Arts, Movies, Poetry

Vermelho Monet

Autor de Cine Holliúdy assina um drama sobre o mercado das artes com intensa paleta de cores e versos furiosos de Florbela Espanca

Texto por Abonico Smith

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Vermelho é a cor mais quente. Pelo menos para o pintor português Johannes Van Almeida, fã confesso do tom incandescente dos entardeceres dos quadros assinados pelo impressionista francês Claude Monet. Vermelho é justamente a área do círculo cromático que ele procura preservar em sua memória desde que uma doença degenerativa passou a, progressivamente, tomar o que ainda lhe resta da visão. Sua esposa (e igualmente pintora) Adele é ruiva, tem sardas e usa e abusa da cor vermelha em seu figurino. Johannes é eternamente apaixonado por ela e é também o seu cuidador depois que a evolução do mal de Alzheimer abrevou sua carreira e lhe impôs grandes limitações de fala e movimento. Por isso, Almeida é mestre em pintar figuras femininas e abusar deliciosamente da matiz simbolizada pelo fogo.

É em torno desta relação intensa de paixão e sofrimento de Johannes (Chico Díaz) que gira a história de Vermelho Monet (Brasil/Portugal, 2024 – Pandora Filmes), criada por Halder Gomes. Agora o cearense (diretor e roteirista mais conhecido pelas comédias escrachadas como Cine Holliúdy 1 e 2, O Shaolin do Sertão e Os Parças) se lança em um drama que gira em torno do mundo criativo e comercial das artes plásticas. Aliás, é também uma declaração de amor do cineasta à pintura, misto de paixão “secreta” e hobby seu.

Enquanto cuida de Adele (Gracinda Nave), Johannes sofre em busca de uma grande inspiração para continuar pintando enquanto ainda lhe resta o puco de visão e a memória dela (repetindo exatamente o que enfrentara Monet no final de sua vida). Ele nunca fora reconhecido na área. Aliás, a fama ele conquistou, mas como falsificador de pinturas antigas com rosto feminino. Recém-saído da prisão, onde ficou cumprindo um tempo de reclusão por isso, ele volta às ruas, praças e parques de Lisboa nos passeios diários com a esposa até se deparar com a encantadora figura da atriz brasileira Florence Lizz (Samantha Heck, iniciante no cinema e mais conhecida do público nerd por ter feito a personagem Sheila na propaganda de TV com os personagens do mítico desenho animado Caverna do Dragão em live action). Fica obcecado pela jovem ruiva, a ponto de pintar com intensidade inspirado por um painel de colagem de fotos de jornais e revistas da nova musa e desejar a sua presença como modelo no ateliê. O pintor quer, enfim, provar que pode ter o seu talento autoral reconhecido.

Quem faz a ponte entre os dois acaba sendo a inescrupulosa marchand Antoinette Léfèvre (Maria Fernanda Cândido), figura poderosa do mundo europeu das artes, com altas conexões com milionários e colecionadores e leiloeiros de Paris e Londres. Dona de uma galeria respeitada na capital portuguesa, ela lida com a sedução sexual da ninfeta brasileira enquanto luta para manter o domínio psicológico diante de Johannes, deixando-o no underground à base das falsificações que lhe rendem milhões. É na manipulação de ambos que Antoinette injeta boas doses de suspense na trama.

Enquanto isso, Adele e Florence se reconhecem uma na outra. A primeira vê a jovem naquele lugar de desejo ao qual já pertencera. A segunda vê na esposa de Almeida uma alma boa e que teve a trajetória interrompida injustamente por algo maior, a doença – tudo o que a atriz deseja em Lisboa é superar suas limitações de novata na dramaturgia e convencer o arrogante diretor do filme que está rodando de que é capaz e foi a escolha certa dos produtores para interpretar a protagonista. O longa no qual a ruivinha trabalha gira em torno da vida e da obra de Florbela Espanca, um dos maiores nomes da poesia portuguesa de todos os tempos ao lado de Fernando Pessoa. É justamente no universo dos versos de Florbela, repletos de fúria, paixão, intensidade e desejos (tal qual o rubro dos quadros de Monet), que as duas se encontram. Os textos que decora para os ensaios das cenas que rodará é a área de Florence. Já a de Adele está nos pensamentos, sempre ouvidos em voice over por meio da estupenda interpretação de Gracinda.

