Obra-prima de Dias Gomes ganha nova encenação e choca ao expor a olhos nus o país de hoje em um texto de seis décadas atrás
Texto por Abonico Smith
Foto: Festival de Curitiba/Divulgação
Soteropolitano de nascimento e radicado na cidade do Rio de Janeiro desde a adolescência, Alfredo de Freitas Dias Gomes é um nome intrinsecamente ligado à dramaturgia. Ganhou popularidade em todo o país a partir da formação de rede nacional da TV Globo nos anos 1970, quando assinou novelas marcantes como Bandeira 2, O Bem-Amado, O Espigão, Saramandaia e Roque Santeiro. Mas antes já era bem íntimo de romances literários e peças teatrais. Escreveu a primeira encenação aos 15 anos de idade e foi muito produtivo entre as décadas de 1940 e 1960, até ir para a televisão e formar uma legião de fãs e discípulos que vieram a marcar a história das produções nacionais.
O ano de 2022 marcou o centenário de Dias Gomes. Entretanto, apesar de sua intensa criação, o teatro brasileiro parece ter se esquecido de um de seus maiores criadores. Na temporada da retomada, não só a pós-pandemia como também na normalidade quatro anos tenebrosos e de aberrações na política brasileira, apenas uma peça assinada por ele esteve em cartaz. Compensou o fato também de não ser qualquer encenação, mas sim aquela que muitos consideram a maior de todas as peças (embora a concorrência com O Pagador de Promessas seja grande, na verdade). E que, depois de algumas semanas em temporada bem acalorada e comentada em São Paulo, está chegando agora a algumas outras capitais, inclusive tendo passado por duas noites de Teatro Guaíra lotado no Festival de Curitiba em 3 e 4 de abril.
O Bem-Amado Musicado é uma pequena adaptação do original escrito e encenado originalmente em 1962 sob o nome de Odorico, o Bem-Amado ou Os Mistérios do Amor e da Morte. No texto original de Dias Gomes nada, absolutamente nada foi alterado ou acrescentado. A única mudança que a trupe liderada pelo protagonista Cassio Scapin (que até então sempre alimentara o sonho de interpretar Odorico Paraguassu) e o diretor Ricardo Grasson apresentam em cena é uma coleção de novas canções, compostas exclusivamente por Zeca Baleiro e Newton Moreno e dirigidas por Marcio França (que também está no palco como o pistoleiro regenerado Zeca Diabo) para esta peça e executadas em cena por músicos e atores. Tanto que ganhou um novo título, justamente para se diferenciar do nome tradicional. A intenção, segundo Grasson e Scapin, foi tentar se distanciar ao máximo da grande trilha sonora feita por Toquinho e Vinícius de Moraes para a adaptação ao formato de folhetim feita pelo autor para o horário das 22h das novelas da Globo em 1973. Melhor também quanto à questão do pagamento de direitos autorais…
A versão trazida aos palcos exatamente seis décadas de depois é de uma competência só, não apenas quanto às novas músicas – que são executadas e cantadas pelos atores que fazem os personagens centrais da trama passada na pequenina cidade baiana de Sicupira (como Odorico, Zeca Diabo, as cabos eleitorais e três irmãs Cajazeiras, o aspone do prefeito Dirceu Borboleta, o vigário da igreja, o dono do jornal local e maior oponente político do protagonista). Cenários e figurinos também servem como colírio para os olhos, misturando referências da xilogravura dos cordéis nordestinos, a comédia dell’arte inserida nos filmes de Federico Fellini e todo o imaginário construído pelo teatro popular brasileiro. A química que envolve todo o elenco também se torna fator de destaque durante as quase duas horas de encenação.
