Uso do jazz nos salões dos ricos mascara problemas de um roteiro que não sabe explorar o choque social da Nova York dos anos 1920

Texto por Luca Passos
Foto: Netflix/Divulgação
O jazz, um estilo musical essencialmente popular que emergiu das classes mais pobres e marginais da vida urbana estadunidense, surgiu de uma interseção cultural em que se encontravam os escravos e ex-escravos do sul do país e, com o passar dos anos, ganhou uma dimensão quase erudita, sendo aceito nos mais requintados salões e bailes das classes média-alta e alta daquele país. Passou a ser elegante ouvir música sincopada, ela se tornou o som oficial dos loucos anos 1920.
A atriz britânica Rebecca Hall (conhecida por Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen, e Homem de Ferro 3) faz sua estreia na direção com Identidade (Passing, EUA/Reino Unido/Canadá, 2021 – Netflix), que também foi escrito e produzido por ela. Baseado em um romance homônimo escrito em 1929 por Nella Larsen, o filme se desenvolve em um fim de ano nova-iorquino da mesma década. Depois de caminhar por uma das regiões mais abastadas da cidade à procura de um presente para seu filho, Irene Redfield (Tessa Thompson) se refugia da opressão urbana em um café num saguão de hotel e ali encontra Clare Bellew (Ruth Negga), uma amiga de sua infância que há muito não vê. A base da trama é o choque entre essas duas personagens. O termo usado como o título original se refere a um fato comum entre as pessoas negras durante a era em que imperava a lei segregacionista de Jim Crow nos Estados Unidos: muitas delas “se passavam” por brancos, ato que alterava substancialmente sua realidade social. Clare é uma mulher que se passa por branca e vive uma vida abastada, quase afastada da realidade. Irene, por sua vez, ainda vive no Harlem, bairro historicamente negro de NY. Por mais que pudesse se passar por uma branca, não o faz – pelo contrário, é ativa dentro da comunidade negra de sua região.
O primeiro reencontro entre as duas, com uma intimidade interrompida pelo marido de Clare (Alexander Skarsgård), um típico ricaço nova-iorquino racista alheio à origem de sua esposa, marca profundamente ambas as protagonistas. Acompanhamos a vida de Irene, pequenas amostras de seu dia a dia, sua relação com o marido Brian (André Holland), os dois filhos (Justus David Graham e Ethan Barrett) e a empregada, Zu (Ashley Ware Jenkins). A casa da família Redfield é grande e eles vivem relativamente bem, porém o incômodo de Irene se faz latente desde o começo. Na verdade, há algo que a tira da realidade, que a faz fixar seus olhos no vazio em diversos momentos, algo que fica oculto para o público: um mal-estar geral que nunca é satisfatoriamente abordado. No entanto, ela procura uma paz mínima nas coisas que preenchem seu cotidiano, até que este é revirado por uma visita de Clare à sua casa, que é, na verdade, quase uma invasão.
O filme, portanto, tem um argumento excelente, fecundo de possibilidades de exploração e desenvolvimento tanto das personagens quanto da teia social na qual elas estão envolvidas. No entanto, é um enredo difícil para que se trabalhe um tema complexo, que traz uma necessidade de uma visão única, corajosa e tenaz, que não subscreva a cacoetes quaisquer, com perigo de perder completamente a mão do filme, tornando-se um entre muitos. Isso é, justamente, o que acontece.
Há diversos caminhos para explicitar a mornidão com que o longa trabalha um tema que é tudo, menos morno. Os personagens que gravitam as duas protagonistas são, na melhor das hipóteses, pífios. O marido interpretado por André Holland é, de longe, o mais carismático, em grande parte por mérito do ator, que trabalha diálogos banais com uma desenvoltura cativante e tem alguns trejeitos que fazem com que a história caminhe (em especial na desconfiança progressiva que Irene tem de relacionamento com a amiga). O marido de Clare, interpretado por Alexander Skarsgård, é sintetizado nas palavras que usei sobre ele há dois parágrafos. Nada mais se tem a dizer sobre ele, que não serve sequer como contraponto a outros personagens. Hugh Wentworth (Bill Camp), escritor amigo dos Redfield (e interesse intelectual de Clare), é um cara insuportável, intelectualizado, sempre tentando explicar para os outros o mundo que os cerca, com “sacadinhas” espirituosas e uma falsa autoconsciência que só poderia ter saído de um roteiro mal delineado, que precisa de verborragia explicativa (mesmo que seja para “sabiamente” subvertê-la) para ter condução. Zu, personagem de Ware Jenkins, a empregada da família Redfield, é sub-aproveitada ao extremo. O comentário social que é uma mulher que não “passaria” como branca como empregada de uma que passaria é evidente, porém não passa disso: algo que está no filme e nem espacialmente Rebecca Hall é capaz de inserir um comentário digno sobre a situação (o pior é constatar o potencial perdido).
