essa nova voz. Elvis era um apaixonado pela sétima arte. Decorava inúmeras falas de longas que via repetidas vezes e seu sonho era atuar em Hollywood, tal qual seus principais ídolos, James Dean e Marlon Brando – inclusive passando um período estudando no Actors Studo, em Nova York. Por sua vez, Priscilla era uma garota que, entre muitos nomes do rock, curtia ouvir… Elvis Presley.

Saudades da mãe na Alemanha

Em razão da carreira do padrasto nas Forças Armadas dos EUA, Priscilla morou em várias cidades e também outros países durante a infância e começo da adolescência. Por isso, sua maior dificuldade era fazer amizades por onde passava. Durante a passagem por Wiesbaden, na Alemanha, acabou conhecendo Elvis Presley por intermédio de um convite de um amigo dele, que a vira numa lanchonete bastante frequentada por jovens na região. Ela tinha apenas 14 anos e ainda estava no colégio. Ele, aos 24, já um astro do rock consolidado e dera uma pausa na carreira musical para, durante 18 meses, prestar o serviço militar em base estadunidense fixada por lá. O cantor estava abalado com a perda precoce da mãe Gladys, com quem possuía uma forte ligação sentimental. Foi justamente na ingenuidade dos 14 anos de Priscilla que Elvis afirmava ter reconhecido a pureza que enxergava na mãe, que falecera aos 46 durante o período vivido em solo germânico. Foi de presente para mãe que Elvis comprou a mansão chamada Graceland, onde morou ao voltar aos EUA e ficou até a sua morte. Foi para Graceland que Elvis levou Priscilla em definitivo, em 1962, depois da garota terminar suas obrigações escolares na Alemanha. Só que, em nome da manutenção de sua imagem pública de sex symbol e a garantia da alta popularidade, o artista se negava a se expor em fotos e aparições junto com a namorada.

Máfia de Memphis

Graceland era enorme. Não servia apenas como residência de Elvis. Era também seu escritório de trabalho, com direito a duas secretárias para fazer tudo o que o astro, seu pai Vernon e seu empresário Coronel Tom Parker solicitavam. Mas também o local era repleto de seus amigos inseparáveis. Uma turma de machos que ganhou a singela alcunha de Máfia de Memphis. Andavam sempre a tiracolo, parasitando a boa vida que ele levava na condição de artista multimilionário, Rei do Rock e, a partir de então, ator que carregava multidão de fãs ao cinema para ver seus filmes. Elvis carregava o pessoal para cima e para baixo, para suas viagens a Los Angeles e aos sets de filmagem. Com eles fazia tudo o que homens jovens foram acostumados a fazer em uma sociedade machista e patriarcal: se divertir em conjunto, deixando as mulheres de lado e em muitos casos menosprezando-as a maltratando-as verbal, física e psicologicamente. Com Priscilla “trancada” em Graceland, muito de seu cotidiano era acompanhar as travessuras pós-adolescentes do menino Elvis por meio de notas e matérias publicadas pela imprensa.

Viva Las Vegas

Umas das muitas decepções de Priscilla com o comportamento de Elvis ocorreu durante as filmagens de Viva Las Vegas (de 1964, que no Brasil ganhou o título de Amor a Toda Velocidade). Ignorando total e completamente a existência dela Graceland, o astro se apaixonou pela colega de elenco Ann Margret e nem sequer se importou em tomar cuidados para não tornar a relação pública. Só que o caso não durou muito tempo. Foi árduo durante as filmagens, mas, depois que a imprensa descobriu e passou a noticiar o tórrido romance (chegou a se falar até sobre noivado que nunca existiu!), a atriz sueca confrontou o parceiro e Elvis deu para trás no período da divulgação do filme por causa de Priscilla. O astro, também, sequer foi à pré-estreia em Londres porque Tom Parker não tinha passaporte não poderia sair do território estadunidense. Em Viva Las Vegas, Presley interpretava um obcecado piloto de corridas que quer participar de uma disputa na cidade dos cassinos mas é obrigado a enfrentar o revés de perder o dinheiro que usaria para comprar um motor possante. Como solução, passa a trabalhar de garçom. É aí que ele conhece uma bela professora de natação (Margret). Contudo, a relação não engrena por dois motivos: ela se sente incomodada com os riscos à vida que a velocidade do automobilismo pode trazer e ainda fica dividida ao ser cortejada por um nobre italiano que, ao contrário do protagonista, alardeia que largaria a paixão por carros caso encontrasse um grande amor.