Contudo, o que mais choca o espectador é a extrema atualidade do texto feito por Dias Gomes há seis décadas. Do começo ao fim, o dramaturgo parece não apenas ter utilizado como base para o seu misto de acidez e ironia para alfinetar a política brasileira realizada até então, mas também utilizado uma bola de cristal e previsto não só tudo aquilo que continuaria ocorrendo ao longo das décadsa e ainda se intensificaria em inimagináveis níveis estratosféricos nestes últimos quatro anos de (des)governo do falso messias. Mas, parafraseando o próprio Odorico Paraguassu e deixando de lado os entretantos para cegar aos finalmentes, a trama do prefeito corrupto envolve demagogia popularesca, fake news, nepotismo, desvio de verbas, gastos orbitais do dinheiro público. Também há ali os choques de interesse entre executivo e judiciário e o uso da religião para a descarada instrumentação política da classe trabalhadora.
Nesta montagem, Scapin, França e Grasson se firmam como um sólido tripé para saudar a obra e a genialidade de Dias Gomes em um tempo em que as artes brasileiras, ainda se refazendo de um período terrível de trevas e achatamento, andam precisando do surgimento de novos autores como o baiano-carioca. Já faz quase um quarto de século que ele partiu – morreu no dia 18 de maio de 1999, vitimado por um acidente automobilístico em uma madrugada paulistana após ir ao teatro para ver uma ópera e jantar com a esposa. Ainda faz muita falta.
Oito motivos para não perder um show desta que muito provavelmente deverá ser a última passagem da cantora por nosso país
Texto e tradução por Abonico Smith
Foto: Divulgação
Nesta sexta-feira se consumará mais um encontro mágico entre o público brasileiro e uma das maiores cantoras norte-americanas de música pop em todos os tempos. Dionne Warwick começa hoje, por Curitiba, uma nova passagem por nosso país, com direito a outras três datas (Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo, respectivamente nos próximos dias 20, 23 e 28 de maio). Mais informações sobre a turnê você encontra clicando aqui.
A mais perfeita tradução vocal das melodias compostas por Burt Bacharach em parceria com os versos do letrista Hal David, Dionne Warwick chega por aqui com sua nova tour. O nome, One Last Time, entretanto indica uma coisa triste: apesar da química sempre perfeita demonstrada nas outras vezes em que artista e audiência verde-amarela estiveram frente a frente, esta parece ser mesmo a última oportunidade para desfrutar ao vivo de sua voz doce.
O Mondo Bacana preparou oito motivos para você não perder esta noite especial comandada por Warwick. As aspas foram retiradas de uma entrevista concedida por ela dias antes do embarque rumo ao nosso país.
Última vez?
A expressão que dá nome à tour, One Last Time, pode ser traduzida para o português como “uma última vez”. Claro que tudo no showbiz pode mudar dependendo das circunstâncias de momento, além do entretenimento do ramo dos concertos gostar de usar bastante batismos que apelem para o emocional dos fãs. Só que isso indica mesmo ser esta a derradeira passagem da cantora por terras brasileiras. No último mês de dezembro ela completou 82 anos e a idade começa a pesar quando os artistas vão envelhecendo e ficando sem muita paciência para encarar longos tempos de viagens de lá para cá, daqui para ali. Warwick ainda corrobora a questão sendo franca em relação a isso. “Não estou parando com a música. Saberei muito bem quando chegar esta hora de parar, acredite em mim. Será quando eu notar que não conseguirei mais dar o meu melhor. Mas eu venho de um grande número de turnês, tantas quantas eu consigo fazer. Portanto, este nome não indica sobre parada na carreira, apenas um jeito de desacelerar o ritmo das viagens. É aquele negócio de passar menos dias na estrada, correndo por aeroportos”.
Melhor de si ao vivo
Dionne nunca escondeu sua satisfação e extrema vontade de subir aos palcos mundo afora. “Fico excitada sobretudo por estar em plena capacidade de vir a uma platéia e cantar aquilo que todo mundo espera de mim. Eu me preparo bastante para isso por todo este tempo. Entrego vários clássicos e ainda posso fazer surpresas com algumas canções nunca antes ouvidas. Estive ainda trabalhando ativamente esses últimos anos, gravando coisas novas”.
