Moradores de ocupação de antigo cinema recriam cenas de clássicos filmes exibidos nos tempos de glamour do local

Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Bretz Filmes/Divulgação
Um cinema de rua fechado é a suspensão da história do consumo de cinema naquela cidade. Alguns são demolidos, outros viraram lojas, salões e igrejas evangélicas. O histórico Cine Marrocos, em São Paulo, recebeu à época de seu funcionamento o primeiro Festival Internacional de Cinema em solo brasileiro, em 1954. Entre 2013 e 2016, foi lar de dezenas de famílias sem teto, que ocupavam o prédio em busca de moradia.
Essas pessoas são as personagens do longa-metragem Cine Marrocos (Bretz Filmes, 2021 – Brasil), dirigido por Rodrigo Calil e baseado em uma experiência teatral: moradoras e moradores da ocupação reproduzem cenas de clássicos filmes – a saber, aqueles que participaram do I Festival Internacional de 1954, cujas películas ainda se encontram no prédio. É dessa premissa, contudo, que surgem alguns problemas narrativos que o filme não consegue resolver.
A primeira complicação surge com a constante demonstração de cena após cena refeita que, embora interessante e animadora nas primeiras tentativas, cai em repetição desagradável à medida que repete o mesmo processo – tanto narrativo quanto de montagem, que opera sempre a mesma lógica, como disco riscado. Soma-se a isso a sensação de que, embora todo personagem principal tenha uma cabeça falante para contar sua trajetória, não é interação suficiente para conhecermos a pessoa, embora conheçamos seu sofrimento.
Desse modo, por mais que essas pessoas sejam a fundação da narrativa do documentário, não são tratadas com a devida referência e proximidade para traçar uma conexão empática suficientemente capaz de amplificar a potência de suas interpretações. São claros os paralelos que se tenta construir – não é à toa que a ex-dançarina opta por interpretar Norma Desmond, de Crepúsculo dos Deuses, ou o rapper camaronês refugiado decide por versar o monólogo de Marco Antônio em Júlio César sobre um beat. Não obstante, é dificultada uma relação que ultrapasse o reconhecimento racional do espelhamento pessoa/interpretação; em outras palavras, se entendemos uma pessoa somente por sua história de sofrimento, conhecemos de fato essa pessoa?
Há, ainda, uma rigidez na fotografia que, embora permita, creio eu, maior tranquilidade dos moradores da ocupação frente às câmeras, acaba por enrijecer o próprio filme. Ao alternar entre cabeças falantes e cenas estáticas ou de pouco dinamismo, Cine Marrocos assiste passivamente seus personagens, assim deixando de construir ativamente seu próprio discurso. É evidente que a experiência é muito positiva e proveitosa, mas o documentário pretende meramente expô-la ou expressar, espelhar e transcender a dinâmica de liberação e identificação artística que ali ocorre? É possível que pretendesse a segunda opção, mas acabou por entregar a primeira.
O documentário também figura um descompasso tonal que interrompe a obra, ao misturar política a uma narrativa que, até então, nada se aproximava de uma discussão macropolítica. É evidente que o assunto é indissociável da conjuntura em que se coloca o longa-metragem, mas, justamente por isso, a abordagem é análoga ao uso de parênteses em meio à narrativa, em vez de estar integrada a ela de maneira unitária.
Assim, Cine Marrocos é a documentação de um processo rico, inerentemente político e libertador, mas se prova incapaz de articular essas mesmas conexões entre seu discurso e o público que o assiste. Atravancado por sua rígida e repetitiva mise-en-scène, o longa busca celebrar o cinema sem permitir-se experimentar essa reverência em sua própria linguagem.