Florbela também é citada em uma sensacional versão fadística de “Fanatismo”, poema musicado pelo também cearense Raimundo Fagner e gravado em seu álbum Traduzir-se, de 1981. Além da trilha sonora, que traz uma metalinguística “Hot Stuff” (hit de Donna Summer) em um baile à fantasia que cita quadros de outros pintores como Matisse e Van Gogh), Vermelho Monet também impacta pela exuberante fotografia com o uso delicado de luz e sombras e uma paleta que realça a exuberância do vermelho, muitas vezes em contraste com o azul. Aliás, este duelo entre as duas cores se explica em um dos momentos mais interessantes dos diálogos criados por Halder.

E claro que mesmo em um filme dramático não poderia faltar um pouco do humor peculiar do cineasta. Aqui ele se manifesta nas considerações ditas pela trinca principal de personagens a respeito de como realmente funciona o mercado das artes e do que muita gente pensa a respeito dele. Não gargalhe se conseguir.

Music

Jethro Tull

Oito motivos para não perder a apresentação da icônica banda liderada por Ian Anderson em sua nova passagem pelo Brasil

Texto por Daniela Farah

Foto: Divulgação

Seven Decades é o nome oficial da nova turnê. Pode parecer muito. E, de fato, é. Pode parecer erro de cálculo, já que o vocalista e fundador, o escocês Ian Anderson, vai completar 77 anos de vida no próximo mês de agosto. Mas, de fato, não é. O Jethro Tull foi fundado em 1967, quando o músico ainda estava saindo da adolescência. Portanto, o período em atividade compreende justamente sete décadas, dos anos 1960 aos anos 2020. Mesmo com alguns pequenos períodos de pausa, provocada por afastamento entre os principais integrantes e remanescentes, certo é que a carreira permanece seguindo em frente.

A boa notícia para os fãs brasileiros é que esta turnê volta a trazer Anderson e seus músicos para o Brasil. Serão quatro apresentações nesta semana e a rota de escalas compreende Belo Horizonte (dia 9 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui), Porto Alegre (dia 10 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui), Curitiba (dia 12 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui) e São Paulo (dia 13 – para compra de ingressos e ter mais informações, clique aqui). O repertório trará grandes sucessos espalhados pela longeva trajetória com a adição de faixas do mais recente álbum de estúdio, RökFlöte, lançado há exatamente um ano.

Para celebrar a nova vinda de Anderson e seus asseclas para cá, o Mondo Bacana discorre sobre oito motivos para você não deixar de ver a banda em ação novamente aqui.

Raiz folk

Ainda que Ian Anderson tenha passado boa parte da sua vida na Inglaterra (mudou-se aos 12 anos), ele nunca deixou de lado suas raízes escocesas. Isso reverberou na sonoridade do Jethro Tull. Anderson achava que faltava algo que desse uma cara mais europeia para o seu som e foi buscar isso em suas raízes inglesas e escocesas. Vem daí, dessa vontade de ter seu ambiente representado na sua arte, que surgiu a pitada celta que faltava para completar o Jethro Tull. Diga-se de passagem, aliás, que essa proposta bucólica até combina muito bem com o nome, inspirado em um agricultor famoso. A banda ficou conhecida por levar essa representatividade da musicalidade celta para o mundo. Ou seja, é a possibilidade de assistir cara a cara o folk britânico em sua mais pura raiz criativa. E de uma maneira bem divertida!

Performance de palco

Ian Anderson é, por si só, uma figura controversa. Um escocês, apaixonado por blues, que resolveu fazer rock tocando flauta. E fez isso tão bem que em 1989, o Jethro Tull abocanhou o Grammy de Melhor Performance Hard Rock/Metal, tirando-o das mãos do Metallica e seu aclamado álbum … And Justice For All. Ian tem uma presença de palco cativante. Entrega tudo e um pouco mais, seja através de seus olhos que parecem interpretar cada nota da flauta, por suas danças peculiares, tocando em uma perna só ou dando pequenos pulos enquanto canta.

Idade avançada

Para os fãs é sempre uma benção ter a oportunidade de seguir acompanhando seus ídolos lançando novidades e realizando concertos e turnês. Entretanto, também chega a ser cruel pensar que a cada temporada que se vai, menos tempo resta para aproveitar as suas presenças neste plano. Para quem mora no Brasil, então, chega a ser pior quando o assunto são os grandes deuses do rock de todos os tempos. Já são bem menores as chances de todas as turnês chegarem à América do Sul por questões financeiras, de logística e de maior percurso territorial a ser enfrentando sobretudo para quem mora longe dos grandes centros urbanos para onde as datas dos concertos acabam sendo marcadas. Ian Anderson está com 76 anos e é um poucos pilares do rock dos anos 1960 e 1970 ainda em plena atividade, compondo, criando, gravando, tocando ao vivo, correndo o mundo.