Clássicos eternos
Segundo a própria Dionne, existe um punhado de músicas “obrigatórias” em todos os seus shows. “I Say a Little Prayer” não pode ficar fora das turnês. “Do You Know The Way To San José?” não pode focar fora das turnês. “Alfie” não pode ficar fora das turnês. “I’ll Never Fall In Love Again” não pode ficar fora das turnês. “Toda canção que eu tenho em meu set list é uma canção que eu sei que as pessoas estão esperando que eu cante. Então eu preparo um repertório sempre de acordo com isso”.
Burt Bacharach & Hal David
Pode reparar. Mil e um nomes já fizeram suas versões de composições assinadas pela dupla que se transformou em excelência no cancioneiro popular norte-americano. Entretanto, Dionne Warwick se transformou em excelência da excelência com sua voz arrebatadoramente aveludada ao gravar dezenas de canções desses compositores. Tanto que até hoje mais da metade de seu repertório dos concertos é composta por seus hits – a ponto dela se dar ao luxo de emendar uma na outra, como medleys, sem deixar qualquer tempo para espectadores maravilhados se recomporem nas poltronas dos teatros. Além daquelas citadas por ela mesma no parágrafo acima, aí vai outra pequena lista das preciosidades que não costumam ficar de fora da qualquer set list: “What The World Needs Now Is Love”, “Anyone Who Had a Heart”, “That´s What Friends Are For”, “This Girl Is In Love With You”, “Message To Michael” e, claro, “Walk On By”.
Ligação especial com o nosso país
“Eu amo o Brasil e o Brasil já me mostrou que me ama também. Não poderia pedir por uma relação melhor, aliás. O Brasil me deu uma dos melhores abraços que já tive na carreira, melhor do que muitos outros países. Sinto que os brasileiros querem que eu seja uma parte do que eles já são. Dizem para mim “você tem de ser brasileira” e eu me desculpo dizendo que não posso ser brasileira… (risos) É um dos sentimentos mais quentes que se pode ter, o de ser bem aceita e com paixão por um povo. Eu tento arranhar umas palavras na língua portuguesa, mas só um pouquinho… (risos) Também sempre fui muito ligada na música brasileira. Eu a amo porque ela é algo feliz para mim, me faz sorrir. É ainda uma eterna referência para o país, que faz a gente amá-lo e isso é muito importante. E a feijoada é uma coisa absolutamente extraordinária”.
Ouvidos atentos para novidades
“Não conheço muita coisa nova não, mas eu tenho sete netos e eles sempre me mantêm atualizada no que está rolando por aí, ficam tocando o que gostam para eu ouvir. Claro que continuo ouvindo música durante todos esses anos, é algo que faz bem aos meus ouvidos. E gosto de ouvir qualquer tipo ou gênero musical, é o que me mantêm aqui até hoje. Um nome mais novo que me vem imediatamente à cabeça é o de Beyoncé. Eu a conheci quando ela tinha quinze anos de idade. Já dava para saber o porquê do tamanho do sucesso que ela iria obter depois em sua carreira. Outro nome é o de Rihanna, mas não gosto só das suas aventuras no mundo da música, também do que ela fazia fora disso. Ela cresceu como uma jovem que tinha aspirações a muitas, muitas coisas, não apenas musicais. Sabe, há diversas pessoas na indústria da música seguindo os seus próprios caminhos, o que é maravilhoso, por sinal. E usando o mundo dos negócios muito bem. Há muita gente abaixo dos 30 ou mesmo lá pelos 30 anos que estão imprimindo em suas carreiras justamente aquilo que gostariam de ouvir. Claro que algumas coisas não conseguem se encaixar perfeitamente nos meus ouvidos, então não há motivos para eu ouvi-las. Mas aquilo que está sendo gravando é de acordo com a sua música, a sua sonoridade, as suas palavras. E estas pessoas depositam na indústria a sua paixão”.