Mão de ferro

Tom Parker sempre foi o grande manda-chuva da carreira de Elvis. Muito pela ingenuidade e credulidade do jovem, que deixava todas as questões “burocráticas” na mão do empresário para ficar livre para se divertir e performar. Isto deixou Parker com poderes totais para negociar e decidir tudo o que envolvia os bastidores da marca Elvis Presley. Se com o tempo este fator foi deixando-o com ares de vilão, trouxe também benefícios à então estrela em ascensão meteórica: o velho coronel soube trabalhar como ninguém a imagem do galã em seus primeiros anos de carreira. O licenciamento de Elvis foi vinculado a diversos tipos de produtos do dia a dia e impulsionou ainda mais a conquista da horda de fãs, primeiro nos Estados Unidos e depois mundo afora.

Frustração com o cinema

Se para o jovem Elvis Presley o cinema era uma grande paixão, ao longo de sua pausa na carreira musical tornou-se também sua grande frustração. Longe de ser aclamado publicamente pela imprensa especializada como um grande ator, passou a culpar os papeis, personagens e roteiros escolhidos por Tom Parker pelo “fracasso” na investida. Os milhões de dólares feitos pela sucessão de longas-metragens não faziam seus olhos brilharem. Ele estava cada vez mais inclinado a retomar de vez o caminho da música.

Retorno aos palcos

De saco cheio com os filmes “vazios” que estrelava para Hollywood, Elvis começou a forçar a barra com Tom Parker para retornar ao seu “habitat natural”: os palcos. Depois de quase uma década de ausência, acertou seu retorno em um especial para a TV no fim de ano. Já estava mais do que atrasado para isso. Afinal, o posto de Rei do Rock já estava mais do que perdido para os Beatles, que havia quase meia década mandavam e desmandavam nas paradas, vendagens e histeria da juventude. As filmagens ocorreram em meados de 1968 e o que seria inicialmente um programa voltado ao Natal transformou-se em um furioso retorno de um Elvis, agora bem mais velho e seguro de si, vestindo preto e voltando a flertar com a música negra, sobretudo o furioso soul de um EUA embalado pela luta por direitos raciais, civis e femininos. No dia 3 de dezembro, a NBC levou ao ar em rede nacional o programa. A melhor parte foi a seção intimista, com o astro ladeado pelos músicos de sua banda e em um palquinho cercado pelo público.

Residência em Las Vegas

Tom Parker não podia sair do território americano: ele não tinha passaporte por ser imigrante ilegal nos EUA. Então, a saída foi armar uma residência triunfal de Elvis em Las Vegas, terra da gastança de dinheiro em hotéis luxuosos e cassinos. A ideia deu tão certo que, entre 1969 até a morte do cantor em 1977, foram realizados 636 concertos, sempre com plateia lotada e o recebimento de todos os convidados VIP no camarim logo após. Durante  cada período de shows, eram realizados dois deles por noite. Portanto, esta intensidade provocou um turbilhão movido a drogas na vida de Elvis, cada vez mais, deixando o cotidiano com Priscilla completamente de lado até o envolvimento dela com o professor de artes marciais e as consequentes separação e “fuga” de Graceland. (AS)

Music

Killing Joke

Um relato próximo de quem conheceu a banda de perto e se tornou amigo do guitarrista Geordie Walker, cuja “harpa dourada” silenciou para sempre

Youth, Coleman, Ferguson e Walker: o Killing Joke em 2022

Texto por Guto Diaz

Fotos: Divulgação (banda) e Guto Diaz (banda ao vivo e selfie com Geordie)

No último dia 26 de novembro, um domingo, às 6h30 da manhã, a “harpa dourada” silenciou para sempre. Kevin “Geordie” Walker, guitarrista e um dos fundadores do grupo pós-punk britânico Killing Joke, faleceu em sua casa, na cidade tcheca de Praga. Ele tinha 64 anos e sofreu um AVC. 