Confusão de gêneros

É hard rock, heavy metal ou rock progressivo? Qualquer fórum de discussão sobre música na internet (os melhores!) possui um tópico sobre a sonoridade do Jethro Tull. A diversidade é tanta que fica difícil encaixar em uma só gavetinha. Mesmo que os mais xiitas (ou troo) concordem que o grupo não entra na categoria metal, é uníssono que o Jethro Tull é uma das bandas que exerceu uma influência muito forte nas principais bandas do gênero que vieram depois. A experimentação foi tanta (hard rock, blues, folk, clássico, etc) e deu tudo tão certo que estamos aqui falando deles em pleno ano de 2024. A questão é que vale a pena sair de casa por uma lenda como essa, que transformou, inspirou tantos músicos (dos quais você provavelmente é muito fã!) a seguir suas carreiras. Inclusive, Ian Anderson participa em quatro músicas do novo álbum do Opeth. Então, nada como beber diretamente da fonte, não é mesmo?

“Aqualung” (a música)

Se você acha que não conhece Jethro Tull, pare tudo o que está fazendo neste momento e coloque os primeiros minutos da música “Aqualung”. Ela soa familiar? A indústria do entretenimento usou e abusou bastante dessa introdução dos Simpsons aos Sopranos. E com razão: ela é genial. “Aqualung” fazia parte do álbum homônimo lançado pelo Jethro Tull em 1971. Nada convencional, como tudo que remete à banda. A letra, repleta de realismo, fala de um homem que é morador de rua e observa o mundo a partir de um banco de parque. “Aqualung”, tocada e cantada pelo próprio Ian Anderson, é o tipo de coisa que faz a gente querer sair de casa. Sempre.

“Locomotive Breath”

“Locomotive Breath” também faz parte do histórico álbum Aqualung e que também faz parte do repertório da atual turnê. A letra é pura loucura filosófica. Segundo Ian, lá em 1971, estávamos num trem de crescimento populacional e ninguém sabia onde ele iria parar. Mas a sonoridade, essa é para aplaudir de pé. As guitarras criadas de Martin Barre são um espetáculo à parte, provavelmente para descrever a velocidade do trem e a pressão contidas na narrativa. Não é à toa que bandas de metal como WASP e Helloween lançaram suas versões para essa música.

RökFlöte

Após ficar anos e anos  sem lançar material novo, Jethro Tull tem um novo álbum, seu 23º. Ian Anderson criou a sua versão sobre o Ragnarok, da mitologia nórdica, em RökFlöte. Desta vez ele contou com David Goodier (baixo), John O’Hara (teclados), Scott Hammond (bateria) and Joe Parrish James (guitarra). Mesma banda que vem com ele ao Brasil, exceto o guitarrista Joe, substituído por Jack Clark. E, sim, eles vão tocar músicas do novo trabalho ao vivo.

Sete décadas em um concerto

Sete é rico em simbolismos. Sete são as notas musicais e as figuras de tempo na música. O número também é o símbolo da vida eterna no Antigo Egito; e, se a numerologia considera um número divino, a aritmética o considera feliz. Mas sete décadas é um número absurdo. Chega a ser até impensável o quanto o mundo mudou nesse tempo. Só para citar os suportes do mercado fonográfico: vinil, fita cassete, compact disc, DVD, MP3 player, pendrive, streaming… E o Jethro Tull tem a árdua missão de trazer um pouco dessas décadas de criação e ação em um só show. A vantagem é que suas músicas continuam a fazer sentido mesmo com toda a passagem de tempo. Por isso é excepcional quando uma banda que atravessou todo este período se apresenta nos dias de hoje. Não é só música, é História.

Movies

Instinto Materno

Anne Hathaway e Jessica Chastain provocam um tenso embarque em um thriller psicológico sobre maternidade e a falsa sensação de tranquilidade

Texto por Abonico Smith

Foto: Imagem Filmes/Califórnia Filmes/Divulgação

No mundo pós-guerra dos países desenvolvidos do século 20, o subúrbio significava esperança, prosperidade e tranquilidade. A classe média alta fazia as grandes cidades se expandirem e iam buscar ambientes confortáveis e saudáveis em residências construídas em espaços um tanto mais afastados, porém também relativamente próximos do centro urbano.

É no subúrbio que moram as inseparáveis amigas e também vizinhas Céline e Alice. Já tendo passado da casa dos 30 anos, ambas são felizes em seus casamentos perfeitos, com grandes partidos de maridos, rendas estáveis, proeminência em suas profissões e, o mais importante, realização como mães. Cada uma tem um filho e, como os meninos são quase irmãos (da mesma idade e estudam e brincam sempre juntos), tudo ainda se torna mais próximo daquela felicidade típica de comercial de margarina. Só que em dobro.