Ativismo social
“Todo o tempo em que me envolvi na campanha de conscientização em relação à aids foi maravilhosamente importante. Estávamos perdendo de forma precoce muitas pessoas dentro do nosso meio. Então era hora de alguém encarar os fatos e perguntar o que está acontecendo. A última coisa que eu poderia ter feito a respeito disso era fugir. Sempre fui de me meter em questões bem sérias como essas e procurei saber como poderia ajudar quem estava contraindo o vírus na época. Fui eleita uma das embaixadoras dos Estados Unidos nesta área para descobrir como poderíamos lutar contra isso não só aqui mas em outros países. Então comecei a viajar para me encontrar com pessoas em todo o mundo, observar o que estava sendo feito e dando certo em outros lugares para que pudesse retornar e trazer isso também para o meu país. O mais importante sempre foi fazer as pessoas compreenderam como e por que tudo acontecia para lutar contra isso da maneira mais apropriada, entender as causas da aids e fazer as pessoas entenderem como se cuidar e se prevenir. Isso deu toda a repercussão para este trabalho. Mas com certeza sou e sempre fui uma pequena parte disso, não levo para mim os créditos desta empreitada inteira não”.
Poder de cura pela música
“Claro que sim, acredito nisso. É de fato uma das principais forças de cura. Veja como isso funciona em hospitais, asilos… Em bebês! Bebês reagem à música. Musica traz o poder da cura. Canções são escritas e elas também podem curar as pessoas”.
Formação clássica volta a se reunir depois de trinta anos e emociona os fãs Florianópolis desfilando sucesso atrás de sucesso
Texto por Frederico Di Lullo
Fotos: Fabiane Garcia (banda inteira) e Toia Oliveira/Trovoa (músicos)
Na mitologia grega, a história dos titãs conta que eles eram filhos de Gaia e Urano. Eram seis homens e seis mulheres, conhecidos como os 12 titãs da primeira geração, que governaram o universo logo após Urano e antes de Zeus. De acordo com a história, Urano seria o Deus do céu e ele já imaginava o grande poder que todos seus filhos teriam pela terra. E ele estava correto.
O Hard Rock Live, localizado em São José (SC) mas citado normalmente como parte da Ilha da Magia (aka Florianópolis), foi o mesmíssimo Olimpo durante a sexta-feira dia 6 de maio, data que marcou a passagem da turnê Titãs – Encontro, da quarentona banda paulistana. Um evento histórico, que trouxe Arnaldo Antunes, Branco Mello, Nando Reis, Paulo Miklos, Sérgio Britto, Tony Bellotto e Charles Gavin até o sul do sul do mundo. Sim, todos os Titãs da formação clássica da banda, que gravou os principais e mais conhecidos discos entre os anos 1980 e 1990, juntos novamente no mesmo palco depois de trinta anos.
Arnaldo Antunes
Com o claro objetivo de celebrar a trajetória, relembrar os sucessos que marcaram gerações e sobretudo se divertir, a banda se apresentou para uma casa cheia, sold out, onde mais de 12 mil pessoas para presenciar este momento histórico. Após um normal atraso de 20 minutos, a banda chegou e iniciou uma sequência alucinante, abrindo com “Diversão”, “Lugar Nenhum”, “Desordem” e “Tô cansado”. Os vocalistas iam se alternando enquanto os Titãs desfilavam com toda tranquilidade e naturalidade em cima de um palco com produção impecável, com luzes e som dignos de uma celebração histórica do rock nacional. O show, aliás, era uma verdadeira viagem no tempo e isso também se refletia no público onde, majoritariamente adultos de meia idade cantavam todas as músicas e agitavam sem parar.
Branco Mello e Tony Bellotto
Antes do set acústico programado para o miolo, não faltaram mais clássicos como “Homem Primata”, “O Pulso”, “Comida”, ”Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas” e “Cabeça Dinossauro”. Absolutamente todas as músicas eram entoadas de forma enérgica pela plateia e isso era realmente algo emocionante e muito bonito. Também era de se destacar a alegria de todos os sete integrantes que estavam no palco. O legado deixado por estes senhores não só para a música mas para a cultura brasileira é gigante. Isso se vê refletido em cada acorde, cada música, cada sensação que ouvir a formação clássica do Titãs representa para cada um dos presentes.
