Music

Mark Lanegan

Sobrevivente da lama do vício em heroína, ex-Screaming Trees construiu belíssima carreira solo até morrer hoje, aos 57 anos de idade

Textos por Luciano Vitor

Fotos: Terreno Estranho (Divulgação) e Edi Fortini (ao vivo)

Hoje é um dia estranhíssimo, não apenas pela data palíndroma, mas porque perdi meu amigo e ídolo Mark Lanegan. Ele, na realidade, não me conhecia, mas me identifico com ele: um cara estranho dentro do universo musical, como eu fui dentro da escola, da faculdade e da vida de adulto.

Com sua voz rouca, Lanegan soube sair da lama e de uma boa parte da sua vida, da escravidão da heroína, que levou precocemente um de seus amigos de Seattle, Layne Staley (vocalista da primeira fase do Alice in Chains) e provavelmente corroeu a mente de Kurt Cobain, que tempos depois disso se matou. Mas o que não nos mata nos torna mais forte. Isso aconteceu com ele.

Lanegan era um sobrevivente, com uma das ajudas mais improváveis (Courtney Love) se internou numa rehab e teve uma carreira solo lindíssima depois de cantar no Screaming Trees durante o auge de popularidade do grunge. Seja ao lado de artistas como Isobel Campbell (ex-Belle & Sebastian), Duke Garwood e seu violonista sensacional Jeff Fielder ou em bandas como Mad Season, Twilight Singers ou Queens Of The Stone Age, Lanegan gravou mais de uma dezena de discos. Sabe aquela verdade de David Bowie conversada com diversos amigos? Também vale muito para Lanegan: um disco mediano dele é muito acima da maior parte gravada nos últimos anos por milhares de outros artistas.

Sim, sou um fã desolado e aterrorizado por nunca mais poder assistir a um show dele, nunca mais ouvir um disco novo ou ler a respeito de um novo trabalho vindo no próximo ano. Lanegan me salvou em momentos obscuros da minha mente. Ele me deu uma das maiores alegrias da minha vida ao cumprimentá-lo e ver um show ao vivo no Brasil quatro anos atrás, onde só consegui dizer “obrigado por tudo!”. 

Sabe aquele amigo mais velho que vira seu ídolo como um primo mais velho ou um amigo talentosíssimo? Mark Lanegan era meu amigo, como o Gustavo André Inúbia, a Gisele Vargas , Paula Pereira, Vera Lucia Oliveira Santos, a Ana Karina Nercolini Miranda, a Ninna Oliveira, o Alexandre Moreira, o @Valter Resende, o Bruno Valente Pimentel, o Aldo Amorim ou o Alexander Samary.

Lanegan, um cara improvável, descendente de irlandeses, exilado por vontade própria na Irlanda, foi-se, aos 57 anos de idade, neste 22.02.2022. Perdi um amigo que não me conhecia, mas a quem devo muitas alegrias na vida.

Descanse em paz, Mark Lanegan. Descanse em paz, meu amigo!

***

AO VIVO (08.09.2018)

Texto publicado originalmente pelo Mondo Bacana em 16 de setembro de 2018

São Paulo é uma cidade tão cosmopolita que na minha opinião, exceto ela, outras duas capitais brasileiras apenas poderiam ter um Cine Joia: Curitiba e Recife. Isso dada a existência de diversas manifestações culturais dentro destes cenários. Com capacidade oficial para 992 pessoas (alguns sites informam que cabem 1300), o Cine Joia é, como o próprio nome diz, um cinema antigo que fora adaptado para ser uma casa de shows no estilo de anfiteatro norte-americano. Sem as cadeiras na parte debaixo, torna-se uma pista e tanto.

Com o começo do show do cantor, compositor e futuro escritor (em outro texto falaremos disso!) marcado para as 21h, o local estava quase lotado no último dia 8 de setembro. A exceção era na parte superior, onde ficamos – eu, Rogério Silva (crítico do Under Floripa) e o baterista Marky Wildstone (Dead Rocks) – assistindo a tudo com um incrível conforto e sem filas para as bebidas. 

Perto das 21h10 a banda subiu ao palco para começar a tocar e sem qualuqer estrelismo. Os músicos Shelley Brian (teclados e programações) e Jeff Fielder (guitarra) entraram praticamente juntos com Mark Lanegan e já começaram a tocar “When Your Number Isn’t Up”, do álbum Bublegum (2004).

O que veio a partir daí me deixou em um misto de devoção e felicidade. Devoção porque sou fã do cantor e pude notar o encantamento em todos os presentes. Em nenhum momento, pelo que me recordo, houve insistentes pedidos de canções para o cantor, como acontece em muitos concertos de diversos artistas em qualquer outro local. Já vi alguns shows de Lanegan na Europa e nos EUA em que fãs pediam insistentemente por músicas que não faziam parte do set list daquela noite. Essa noite no Cine Joia pude presenciar não apenas o respeito dos fãs presentes mas uma devoção perante a música, poucas vezes vista antes em meus trinta anos de cobertura de eventos musicais pelo Brasil.

A atmosfera intimista ajudou. E muito! Canções eram aplaudidas na medida que eram desfiladas após seu término. A sequência matadora: “Low”, “Hit The City” (em dueto com Shelley, fazendo a parte de PJ Harvey, que gravou a canção com Lanegan) e “Nocturne”, do penúltimo álbum solo, Gargoyle. A plateia, nas quatro primeiras canções, já estava devidamente conquistada, como se precisasse, aliás. A partir daí, a Mark Lanegan Band fez um show para fãs! “Goodbye To Beauty”, “Sister”, “Graverdigger´s Song” (do aclamado álbum The Blues Funeral), “Deepest Shade” (gravada por ele com a Twilight Singers, superbanda que também tem em sua formação o prolifico Greg Dulli, do Afghan Whigs), “One Hundred Days”, “Come To Me” e mais onze canções até o encerramento.