Assim começa Instinto Materno (Mother’s Instinct, EUA, 2024 – Imagem Filmes/Califórnia Filmes), novo filme com Anne Hathaway e Jessica Chastain encabeçando o elenco e também assinando como produtoras executivas. A história, na verdade, vem de um livro escrito pela belga Barbara Abel. Em 2018, o diretor e roteirista também nascido na Bélgica Olivier Masset-Depasse levou às telas uma adaptação da trama, que agora ganha versão hollywoodiana, mas sem mexer muito na estrutura original de Abel, que também assina o roteiro das duas versões. Os nomes mudaram um pouquinho mas a ambientação não: a tranquilidade do subúrbio parisiense passou para a de um não especificado nos EUA. Já a temporalidade permanece ali bem no início dos anos 1960, quando o poder nas mãos da família Kennedy passava uma enorme sensação de segurança aos EUA, mesmo com a Guerra Fria e outros conflitos rolando soltos longe do território nacional.

O ponto de não retorno ocorre quando Max, filho de Céline (Hathaway), perde a vida em uma tragédia doméstica que poderia muito bem ter sido evitada. É neste exato momento que as amigas passam a divergir radicalmente. Alice (Chastain) entra em uma espiral de paranoia e passa a desconfiar de tudo e a todo instante da vizinha. Estaria ela, talvez com a ajuda do marido, manipulando tudo secretamente a ponto de realmente ser uma ameaça para sua família? Ao se aproximar do pequeno Theo como forma de superar o luto e continuar exercendo o papel da maternidade, estaria ela, de fato, comportando-se como uma ameaça velada também à vida de seu filho?

Neste enredamento de suposições e frequentes crises de pânico, quem está na poltrona do cinema embarca junto com uma ótima atuação de Jessica. Só que pequenos detalhes vão dando, pouco a pouco, pistas do que pode estar acontecendo. Dica: um deles é a paleta de cor que vai sendo disponibilizada pelos figurinos de ambas as mulheres. Quanto a isso, quem gosta daqueles tons pastel bastante em voga naquela época vai vibrar, inclusive.

O thriller psicológico que estabelece a estreia na direção do francês Benoit Delhomme (que foi o diretor de fotografia na versão belga da história e só assumiu este longa porque Masset-Depasse precisou se afastar para focar em outro projeto) joga você, junto com a protagonista loira, em aspectos bem mundanos e sombrios que se escondem por trás da falsa felicidade do cotidiano nos subúrbios do lado de cima da linha do Equador. Mas também faz pensar sobre os sentimentos de luto e perda além de papeis e funções exercidas durante relacionamentos como a amizade e, sobretudo, a maternidade. Tudo com a perfeita química estabelecida neste terceiro trabalho em conjunto entre Hathaway e Chastain mais a tensão exigida pelo decorrer da trama criada por Abel.

Movies, Music

Priscilla

Cinebiografia assinada por Sofia Coppola mostra como, longe dos holofotes, o idolatrado Rei do Rock prendia a esposa em uma gaiola

Textos por Janaina Monteiro e Abonico Smith

Fotos: O2/Mubi/Divulgação

As lágrimas custam a cair dos belos olhos azuis de Priscilla Beaulieu. Aos 27 anos, em 1972, a jovem texana simetricamente perfeita está diante de um Elvis Presley milimetricamente sugado pela exaustão da fama e já em processo de deterioração. Ela, finalmente, consegue dizer “não”.

Cilla, como era carinhosamente chamada pelo eterno Rei do Rock, sai de cena antes de assistir à derrocada de um dos principais artistas de todos os tempos, ídolo de uma geração. Um astro de tamanha magnitude, cujo brilho, aos poucos, ia sendo ofuscado pelos excessos. 

“O casamento transforma muitas loucuras curtas em uma longa estupidez”, escreveu o alemão Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra, obra que inspirou o também alemão Richard Strauss a compor seu poema sinfônico de mesmo nome (Also Sprach Zarathustra). A música foi tema do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço e serviu de introdução para a turnê de Elvis nos anos 1970, em arranjo assinado e gravado pelo brasileiro Eumir Deodato. 

No semblante de Priscilla, interpretada gloriosamente por Cailee Spaeny no filme homônimo da diretora Sofia Coppola, o espectador acompanha a odisseia da ex-mulher do astro. É o desgaste de um relacionamento que começou em um terreno puro e cristalino e culminou em um árido deserto chamado ofuscamento e solidão. 