Nando Reis
Um ponto alto da noite foi o momento acústico. Ali eles lembraram o amigo que já não está fisicamente neste espaço, mas ainda que se faz presente em todos os momentos e a cada instante: o guitarrista Marcelo Fromer, a oitava parte dos Titãs, morreu em junho de 2001 após ser atropelado por uma motocicleta em São Paulo. E nessa parte acústica, não faltaram os hits dos dois discos unplugged (gravados ainda com Fromer, no final dos anos 1990) como “Os Cegos do Castelo”, “Não Vou Me Adaptar” e “Pra Dizer Adeus”.
Paulo Miklos
De volta ao momento elétrico, a trupe passou por mais sucessos que até hoje fazem todos se emocionarem, como “Marvin”, “Flores”, “Polícia” e “Bichos Escrotos”. A energia dos integrantes em palco é contagiante, é possível sentir a emoção em cada nota tocada e cada palavra cantada por estes senhores hoje sexagenários.
Sergio Britto
Havia tempo para mais? Com certeza. No bis, a banda voltou para coroar a noite entoando “Miséria”, “Família” e “Sonífera ilha”. Em resumo, toda a turnê que reúne os remanescentes de hoje a outros músicos que já deixaram os Titãs para desenvolver carreira solo ou outros projetos pessoais é um evento imperdível para os fãs da banda e também todos aqueles que apreciam música de qualidade. Se você ainda não teve a chance de assistir a um dos concertos – cuja agenda segue até junho – não perca esta oportunidade!
Charles Gavin
Set list: “Diversão”, “Lugar Nenhum”, “Desordem”, “Tô Cansado”, “Igreja”, “Homem Primata”, “Estado Violência”, “O Pulso”, “Comida”, “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”, “Nome Aos Bois”< “Eu Não Sei Fazer Música”, “Cabeça Dinossauro”, “Epitáfio”, “Os Cegos do Castelo”, “Pra Dizer Adeus”, “Toda Cor”, “Não Vou Me Adaptar”, “Marvin”, “Go Back”, “É Preciso Saber Viver”, “32 Dentes”, “Flores”, “Televisão”, “Porrada”, “Polícia”, “AA UU” e “Bichos Escrotos”. Bis: “Miséria”, “Família” e “Sonífera Ilha”.
Rock brasileiro perde sua principal figura feminina na noite de ontem, aos 75 anos de idade
Texto por Abonico R. Smith
Fotos: Reprodução
Morreu em São Paulo, na noite de 8 de maio, a cantora e compositora Rita Lee. Ela tinha 75 anos de idade e tratava de um câncer no pulmão, diagnosticado em 2021. A informação sobre o seu falecimento foi postada nas redes sociais pelo marido e parceiro musical Roberto de Carvalho.
Mais textos e informações sobre a vida, a morte, a trajetória e a suma importância de Rita Lee para a arte e a cultura brasileira serão postados no Mondo Bacana nos próximos dias.
Billie Eilish, Modest Mouse, Jane’s Addiction, Paralamas, Aurora, Baco Exu do Blues, Tove Lo e Cigarettes After Sex: shows que marcaram o festival
Billie EIlish
Texto por Abonico Smith
Fotos: Reprodução
Entre os dias 24 e 26 de março foi realizada a décima edição brasileira do festival Lollapalooza, a última em parceria da produtora T4F com a americana LLC, detentora da marca do evento. Depois de cinco recentes cancelamentos de concertos programados para este ano, todo mundo foi surpreendido com a não vinda ao Brasil do headliner da última noite, o canadense Drake, horas antes dos portões do Autódromo de Interlagos serem abertos. A desculpa oficial do artista, esfarrapada, não colou: a de que estariam faltando pessoas de sua equipe no país. Entretanto, ele foi visto na madrugada anterior festando em Miami em conjunto com o rapper 50 Cent. E mais: estas pessoas de sua equipe já estavam em SP instalando no autódromo os telões e o material de seu espetáculo. Mas como é sempre melhor falar de coisas boas, deve também ser registrado um marco desta edição: pela primeira vez o line-up estava dividido quase igualitariamente entre artistas dos dois gêneros.
O Mondo Bacana comenta um pouco dos oito shows que deixarão esta edição do Lolla na história dos grandes festivais de música pop do Brasil.
