Mel Gibson e Sean Penn estrelam a história de obstinação que resultou na criação o dicionário que cataloga todas as palavras da língua inglesa
Texto por Janaína Monteiro
Foto: Imagem Filmes/Divulgação
A língua é viva, já dizia o teórico russo Mikhail Bakthin. Criada por nós, e assim como nós, a língua se modifica com o decorrer do tempo. As palavras e seus significados evoluem através dos séculos: nascem e morrem num piscar de olhos. E quantas palavras falamos diariamente sem pensar em seus diferentes significados? Como definir o que é arte, por exemplo? Esse é o complexo trabalho do filólogo – palavra do grego philólogos e latim philologus, que designa o conhecedor da filologia, ciência que estuda o desenvolvimento de uma língua. Este é o papel de Mel Gibson no drama baseado em uma história real O Gênio e o Louco (The Professor And The Madman, Irlanda/EUA/Irã, 2017 – Imagem Filmes).
Gibson é o professor escocês James Murray, filólogo autodidata, estudioso de dezenas de línguas que assume a improvável missão de fazer o inventário de todas as palavras da língua inglesa durante os séculos 17 e 18 – isso se transformaria posteriomente no Oxford English Dictionary (OED), o mais importante do mundo no vernáculo. Murray devotou 50 anos de sua vida ao projeto que catalogou mais de 400 mil palavras. O louco é o americano William Chester Minor, interpretado por Sean Penn, com mais uma atuação brilhante. Minor é um médico veterano da Guerra Civil dos EUA expatriado para a Inglaterra e que sofre de síndrome pós-traumática (que evoluiu para uma esquizofrenia).
O filme, dirigido pelo iraniano Farhad Safinia, é baseado no livro de Simon Winchester lançado em 1998 (The Surgeon of Crowthorne: A Tale Of Murder, Madness And The Love Of Words, título da edição britânica; O Professor e o Louco, em português). Nesse mesmo ano, Mel Gibson conseguiu os direitos para levar a história do primeiro editor do OED ao cinema, mas só conseguiu finalizar o longa quase duas décadas depois por conta de uma série de imbróglios e problemas judiciais (basicamente sobre custos de locação e direitos autorais), uma história semelhante ao nosso Chatô, de Guilherme Fontes. Segundo reportagem do jornal The Telegraph, o longa começou a ser rodado em 2016 em Dublin, Irlanda, o que gerou muita controvérsia e descrédito. Afinal, como rodar um filme sobre Oxford sem cenas na cidade? “You can’t fake that!” (você não pode simular isso!), disse o autor do livro ao jornal britânico.
Os roteiristas (entre eles Safinia) ficaram incumbidos de adaptar a história que se passa na segunda metade do século 19, na Inglaterra. A primeira cena é o do assassinato cometido por Minor. Assombrado pelo seu passado, ele se sente perseguido pelo fantasma de um desertor de guerra que foi marcado a ferro quente por ele. Confunde um pai de família pobre com o desertor e corre pelas ruas de Londres atrás dele até que George Merrett é morto na frente da esposa Eliza (Natalie Dormer), que fica à deriva com seus seis filhos após perder o marido. A insanidade de Minor o leva para a prisão, mesmo afirmando a todos que não é louco.
Em paralelo, o filme mostra a história de Murray, o gênio erudito pai de família e estudioso autodidata (em algumas cenas, Gibson mostra sotaque escocês exagerado). Uma das melhores cenas já surge logo no início, quando o professor precisa convencer os doutores da Universidade de Oxford a ser contratado para editar o dicionário, mesmo não tendo um diploma sequer. Murray, então, cita dezenas de línguas e dialetos que domina ou tem conhecimento e deixa os letrados de boca aberta. Depois de explicar a etimologia de clever (esperto, em inglês), ele ganha o emprego e a árdua missão de descrever todas – absolutamente todas – as palavras anglo-saxônicas e seus múltiplos significados.
Murray e sua equipe constroem um scriptorium (gabinete de estudos) que servirá de escritório para a catalogação de milhares de termos que compõem o léxico. A certa altura, todos percebem que a missão é absurda se feita por meia dúzia de pessoas e, então, surge a ideia de convocar voluntários na tentativa de finalizar o projeto. Um comunicado é colocado dentro de cada livro e assim as histórias do professor e do louco se cruzam.
Minor continua preso num hospital psiquiátrico e passa a receber um tratamento mais humano para sua esquizofrenia – ele começa a pintar e ler. Ao ganhar um livro de um carcereiro, ele encontra um propósito para sua vida insana e reclusa: consegue transformar, mesmo que por pouco tempo, sua loucura em obstinação. O médico se debruça loucamente no livro O Paraíso Perdido – poema épico da literatura inglesa escrito por John Milton – e passa a ordenar o mundo das palavras, escrevendo centenas de bilhetes que são enviados pelo correio ao professor. Sua vida se divide entre esse trabalho profícuo e a vontade de ajudar a viúva do homem que assassinou. O esquizofrênico, com peso na consciência, passa a enviar dinheiro à mulher.
Minor se torna o maior colaborador do dicionário e Murray o chama de salvador. E quando Minor surge como o verdadeiro “milagre divino”, a fotografia do filme se altera: se antes as cenas eram marcadas pelo frio do inverno, ambientes sombrios e personagens carregadas de tensão, agora a primavera desponta e a luz começa a surgir.
A cena em que o gênio encontra o louco mostra as semelhanças físicas entre eles, apesar de tantas diferenças. Ambos com suas barbas brancas e olhos azuis. Porém, um brilhante e outro louco. Um escocês, outro americano. Um de Oxford, outro de Yale. Um solto, outro preso.
O dicionário passa a ser objeto secundário e dá lugar a uma outra história também bastante improvável: o amor entre a viúva e o assassino de seu marido. Em uma das cenas, Eliza presenteia Minor com o livro Grandes Esperanças, uma das obras-primas de Charles Dickens, que discute culpa, redenção, perdão, desejo e, claro, esperança. E são essas palavras que darão o tom do filme até o final.
PS 1: Para mostrar que a língua é constante como a vida, o OED emitiu, em fevereiro último, um novo comunicado em busca de palavras novas, segundo publicou o jornal The Guardian. “O Oxford English Dictionary (OED) já inclui muitos termos de todos os tipos de negócios e profissões, mas sempre há muitos outros que não chegaram ao nosso conhecimento – e é por isso pedimos a ajuda de vocês”. Ou seja, eles pedem que médicos, bombeiros, professores, marqueteiros e todo tipo de profissional enviem palavras e expressões com novos significados – como budget ou branding – semelhante ao que ocorreu três séculos atrás.
PS 2: O OED também elege a palavra de cada ano. E “tóxico” foi a escolhida em 2018, entre 150 milhões de palavras coletadas em 10 mil sites. A instituição explicou que houve um aumento de 45% no número de vezes que os usuários pesquisaram o termo, que vem na maioria das vezes associado a outra palavra como “masculinidade tóxica” (“toxic masculinity”). O termo se refere ao movimento #MeToo e a luta contra o assédio sexual. Resta agora saber qual será a palavra de 2019! E quem quiser conferir as escolhas de cada temporada deve clicar aqui.