O que vemos em Priscilla (EUA, 2023 – O2/Mubi) é um blend de emoções: a triste decepção do não finalmente dito se une ao alívio de um sim. Um sim diferente daquele que simbolizava a autorização dos pais de Priscilla em consentir o relacionamento amoroso entre uma adolescente de 14 anos e um dos rapazes mais cobiçados do mundo, que na época tinha 24. 

Era um sim diferente daquele proclamado seis anos antes, quando Elvis pediu o amor da sua vida em casamento. Trata-se do sim à liberdade, do sim à busca pelo sua verdadeira identidade. Uma resposta que exigiu muita força e coragem para ser verbalizada.

Como num soneto de Vinícius de Moraes, o conto de fadas que havia começado em 1959, chegava ao fim. Mas, nesse caso, é Dolly Parton quem entrega a trilha sonora do desfecho de uma das histórias de amor mais icônicas do mundo, “I Will Always Love You”, canção composta por uma das mais representativas cantoras da country music e que, inclusive, Elvis tentou gravar mas não conseguiu. 

Nesse coming of age, Sofia Coppola acrescenta mais uma mulher forte e solitária à sua lista de protagonistas e se torna especialista em levar relacionamentos tóxicos às telas. Como no caso de Encontros e Desencontros, que, aliás, trata do próprio divórcio de Sofia com o diretor de cinema Spike Jonze. 

Coppola, com a montagem frenética e elipses temporais que já se tornaram sua marca registrada, consegue condensar esse romance supostamente improvável diante das inúmeras assimetrias da vida. Mas nem a diferença de idade (10 anos) e nem a diferença de altura (Priscilla tem 1,63; Elvis, 1,82) serviram de obstáculo para o casal. Priscilla estava no lugar certo, na hora certa.  

Inspirado na biografia Elvis e Eu, lançada em 1985 e assinada por Priscilla Presley e Sandra Harmon, o filme chega aos cinemas brasileiros no ano seguinte ao lançamento de Elvis, de Baz Luhrmann, em que todos os holofotes se voltavam ao grande ídolo pop do século 20 e sua relação turbulenta com o pai e o empresário salafrário. Contudo, agora, pela primeira vez, Elvis é o coadjuvante da história retratada a partir da versão de sua ex-mulher.

Coppola nos faz mergulhar de cabeça entre os anos de 1959 e 1973. Para isso, utiliza outra caraterística de sua cinematografia: uma trilha sonora impecável, que traz hits daquela época, alguns em versões mais recentes como “Baby I Love You”, de Ramones. As músicas que eram sucesso na voz de Elvis e não foram autorizadas para o filme definitivamente não fizeram falta.

De início, já somos fisgados pelo ar angelical da protagonista, que era fã de Elvis (afinal, quem não era?). Da fase idílica do relacionamento até a separação, imergimos no mundo de Priscilla, solitário e puro, que transparece na paleta de cores usada pelo diretor de fotografia Philippe Le Sourd (que trabalhara com a cineasta em O Estranho que Nós Amamos). 

Interpretado por Jacob Elordi (mais conhecido por aqui pelo trabalho no filme A Barraca do Beijo), o furacão Elvis é visto aqui em sua intimidade, com seus caprichos, manias e vícios. Com seu jeito sedutor de falar, suas pernas inquietas, seu gosto por decoração esdrúxula. Mas longe do spotlight e do frenesi ao redor, existia um drama particular: as dores de Priscilla ao se tornar a senhora Presley. 

Sofia permanece fiel ao início da biografia e nos introduz à protagonista ao som dos acordes oníricos de “Venus”, de Frankie Avalon, na fase em que ela está na Alemanha. No livro, Priscilla conta que, como seu pai era oficial do exército, as mudanças eram constantes em sua vida, o que dificultava manter laços de amizade. Portanto, quando ela é abordada por um amigo de Elvis, que a convida para ir à casa do cantor, o tédio de seus olhos se transforma em esperança.

No primeiro ato, acompanhamos o encontro de dois corações solitários. A adolescente tímida, que ainda não usava as maquiagens e roupas cheias de glamour, e um astro da música e do cinema, que havia recém perdido a mãe. Depois do primeiro encontro, a adolescente passa a viver nas nuvens e numa constante espera por alçar voo. Se uma garota já perde o chão por um simples mortal, imagina quando esse namorado se trata de Elvis Presley. 

Apesar da diferença de idade, Priscilla acreditava que Elvis havia encontrado nela uma confidente, alguém para conversar. Aos poucos, entretanto, o filme nos mostra como ela era moldada conforme a vontade do rei. Trata de como o rei a prendeu numa gaiola.