Billie Eilish
Única headliner originalmente anunciada a se apresentar em Interlagos (além de Drake, o Blink 182 também não veio para cá), ela já era aguardada havia algum tempo por aqui. Afinal, este seria seu primeiro concerto no país, já que o anterior fora cancelado por causa da pandemia. Em cima daquele palco enorme, tendo a companhia apenas de seu inseparável irmão e produtor Phinneas e um baterista, ela – com o verde e amarelo predominando no figurino grande e largo sobre a malha preta que lhe escondia o corpo – entregou o que prometia: uma boa coleção de letras intimistas a respeito de observações, sensações e sentimentos de uma garota vivendo os anos finais de sua adolescência. Intimista também foi sua performance: sem muitos pulos, correrias ou coreografias ensaiadas, era quase apenas ela cantando ao microfone. Quer dizer, cantando às vezes. Billie só cantava o necessário e muitas vezes sua voz ecoava pelo autódromo junto com os instrumentos também pré-gravados. O que deixava o show redondo, sem espaço para improvisos ou erros. Só que teve momentos em que os manos abriam mão do playback e se arriscavam em momentos semiacústicos para mostrarem que não são uma fraude ao vivo: foram cerca de meia dúzia de canções com Phinneas dedilhando o violão ou o piano para a irmãzinha soltar o gogó de alcance não muito grande.
Modest Mouse
Quem foi a genial pessoa responsável pela grade de shows que conseguiu jogar o grupo para uma tarde de sexta-feira? Modest Mouse – um dos ícones do indie rock americano dos anos 2000 – não é para a GenZ, é para gente mais velha. Melhor: para quase todo mundo que não tem a) grana disponível de salário ou frilas para pagar o caro ingresso do festival; b) saco ou corpo para aguentar ficar um dia sequer em uma maratona de shows; c) horário disponível para ir assistir a uma banda tocar às quatro da tarde de sexta-feira. Sob um sol escaldante, o vocalista Isaac Brock estava vermelho feito um camarão, à frente de seu quinteto que foge da musicalidade óbvia e mistura lo-fi, folk e psicodelismo em doses nada comerciais. O resultado foi uma banda competentíssima tocando para quase ninguém, sendo a maior parte disso gente que desconhecia por completo o repertório loteado entre sua boa discografia. Hits como “Float On” e “Dashboard” ficaram desperdiçados naquela escala gigantesca ao ar livre. De qualquer maneira, quem viu in loco ou pelo streaming foi abençoado pela tardia estreia do Modest Mouse em solo brasileiro. Antes tarde do que muito mais tarde. Antes de tarde durante a semana do que nunca.
Jane’s Addiction
Perry Farrell idealizou o Lollapalooza em 1991 como um festival ambulante, que pudesse rodar algumas grandes cidades norte-americanas com uma escalação de excelentes bandas alternativas como suporte para a turnê de despedida de sua banda. Deu tão certo que o Jane’s Addiction se separou mas o Lolla continou trilhando seu caminho de sucesso durante os meados dos anos 1990. Perry, então, quase sempre vem prestigiar a edição brasileira. Agora trouxe a tiracolo a reformada banda que o revelou para o mundo da música. Integrantes originais… ou quase, já que o guitarrista Dave Navarro (que saiu do JA para tocar no Red Hot Chili Peppers) continua afastado dos palcos para tratar da saúde (covid longa como justificativa oficial, rehab longa como rumor alimentado entre os fãs do grupo). De qualquer forma, seu substituto, o também ex-guitarrista do RHCP Josh Klinghoffer, mostrou ser uma escolha acertada. Enquanto o baterista Stephen Perkins e o baixista Eric Avery (que também costuma ser músico de apoio do Garbage) se entendem perfeitamente em uma cozinha rítmica hipnótica e dançante, Josh jorrava os efeitos de pedais que fazem a sonoridade da banda flutuar entre o hard rock, o psicodelismo e o groove. Para completar, uma trinca de dançarinas comandada pela atual mulher de Farrell faziam pole dances sensuais ao fundo do palco, dando um approach cênico diferente às canções. Em Interlagos, o set list foi reduzido por conta do tempo destinado ao show, socado no meio da programação da tarde do segundo dia. De qualquer forma, ficou bem dividido entre os dois primeiros e incensados discos da banda, concebidos entre 1988 e 1990, antes das brigas internas que levaram à implosão precoce da carreira. De qualquer forma, reunidos já nas casas dos 50 e 60 anos de idade, os músicos mostraram por aqui que estão como vinho: quanto mais velhos, melhor. Maturidade e experiência – e um longo hiato interrompido por outras duas reuniões e discos criados em 2003 e 2011 – fizeram bem. Em um sábado fraco de opções, o Jane’s Addiction chegou quietinho e fez uma puta (e despretensiosa) apresentação. Ainda terminou com uma batucada em homenagem ao amigo Taylor Hawkins, que morria havia exatamente naquela data, no ano anterior… horas antes do show do Foo Fighters na Colômbia e de viajar para tocar no Lollapalooza brasileiro.