Walker nasceu dia 18 de dezembro de 1958, em Chester-le-Street, distrito de Durham, no nordeste de Inglaterra. Quando tinha 14 anos, a família mudou-se para o distrito de Bletchley, em Buckinghamshire. Foi nessa época que ele adquiriu o apelido Geordie, devido ao forte sotaque do norte. Desde cedo mostrou uma obsessão pela guitarra. Fechava-se no seu quarto, após a escola, para praticar durante longas horas. Foi para Londres para estudar arquitetura e tornou-se membro fundador do Killing Joke quando respondeu a um anúncio enigmático colocado pelo cantor Jaz Coleman e pelo baterista Big Paul Ferguson na edição da Melody Maker de 24 de fevereiro de 1979.A dupla procurava por um guitarrista e um baixista. Esse anúncio trouxe, além de Walker, o baixista Martin “Youth” Glover. Com esta formação foi dado início às atividades do Killing Joke. 

Seu estilo pouco ortodoxo, caracterizado por melodias angulares, harmonias dissonantes, experimentação e o jeito de tocar sem esforço e ao mesmo tempo produzindo um som monstruoso, tornou-se a pedra angular do Killing Joke e foi amplamente aclamado por nomes como Jimmy Page, James Hetfield e Dave Grohl. Esta sonoridade, muitas vezes descrita como “atmosférica” e “visceral”, foi alcançada através de uma combinação de pedais de efeitos, afinações não convencionais e a utilização de uma guitarra semiacustica, a Gibson ES-295 (carinhosamente chamada pelos fãs de “harpa dourada”), com uma afinação inteira num tom abaixo (DGCFAD), tornando a tensão do encordoamento mais confortável com o benefício adicional de deixar a guitarra mais pesada.

Este modelo Gibson ES-295, que se tornou seu instrumento principal a partir de 1982, desempenhou papel fundamental em todas as gravações subsequentes, até o último álbum, Pylon, lançado em 2015. A abordagem da guitarra de Walker era tão enigmática que influenciou artistas como Ministry, Faith No More, My Bloody Valentine, Metallica, Helmet, Prong, Nirvana, Soundgarden e, inclusive, meus projetos primal…, Secret Society e OUTONO, que misturam perfeitamente elementos de rock, industrial e música de vanguarda.

Geordie, Youth, Coleman e Ferguson: o Killing Joke em 1980

Meu primeiro contato com a música do Killing Joke foi na metade dos anos 1980, com os álbuns NightTime (1985) e Brighter Than A Thousand Suns (1986), que tiveram lançamentos em território nacional. Tudo mudou pra mim quando ouvi o álbum What’s This For! (1981) na casa da empresária da comunicação Moema Zuccherelli (na época empresária do meu grupo, o Epidemic). Desde então, eles se tornaram minha banda preferida, abrindo a mente para outras possibilidades sonoras, além do espectro do heavy e do thrash metal que eu escutava na época. 

A primeira vez que assisti ao Killing Joke ao vivo foi nos dias 29 e 30 de setembro de 2008, em Bruxelas (Bélgica), na turnê de reunião da formação original. Foram diversos concertos pela Europa, com eles tocando duas vezes seguidas em cada cidade, executando na integra os álbuns Killing Joke (1980), What’s This For! (1982) e Pandemonium (1994), além de singles e lados B. Na primeira noite, encontrei pessoalmente diversos gatherers (nome dado à legião de fãs do quarteto espalhada pelo mundo). Eram pessoas que eu já conhecia através da internet e das antigas mailing lists. Após o show fui convidado para ir até um pub, onde eles iriam receber alguns fãs. Fui apresentado aos integrantes. Todos foram extremanente cordiais comigo. Ficaram admirados por eu ter saído do Brasil só para vê-los. Tiramos fotos juntos e fui convidado para, no dia seguinte, assistir à passagem de som. Daí em diante criou-se uma relação muito bacana entre nós. Nos anos seguintes segui trocando mensagens com eles por e-mail, inclusive mostrando alguns de meus trabalhos musicais.