Quando é convidada a se mudar para Graceland, em Memphis, Priscilla passa por uma transformação aquém da sua vontade. É Elvis quem dita como ela deve se vestir (“listras não valorizam o seu corpo”), como se maquiar (devia usar o delineador mais marcado para valorizar os traços) e até a cor do cabelo. Elvis também lhe oferece pílulas para dormir (que são uma constante no filme!) e a introduz no mundo psicodélico do LSD. E assim segue a viagem pelos anos 1960, com olhos delineados de gatinho, sapatos de salto alto adornados com margaridas e laquê. Muito laquê.

Priscilla vira uma espécie de bibelô de Elvis. Uma boneca de porcelana intocável e munida de uma resiliência impressionante. Tanto é que seu relacionamento leva anos para ser consumado. Não por sua vontade, mas por capricho e prudência de Elvis. O romance permanece limitado a beijinhos e abraços, tanto é que muitas das cenas são rodadas com o casal na cama, como num namoro adolescente. Cristão devoto, Elvis pedia para que ela esperasse o momento certo. 

Enquanto o marido viajava para gravar seus filmes, Priscilla passava seus dias em Graceland acompanhando as mesmas revistas de fofoca que agora estampavam os supostos affairs dele. Numa certa altura do filme, a angústia chega a tomar conta. Será que ela vai suportar tudo isso sem se rebelar? Sem gritar? Sem se descabelar? 

Até que, afinal, chega o momento do confronto. E a resposta de Elvis é direta: quero uma mulher que seja capaz de entender e suportar essa situação. Nesse ponto, Cailee mostra porque foi indicada ao Globo de Ouro. Sua fisionomia expressa a dualidade de sentimentos: o olhar frustrado e amargurado diante dos rumores rapidamente se transforma numa postura de conformismo. Priscilla é a oficial e conseguiu cumprir o pacto das vistas grossas que tantos casais famosos acabam assumindo. 

Por outro lado, o roteiro de Sofia mostra um Elvis que também buscava transcender, seja com LSD ou com suas leituras sobre espiritualidade, como o livro Autobiografia de um Iogue, que ele queima depois na fogueira. Infelizmente, Elvis não teve um coach ou um empresário à altura.

E quando os dois finalmente se casam, Coppola opta pela elipse: Priscilla ressurge grávida de Lisa Marie, que, por sinal, não aprovou o roteiro da cinebiografia. À imprensa internacional, disse que pai fora retratado como um sujeito predador e manipulador. 

Nas cenas pós-créditos da vida real, Priscilla conhece um novo amor: o brasileiro Marco Antônio Garibaldi, de Curitiba, com quem teve um filho, o músico Navarone Garibaldi (Garcia), e de quem também se separou. Esta é a prova de que o mundo dá voltas. É a prova que nossas escolhas definem o nosso destino. (JM)

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Priscilla (EUA, 2023 – O2/Mubi) é, como entrega seu título, sobre Priscilla Presley, por mais que Elvis apareça em cena como um belo coadjuvante da história (e, detalhe, quase nunca em ação em palcos e estúdios). Só que justamente por retratar a intimidade da esposa do astro e sua conturbada relação conjugal que se arrastou por mais de uma década do lado de dentro dos suntuosos portões de Graceland que é perfeitamente possível dar uma de Gay Talese (que em 1965 cunhou um marco do New Journalism fazendo uma extensa reportagem-perfil sobre Frank Sinatra apenas entrevistando mais de uma centena de pessoas que gravitavam ao redor dele e sem trocar uma palavra com o astro) e perceber, no decorrer das cenas dirigidas e roteirizadas por Sofia Coppola, uma “cinebiografia paralela” do Rei do Rock.

Ok, você pode até argumentar que Baz Luhrmann já havia feito isso ano passado, com louvor e inclusive recebendo prêmios e indicações ao Oscar. Só que o objetivo de seu filme era justamente revelar como determindas particularidades da vida pessoal do cantor transformaram-no na persona pública que conquistou o mundo. O longa de Sofia, que faz da ancoragem da perspectiva feminina a principal marca em toda a sua trajetória de cineasta, revela justamente o inverso: como o maior astro do rock’n’roll interferiu no cotidiano de quem mais tempo esteve ao seu lado sem ter  vínculos familiares.