O desequilíbrio entre as músicas antigas e as novidades foi o ponto crucial desse sábado. De Gargoyle (2017) foram incluídas duas faixas: as outras 23 músicas eram de diversos discos do cantor, sendo alguns covers que o próprio Lanegan gravou em algum momento de sua longeva carreira. E isso acabou sendo ruim? Muito pelo contrário! Afinal, Mark sabe equilibrar e pontuar um set list para agradar não apenas a si mesmo mas também aos seus fãs que lá estão sempre presentes.

E o show acabou quando os músicos saíram do palco? Não, meus amigos. Lanegan voltou cerca de dez minutos depois e sentou-se junto a uma mesinha para autografar, pelas minhas contas, umas mil peças (entre discos comprados na banquinha instalada no próprio Cine Joia, CDs e LPs levados por fãs, cartazes e fotos). Tudo com uma paciência ímpar e sem o já famoso meet and greet que muitos artistas fazem há alguns anos no showbiz.

O que se viu por lá foi um artista comprometido com sua arte, com seu público e sem querer fazer média com ninguém. Um artista sobrevivente à cena grunge da qual fez parte e da qual soube extrair o melhor e o pior. Aos 53 anos, Lanegan continua sendo um gigante entre as bandas e artistas que não souberam envelhecer com dignidade.

Set List: “When Your Number Isn’t Up”, “Low”, “Hit The City”, “Nocturne”, “Goodbye To Beauty”, “Sister”, “The Gravedigger’s Song”, “Deepest Shade”, “One Hundred Days”, “Come To Me”, “Strange Religion”, “Beehive”, “You Only Live Twice”, “Morning Glory Wine”, “One Way Street”, “Mirrored”, “Sad Lover”, “Halcyon Daze”, “Phantasmagoria Blues”, “I Am The Wolf”, “On Jesus’ Program”. Bis: “Torn Red Heart”, “Bombed”, “Where The Twains Shall Meet” e “Halo Of Ashes”.

Movies, TV

Bigbug

Jean-Pierre Jeunet aposta no humor de sitcom de um futuro distópico e se distancia do mundo fantástico de sua Amélie Poulain

Texto por Taís Zago

Foto: Netflix/Divulgação

Onze entre dez turistas vão a Paris procurando o mundo fantástico de Amélie Poulain. Ou pelo menos um amor francês. Todos se decepcionam. Paris é uma cidade real, grande, metropolitana e com muitas mazelas, como toda grande cidade europeia. Um dos culpados por essa idealização é o diretor e roteirista Jean-Pierre Jeunet e a sua incrível capacidade de enxergar beleza nas pequenas coisas e ao criar cenários fantásticos.

Não entre com essa expectativa para assistir a Bigbug (França, 2022 – Netflix). O filme é uma viagem completamente diferente. O ano é 2045 e, parafraseando uma das personagens, “pensaram que carros voariam no ano 2000 e erraram em 45 anos.” Nesse futuro não tão distante, temos mais um confronto homem versus máquina. Um modelo de distopia já bem gasto depois das inúmeras investidas, algumas bem sucedidas, nesse nicho. O novo filme de Jeunet mais parece um episódio de Black Mirror feito com os Jetsons e com a direção de Tim Burton em Marte Ataca!.

Bom, então seria algo horrível? Não, não é. Ainda continua sendo um filme gostoso assistir, com algumas piadas esporádicas que nos lembram de clichês do comportamento francês. Bigbug tem cenários e figurinos primorosos, até nos mínimos detalhes – o que por si só já vale as quase duas horas de duração. Mas o que temos aqui se movimenta em uma direção contrária a seguida em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. O humor é pastelão; os gestos, exagerados; as emoções, exacerbadas. Sem qualquer reflexão profunda e com zero melancolia.

Jeunet bolou um enredo bastante simples: Alice (Elsa Zylberstein) recebe em casa a visita de um possível pretendente, Max (Stéphane De Groodt), e de seu filho. No meio do date aparece sua filha, seu ex marido Victor (Youssef Hajdi) e a atrapalhada e bem mais nova namorada dele, Jennifer (Claire Chust). Para completar a trupe caótica, do nada aparece a curiosa vizinha Françoise (Isabelle Nanty).

É nesse momento que os robôs que servem os humanos resolvem virar a mesa e transformar seus donos em seus pets/servos. As portas se fecham e os vidros são inquebráveis. Os humanos ficam presos na casa e à mercê de um líder Yonyx, uma espécie de soldado ciborgue/replicante que aparentemente era responsável pela ordem na sociedade humana antes de se rebelar contra seus “mestres”. E agora? Como fugir? Bora lá tentar confundir os robôs! E assim vai até o final.

Bigbug é um filme pra toda a família. É daqueles que poderiam passar tranquilamente em um canal popular, sem corte algum. No meio da tarde. Isso não é necessariamente um demérito, mas produtos com esse padrão de qualidade e profundidade já inundam o mercado. As pessoas fugiram da TV aberta para as plataformas de streaming em busca de experiências novas. Entretanto, Bigbug, infelizmente, é mais do mesmo.