Em 2018 a banda anunciou sua primeira turnê pela america latina, com passagens pelo México, Peru, Chile, Argentina e Brasil. Fui a dois shows (São Paulo e Buenos Aires) e dessa vez eu que recebi e acompanhei alguns gatherers no Brasil, levei eles em uma churrascaria e bares em São Paulo. Viajamos juntos e ficamos hospedados nos mesmos hotéis. Eu tive acesso livre às passagens de som e ao camarim, ganhei presentes da banda e passei momentos inesquecíveis junto dos meus ídolos. Passeamos de taxi por Buenos Aires, fomos a uma churrascaria típica argentina, participei de festas no hotel após as apresentações, com queijos e vinhos – uma certa tradição no universo Killing Joke.

Mas o grande momento de todos foi quando Jaz Coleman nos convidou para ouvir com exclusividade em seu quarto de hotel, ao novo álbum Magna Invocatio, com releituras orquestradas de músicas do Killing Joke e gravado com a Filarmônica de São Petersburgo, que estava prestes a ser lançado. Foi uma experiência surreal: todos em silencio, ouvindo com atenção, enquanto o vocalista, de olhos fechados, regia a obra com batutas imaginárias. Após a audição, Jaz fez questão de saber a opinião de todos que lá estavam (éramos em quatro pessoas: os britânicos David “Diamond Dave” Simpson e David Molyneux, o francês Stephane “Frenchy Frenzy” Bongini e eu).

>> Leia na íntegra este diário de bordo de 2018 com o Killing Joke clicando aqui

Guto Diaz e Geordie Walker

Em 2022 o quarteto anunciou uma pequena turnê de cinco showsFollow The Leaders, que aconteceria em março de 2023 na Inglaterra, culminando num grande evento no Royal Albert Hall. Entrei em contato com meus amigos Molyneux e Bongini e contei que estava seriamente pensando em ir. Eles me disseram que, caso eu fosse mesmo, haveria algumas surpresas: eu só precisaria garantir a minha ida até Londres. Dia 6 daquele mês embarquei em mais uma incursão para assistir ao Killing Joke. Quando cheguei à capital inglesa, David e Stephane estavam me aguardando no aeroporto de Heathrow para darmos início à nossa aventura. Fomos de carro e acompanhamos três warm up gigs: dia 7 de março em Colchester, 9 em Londres (onde o Killing Joke se apresentou pela primeira vez no mítico 100 Club), 10 em Wolverhampton. Depois, finalmente o grandioso evento no Royal Abert Hall, dia 12, novamente em Londres. 

Nesses quatro dias eu tive acesso geral a tudo. Assisti a todas as passagens de som, podendo acompanhar de perto o processo de montagem de equipamento e o soundcheck. Permitiram o acesso aos camarins antes e após os concertos. Foi simplesmente inacreditável. Na primeira noite após o show em Colchester, enquanto acontecia a famosa festa dos queijos e vinhos, pude conversar bastante com eles e com a equipe. É claro que dessa vez fui preparado, com presentes para cada um. Levei duas garrafas de cachaça, uma para Geordie e outra para Big Paul; uma caixa de charutos especiais brasileiros para Jaz e discos para Youth (Da Lama Ao Caos, do Chico Science e Nação Zumbi; A É Concavo B É Convexo, dos curitibanos do ruído/mm; e Realce, de Gilberto Gil). 

No dia seguinte, voltamos para Londres para o show no 100 Club. Esta é uma casa de shows icônica e minúscula, localizada no porão de um prédio na Oxford Street, no centro de Londres (lembra o antigo 92 Graus, em Curitiba). Pelo  100 Club já passaram grandes nomes do jazz e artistas como Muddy Waters, Bob Dylan, Rolling Stones, Paul McCartney, Oasis, Blur. Lá também foi onde Siouxsie & The Banshees fizeram sua estreia nos palcos. O show do Killing Joke foi catártico. O lugar é pequeno e estreito. O público fica praticamente esprimido entre a parede e o pequeno palco. A banda foi sublime nesta noite. Eles tocaram visceralmente e num volume extremamente alto. O local parecia um caldeirão de tão quente. 