Paralamas do Sucesso
Ter 40 anos de carreira fonográfica não é para qualquer um. Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone sabem disso e utilizam um arsenal de clássicoscolecionados em sua extensa discografia para disparar um show magnífico. É hit atrás de hit quase sem intervalo para respirar. Foi assim neste Lollapalloza, na tarde de sol de um domingo para uma maioria de plateia formada por GenZ e millennials. O repertório começou com canções mais representativas da faceta ska (“Vital e Sua Moto”, “Patrulha Noturna”, “Ska”, “Loirinha Bombril”) e passeou por toda a galeria das duas primeiras décadas de carreira, misturando reggae, dub, afrobeat, rock, citações (Tim Maia, Titãs, Raul Seixas) e muita injeção rítmica contínua para não deixar ninguém totalmente parado – pelo menos um dos pezinhos não teve como resistir. Herbert começou enfrentando problemas técnicos, contornados sabiamente com conversas fora do microfone com um roadie enquanto não parava de cantar as letras para a plateia. Tirando este pequeno detalhe, que não chegou a comprometer a apresentação aliás, os Paralamas mostraram toda a sua realeza na música pop nacional. Não precisa de firulas, telões, coreografias, trocas de roupa, andar para lá e para cá no palco ou ao redor dele. Só precisa de música. E muito boa música. Referências para se criar música de qualidade eles sempre tiveram também. São uma banda pós-punk brasilis roots (a sonoridade two-tone em verde e amarelo, inclusive com versos politizados e críticos transformados para a nossa realidade!) e isso ainda faz toda a diferença. Mesmo diante de uma molecada que não chegou a viver os tempos dos vinis e CDs lançados com essas músicas.
Aurora
É só começar a ouvir a sua extensão vocal de soprano que não tem como não embarcar junto nesta fantasia musical que é seu show. Ela mesma parece uma pequena e adorável duende, sempre a saltitar feliz e travessa pelos vastos campos verdes. Seu look também ajuda: vestes claras e em tonalidades pasteis, pés descalços, pele alva e um cabelinho curto e de um chanel tão branco quanto sua melanina norueguesa. Muita gente que estava ali na plateia sabia de cor e salteado as letras, cantava junto e se emocionava por estar na frente de Aurora Asknes. Pudera. A artista faz da voz um belo poder instrumental, além de ser hábil nas palavras para demonstrar seus mais profundos sentimentos acerca da vida e da natureza. Mas também não precisa ser expert na obra dela para se render ao poder desta guria escandinava, solta, espontânea, natural e sem qualquer maquiagem, capaz de provocar um midsommar tão contagiante aqui no hemisfério sul e em pleno cair da tarde de um domingo quente brasileiro.