As protagonistas passam metade de suas interações projetando diálogos de um algoritmo que produz frases tocantes e a outra metade com falas artificiais socialmente engajadas, coisas que até um HAL 9000 teria a sensibilidade poética de não dizer. A ambiguidade da personagem de Clare – uma mulher que largou seu passado, aproveita sua riqueza material, mas que volta para seu lugar de origem, mesmo com todos os riscos que isso acarreta – e as dúvidas de Irene – que vê sua vida mudar constantemente e ser “descartada” por uma mulher mais desenvolta e mais branca que ela, tanto por parte de seu marido quanto de seus filhos – causam tanta emoção na roteirista quanto devem causar no público: zero. O filme é feito sem emoção alguma, sem adequação à própria história que pretende contar.
As personagens principais têm sentimentos tão indefinidos que a diretora parece ficar na dúvida se os trabalha de forma visual ou dialógica. Na falta de resolução, ela faz os dois. Pessimamente. Clare e Irene são o produto da sociedade que as gerou e de seus anseios mais internos. A exposição do racismo intrínseco da sociedade estadunidense se dá do modo mais didático possível, interrompendo qualquer vínculo com as personagens e se intrometendo nos diálogos de forma invasiva. Se o problema é tão entranhado na sociedade, por que não mostrá-lo de uma forma que privilegie a dimensão estrutural do problema, a razão calada? A demonstração das personagens é, quando feita, tosca: palavras quaisquer que não dão dimensão nenhuma de realidade às personagens e que não são ajudadas por duas atuações afetadas (obviamente tentando compensar por algo que as falas não têm).
Porém, o maior problema, é estético. O filme é elegante. A fotografia em preto-e-branco é por vezes estourada, por vezes bem contrastada, mas tudo isso faz um sentido com a atmosfera de cada cena. Uma atmosfera, que, no entanto, não é balizada em nada: é um desperdício de pensamento, de esforço para a construção de planos “bonitos”, agradáveis. Esse filme é, antes de tudo, um exemplo perfeito da “damienchazellização” (Damien Chazelle, diretor, ficou famoso com obras que se utilizam do jazz como motivo rítmico e temático, como Whiplash e La La Land, porém de uma maneira polida, enlatada) do filme por meio, sobretudo, desse veneno chamado elegância. Ela faz o público não pedir nada que ultrapasse um solo de sax distante, o aproveitamento inócuo da arquitetura estadunidense, superenquadramentos como mote estético, um pseudopsicologismo baseado em planos com pessoas de costas, closes e desfocalizações presunçosas que pretendem dar profundidade a personagens que são mais instrumentos inertes do que pessoas. É como se Hall quisesse que acreditássemos que Clare e Irene têm facetas incapturáveis pela câmera, apenas uma pequena parte delas é traduzível nessas imagens semigrandiosas, um uso espetacular da linguagem, que adensa o que não pode ser penetrado. Evidentemente, isso não existe em cinema.
Há uma cena em que a personagem Clare, antes de entrar num salão de jazz, passa, muito bem vestida, por uma fila de pessoas negras e pobres que esperam para poder entrar no mesmo recinto, e olha para elas com os olhos arregalados, como se fossem de outro mundo. Esse filme parece ter sido gravado com os olhos dela nessa cena, olha para o absurdo da realidade, mas mantém a consciência de ser elegante. E digo isso sem querer dar a entender que ele tem o mínimo de empatia com a personagem.
Em Identidade, o uso do jazz nos salões dos ricaços dos anos 1920 se conjuga com o uso do jazz nos filmes algoritmizados e “relevantes” dos anos 2020. Uma cega e hipócrita ditadura da finesse.