Por meio de aparições do Elvis ídolo pode-se ver como tudo isso o tornou em opressor, agressor, vilão. Claro que a intenção de Coppola passa longe do maniqueísmo, por mais que a filha Lisa-Marie, nos meses que antecederam a precoce morte, tenha chiado publicamente com a diretora e roteirista a respeito do modo como seu pai fora retratado por ela. Também não há a intenção de embate com a extensa legião de fãs do artista. Pelo contrário: entendendo como Elvis interagia com o mundo dá para entender como isto prejudicou (e bastante) a intimidade com a companheira, dez anos mais nova. Vale a pena ressaltar também que o filme é adaptado das memórias escritas por Priscilla e que a própria é diretora executiva da empreitada. Portanto, a fidelidade aqui é alta e sem passar pano para a imagem construída pela indústria do entretenimento.

Aqui estão oito passagens de Priscilla que servem também como testemunho de quem viveu de perto um pouco da História do rock.

A invenção da adolescência

Foi tudo culpa do cinema de Hollywood e seu amálgama com o efervescente rhythm’n’blues que saiu dos guetos noturnos negros para dominar rádios e lojas de discos com o novo batismo de rock’n’roll. No decorrer da primeira metade dos anos 1950 os mais jovens começaram a se sentir representados nas grandes telas. Seus problemas, suas angústias, seus comportamentos muitas vezes erráticos diante de uma sociedade repressora e, sobretudo, o fato de querer gritar ao mundo que, mesmo deixando de usar calças curtas e serem tratados como crianças, eles eram bem diferente do mundo chato de seus pais, tios e avós. O rock fez a função de trilha sonora de toda essa rebeldia que, de fato, já andava sendo reproduzida havia alguns anos nas ruas dos grandes centros urbanos estadunidenses. Os filmes representaram a mola propulsora para amplificar essa nova voz. Elvis era um apaixonado pela sétima arte. Decorava inúmeras falas de longas que via repetidas vezes e seu sonho era atuar em Hollywood, tal qual seus principais ídolos, James Dean e Marlon Brando – inclusive passando um período estudando no Actors Studo, em Nova York. Por sua vez, Priscilla era uma garota que, entre muitos nomes do rock, curtia ouvir… Elvis Presley.

Saudades da mãe na Alemanha

Em razão da carreira do padrasto nas Forças Armadas dos EUA, Priscilla morou em várias cidades e também outros países durante a infância e começo da adolescência. Por isso, sua maior dificuldade era fazer amizades por onde passava. Durante a passagem por Wiesbaden, na Alemanha, acabou conhecendo Elvis Presley por intermédio de um convite de um amigo dele, que a vira numa lanchonete bastante frequentada por jovens na região. Ela tinha apenas 14 anos e ainda estava no colégio. Ele, aos 24, já um astro do rock consolidado e dera uma pausa na carreira musical para, durante 18 meses, prestar o serviço militar em base estadunidense fixada por lá. O cantor estava abalado com a perda precoce da mãe Gladys, com quem possuía uma forte ligação sentimental. Foi justamente na ingenuidade dos 14 anos de Priscilla que Elvis afirmava ter reconhecido a pureza que enxergava na mãe, que falecera aos 46 durante o período vivido em solo germânico. Foi de presente para mãe que Elvis comprou a mansão chamada Graceland, onde morou ao voltar aos EUA e ficou até a sua morte. Foi para Graceland que Elvis levou Priscilla em definitivo, em 1962, depois da garota terminar suas obrigações escolares na Alemanha. Só que, em nome da manutenção de sua imagem pública de sex symbol e a garantia da alta popularidade, o artista se negava a se expor em fotos e aparições junto com a namorada.

Máfia de Memphis

Graceland era enorme. Não servia apenas como residência de Elvis. Era também seu escritório de trabalho, com direito a duas secretárias para fazer tudo o que o astro, seu pai Vernon e seu empresário Coronel Tom Parker solicitavam. Mas também o local era repleto de seus amigos inseparáveis. Uma turma de machos que ganhou a singela alcunha de Máfia de Memphis. Andavam sempre a tiracolo, parasitando a boa vida que ele levava na condição de artista multimilionário, Rei do Rock e, a partir de então, ator que carregava multidão de fãs ao cinema para ver seus filmes. Elvis carregava o pessoal para cima e para baixo, para suas viagens a Los Angeles e aos sets de filmagem. Com eles fazia tudo o que homens jovens foram acostumados a fazer em uma sociedade machista e patriarcal: se divertir em conjunto, deixando as mulheres de lado e em muitos casos menosprezando-as a maltratando-as verbal, física e psicologicamente. Com Priscilla “trancada” em Graceland, muito de seu cotidiano era acompanhar as travessuras pós-adolescentes do menino Elvis por meio de notas e matérias publicadas pela imprensa.