No dia seguinte marcamos de nos encontrar bem cedo em frente ao hotel, porque teríamos de dirigir alguns bons quilômetros de Londres até Wolverhampton, que fica ao norte, próximo a Birmigham. Logo que desci encontrei com Stephane que me disse: “tenho uma surpresa para você hoje, aguarde”. A surpresa era que levariamos o guitarrista Geordie conosco no carro até Wolverhampton, pois ele não queria ir no ônibus de turnê, junto com a banda e a equipe. Foi uma das experiências mais surreais da minha vida viajar no mesmo carro ao lado do meu maior ídolo. Antes da partida, quando nos encontramos, Walker agradeceu novamente a cachaça e confessou ter dado um talagaço logo cedo. Daí ensinei a ele a receita da clássica caipirinha brasileira. Durante a viagem, as conversas foram bem triviais: família, cigarros, café, esportes, pescaria (um hobby dele!). É claro que Geordie também contou algumas histórias da estrada com o Killing Joke. Chegando em Wolverhampton, a gig foi no KK’s Steel Mill, casa de shows do guitarrista do Judas Priest, com grande porte e uma estrutura impecável. Mais uma vez eles entregaram uma performance arrebatadora. Voltamos na madrugada, de carro, mas desta vez Geordie veio dormindo por todo o trajeto.

Killing Joke ao vivo durante sua última turnê, em março de 2023

Finalmente chegou o grande dia, 12 de março de 2023. O Killing Joke faria uma apresentação sold out no emblemático Royal Albert Hall, teatro para mais de cinco mil pessoas inaugurado em 1871. O lugar é simplesmente magnífico. Faltam palavras pra descrever a sua beleza e opulência. Acompanhei a passagem de som inteira e os preparativos para a gravação (a noite foi registrada para um futuro álbum ao vivo) e depois fui convidado a ficar com eles nos camarins. Caminhar pelos corredores do Royal Albert Hall foi uma experiência incrível. Um pouco antes do início do show me dirigi até a plateia, pois eu queria assistir a tudo de frente. A apresentação foi magnífica. Eles entregaram toda sua fúria e intensidade de modo sublime. Logo depois teve uma festa só para convidados dentro dos bares do Royal Albert Hall, salões de uma beleza indescritível. Conheci ali inúmeras pessoas de diversos lugares do mundo e me diverti muito. Estava ainda em êxtase, absorvendo tudo que tinha acontecido em menos de uma semana.

Em todos os quatro shows em que estive presente tive a oportunidade de rever algumas pessoas que já havia encontrado em Bruxelas em 2008 e também conhecer pessoalmente uma infinidade de outros fãs dos quatro cantos do mundo – alguns que já conhecia pelas redes sociais e outros a quem fui apresentado pela primeira vez. Essa é uma das coisa mais legais sobre os gatherers: eles fazem você se sentir como se fosse parte de uma grande família, uma congregação de fãs com a mesma paixão e admiração pelo Killing Joke. 

Como tudo tem um fim, chegou a hora de ir embora. No dia seguinte me de despedi de meus amigos e retornei ao Brasil. Quando entrei na sala de espera do aeroporto, inesperadamente, a última pessoa que encontrei antes de embarcar foi o Geordie (que estava voltando para Praga!). Conversamos brevemente e na hora do adeus ele me disse “safe travels”. 

Quem poderia imaginar que menos de nove meses depois ele estaria deixando este plano? Agora é minha vez de dizer adeus e desejar “safe travels, my friend”. Escrevendo esse relato estou tomado de uma imemsa tristeza, como se tivesse perdido um irmão ou um amigo muito próximo. Obrigado por sua obra, inspiração e todo legado que deixou. Você nunca será esquecido. Honor The FireAbsent Friends Shall Live By Love!

Geordie era de longe o mais quieto e o membro mais difícil de se conhecer do Killing Joke. Sempre ficava no seu canto sem chamar a atenção, evitava dar entrevistas e não era muito receptivo às súplicas febris de fãs. Apesar disso, nunca se comportava como uma celebridade ou uma estrela do rock. Assim que se quebrava essa barreira inicial, ele se mostrava uma pessoa extraordinária. Um componente integral e insubstituível do som característico da banda na qual ele tocou continuamente por mais de 46 anos.

Ouso dizer que sem ele este é o fim de uma era chamada Killing Joke.