Baco Exu do Blues
Ele entrou na grade do Lolla como uma rápida solução caseira para suprir o cancelamento quase em cima da hora de Willow, filha do astro Will Smith. E ainda entregou uma das mais emocionantes performances em língua brasileira deste Lollapalooza. Generoso, o baiano de quatro discos lançados nos últimos seis anos fez questão de não brilhar sozinho. No telão, prestou reverência a personalidades negras já falecidas como Marielle Franco, Elza Soares, Muhammad Ali, 2Pac Shakur e Nelson Mandela. E no meio do repertório montado com alguns de seus grandes sucessos ainda cedeu espaço lá na frente para cada uma de suas backings (Aísha, Alma Thomas e Mirella Costa) dividirem as atenções, o microfone e o gogó poderoso. Mirella, por sua vez, protagonizou uma emocionante homenagem à também soteropolitana Gal Costa, ao mandar, a capella, um trecho de “Força Estranha”. Mancando e dando passos lentos, Baco fez o que pode, cenicamente, para superar o estiramento na panturrilha sofrido poucos dias antes. E ainda mandou a letra para espinafrar o grande ausente da noite, Drake, sendo complementado por xingamentos dirigidos pelo público ao astro chiliquento canadense. Mostrou, como Kevin Parker (Tame Impala) na noite anterior, que nem sérias limitações físicas para a locomoção não podem servir como desculpa para não cantar aos fãs.
Tove Lo e Pabllo Vittar
Tove Lo
Outra atração nórdica dominical, a sueca mostrou que um show de música pop pode muito bem ser construído em cima de… música pop. Nada pode tirar o primeiro plano. Pelo contrário. Figurinos podem ser um bom complemento (no caso, uma roupa colante em tons verdes que lhe permitiu fazer o manjado gesto de mostrar os seios à plateia). Coreografias também. Mas um palco deve ser povoado por musicistas tocando seus instrumentos, cantora realmente cantando e dispensando playbacks descarados e a ausência de um time de bailarinos indo para lá e para cá, chamando mais a atenção dos olhos do que os ouvidos. Tove Lo é muito mais discípula de Madonna do que muita gente pode pensar. Ela canta, dança, brinca com a sexualidade diante de uma multidão e mostra ser uma artista de força suficiente para ter um longo futuro pela frente. E olha que ela já tem cinco álbuns feitos de 2014 para cá.
Cigarettes After Sex
Todo ilusionista sabe muito bem que o segredo do sucesso de sua performance está na habilidade de deslocar a atenção do público para um local diferente daquele onde realmente “acontece” o truque. A derradeira das três noites do Lolla, de fato, foi equivalente a um show de ilusionismo. Todo mundo esperando o headliner Drake e depois todo mundo desapontado e xingando o arredio Drake por nem ter viajado ao Brasil. Muita gente comentando o fato de que o DJ e produtor de IDM Skrillex havia sido escalado de improviso para ocupar o horário e o palco anteriormente destinado ao fujão. Muita gente indo embora ao cair da noite, já desesperançoso de que ali em Interlagos acontecesse mais alguma coisa estupenda no autódromo. Espertos, porém, foram aqueles que não arredaram o pé e ficaram no local (ou sintonizados no streaming) até as nove da noite, de olhos bem atentos a um dos palcos secundários. Ali, já aos 45 minutos do segundo tempo do festival, os acréscimos permitiram uma magnífica performance de um singelo trio norte-americano que, por meio da internet, tornou-se objeto de culto nos últimos anos por um pessoal mais antenado. O Cigarettes After Sex veio para impactar com todo o seu minimalismo. Cênico, com seus integrantes tocando quase sempre parados no palco, dispostos geometricamente lado a lado. Sonoro, com somente um vocal (de seu líder e criador Greg Gonzalez) e a mínima movimentação possível de baixo, guitarra e bateria. Havia uma textura de teclados pré-gravados disparada como pano de fundo para a maioria das canções. Mas isso só reforçou a atmosfera etérea e hipnótica do concerto. Fotógrafos não foram permitidos no pit à frente do palco. Quem ficou em casa assistiu a uma transmissão noir, que impôs a ausência de captação de qualquer cor pelas câmeras que não fossem o preto e o branco. Com ares de cabaré decadente, algo tipicamente David Lynch, o CAS fechou as cortinas da décima edição premiando poucos felizardos com algo meio difícil de acontecer em um grande festival. Truque de mestre.