Viva Las Vegas

Umas das muitas decepções de Priscilla com o comportamento de Elvis ocorreu durante as filmagens de Viva Las Vegas (de 1964, que no Brasil ganhou o título de Amor a Toda Velocidade). Ignorando total e completamente a existência dela Graceland, o astro se apaixonou pela colega de elenco Ann Margret e nem sequer se importou em tomar cuidados para não tornar a relação pública. Só que o caso não durou muito tempo. Foi árduo durante as filmagens, mas, depois que a imprensa descobriu e passou a noticiar o tórrido romance (chegou a se falar até sobre noivado que nunca existiu!), a atriz sueca confrontou o parceiro e Elvis deu para trás no período da divulgação do filme por causa de Priscilla. O astro, também, sequer foi à pré-estreia em Londres porque Tom Parker não tinha passaporte não poderia sair do território estadunidense. Em Viva Las Vegas, Presley interpretava um obcecado piloto de corridas que quer participar de uma disputa na cidade dos cassinos mas é obrigado a enfrentar o revés de perder o dinheiro que usaria para comprar um motor possante. Como solução, passa a trabalhar de garçom. É aí que ele conhece uma bela professora de natação (Margret). Contudo, a relação não engrena por dois motivos: ela se sente incomodada com os riscos à vida que a velocidade do automobilismo pode trazer e ainda fica dividida ao ser cortejada por um nobre italiano que, ao contrário do protagonista, alardeia que largaria a paixão por carros caso encontrasse um grande amor.

Mão de ferro

Tom Parker sempre foi o grande manda-chuva da carreira de Elvis. Muito pela ingenuidade e credulidade do jovem, que deixava todas as questões “burocráticas” na mão do empresário para ficar livre para se divertir e performar. Isto deixou Parker com poderes totais para negociar e decidir tudo o que envolvia os bastidores da marca Elvis Presley. Se com o tempo este fator foi deixando-o com ares de vilão, trouxe também benefícios à então estrela em ascensão meteórica: o velho coronel soube trabalhar como ninguém a imagem do galã em seus primeiros anos de carreira. O licenciamento de Elvis foi vinculado a diversos tipos de produtos do dia a dia e impulsionou ainda mais a conquista da horda de fãs, primeiro nos Estados Unidos e depois mundo afora.

Frustração com o cinema

Se para o jovem Elvis Presley o cinema era uma grande paixão, ao longo de sua pausa na carreira musical tornou-se também sua grande frustração. Longe de ser aclamado publicamente pela imprensa especializada como um grande ator, passou a culpar os papeis, personagens e roteiros escolhidos por Tom Parker pelo “fracasso” na investida. Os milhões de dólares feitos pela sucessão de longas-metragens não faziam seus olhos brilharem. Ele estava cada vez mais inclinado a retomar de vez o caminho da música.

Retorno aos palcos

De saco cheio com os filmes “vazios” que estrelava para Hollywood, Elvis começou a forçar a barra com Tom Parker para retornar ao seu “habitat natural”: os palcos. Depois de quase uma década de ausência, acertou seu retorno em um especial para a TV no fim de ano. Já estava mais do que atrasado para isso. Afinal, o posto de Rei do Rock já estava mais do que perdido para os Beatles, que havia quase meia década mandavam e desmandavam nas paradas, vendagens e histeria da juventude. As filmagens ocorreram em meados de 1968 e o que seria inicialmente um programa voltado ao Natal transformou-se em um furioso retorno de um Elvis, agora bem mais velho e seguro de si, vestindo preto e voltando a flertar com a música negra, sobretudo o furioso soul de um EUA embalado pela luta por direitos raciais, civis e femininos. No dia 3 de dezembro, a NBC levou ao ar em rede nacional o programa. A melhor parte foi a seção intimista, com o astro ladeado pelos músicos de sua banda e em um palquinho cercado pelo público.

Residência em Las Vegas

Tom Parker não podia sair do território americano: ele não tinha passaporte por ser imigrante ilegal nos EUA. Então, a saída foi armar uma residência triunfal de Elvis em Las Vegas, terra da gastança de dinheiro em hotéis luxuosos e cassinos. A ideia deu tão certo que, entre 1969 até a morte do cantor em 1977, foram realizados 636 concertos, sempre com plateia lotada e o recebimento de todos os convidados VIP no camarim logo após. Durante  cada período de shows, eram realizados dois deles por noite. Portanto, esta intensidade provocou um turbilhão movido a drogas na vida de Elvis, cada vez mais, deixando o cotidiano com Priscilla completamente de lado até o envolvimento dela com o professor de artes marciais e as consequentes separação e “fuga” de Graceland. (AS)