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Rainha Elizabeth II

Oito momentos em que a monarca britânica imprimiu a sua marca na cultura pop que ajudou a fomentar em 96 anos de vida

Textos por Marden Machado (Cinemarden) e Abonico Smith

Fotos: Reprodução e divulgação 

Os ponteiros do relógio já haviam ultrapassado a tradicional hora britânica do chá quando o anúncio oficial da morte da rainha Elizabeth II foi disparado pela área de comunicação do governo britânico. A monarca – que completava 70 anos de reinado em 2022, o mais longo de todos os tempos da História – faleceu neste dia 8 de setembro aos 96 anos de idade, no castelo real de Balmoral, na Escócia. Seu filho, Charles, hoje com 73 anos, será o sucessor no trono e se tornará o rei mais velho a ser coroado no Reino Unido.

Nascida Elizabeth Alexandra Mary Windsor, Lilbet – como era chamada pela família – transformou-se em um dos maiores ícones da cultura pop do século 20. Seu rosto, seu simbolismo, sua posição, tudo isso movimenta uma trilhardária indústria do turismo por Londres e outras cidades do Reino Unido (que comporta, além da Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte). Quem vai a Londres deve pelo menos passar ali pela frente dos portões do Palácio de Buckingham – ou assistir ao espetáculo semanal da troca da guarda se for o dia certo para tal. Por isso, o Mondo Bacana comenta oito momentos em que a monarca marcou presença em música, filmes e séries, sendo uma ilustre presença pop dentro da própria cultura pop que sempre ajudou a fomentar durante seu reinado. (AS)

O Discurso do Rei (2010)

O cineasta londrino Tom Hooper começou sua carreira profissional na televisão em 1997, onde dirigiu episódios de seriados e alguns telefilmes e minisséries. Sua estreia no cinema veio em 2004, quando dirigiu Sombras do Passado. Isso não impediu que ele continuasse trabalhando na TV, onde dirigiu em 2008 para a HBO a premiada minissérie John Adams, estrelada pelo ator Paul Giamatti. O Discurso do Rei foi seu terceiro longa. A partir de um roteiro de David Seidler, o filme conta um período da vida do rei George VI, do Reino Unido, que era gago. Ele não esperava tornar-se rei. Isso aconteceu porque seu irmão mais velho abdicou do trono. Veio a Segunda Guerra Mundial e ele precisava falar e inspirar confiança em seu povo. Para tanto, George, vivido por Colin Firth, é levado por sua esposa, Elizabeth (Helena Bonham Carter), para ser tratado por um terapeuta, Lionel Logue (Geoffrey Rush), de métodos pouco ortodoxos. O Discurso do Rei se concentra nesse momento crucial da vida do monarca, pai de Elizabeth II (que também aparece como personagem na história, ainda como uma pequena princesa). Ou seja, todo o caminho que percorreu para superar a gagueira e vencer esse grande desafio. Tom Hooper não é um diretor, digamos assim, cinematográfico. Ele funciona melhor em trabalhos para televisão. De qualquer maneira, o filme recebeu 12 indicações ao Oscar e ganhou nas categorias de filme, diretor, roteiro original e ator. (MM)

A Rainha (2006)

É lugar-comum dizer que ninguém faz filmes sobre a realeza como os ingleses. E se o roteiro for escrito por Peter Morgan, então, é aposta certa. Este é o caso de A Rainha, dirigido por Stephen Frears. A monarca em questão é a rainha Elizabeth II, vivida aqui por Helen Mirren, que ganhou o Oscar de melhor atriz naquele ano pelo papel. A história se passa na primeira semana do mês de setembro de 1997, logo depois do acidente de carro que vitimou a princesa Diana, em Paris. A família real se isola no palácio de Balmoral e cabe a Tony Blair (Michael Sheen), que acabara de ser apontado como primeiro-ministro do Reino Unido, a missão de reconectar os governantes com a população em luto pela morte prematura de sua querida princesa. Para tanto, somente Elizabeth poderá ajudá-lo. Repare como Frears diferencia as cenas onde a realeza e os comuns aparecem. Ele usou duas câmeras: uma 35 mm para os nobres e uma 16 mm para os plebeus. Você pode até não perceber num primeiro momento, mas, com certeza vai sentir que há algo diferente nas mudanças de cenário. (MM)

Spencer (2021)

O cineasta chileno Pablo Larraín iniciou sua carreira em 2001. Desde então tem se revelado um sensível roteirista, diretor e produtor, bem como um adepto de trilogias. A primeira delas, a “Trilogia da Ditadura Chilena”, é composta por Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e No (2012). Em 2016 ele iniciou uma nova trilogia sobre a solidão de mulheres ligadas ao poder. Jackie, estrelado por Natalie Portman no papel da primeira-dama americana Jacqueline Kennedy, viúva do presidente Kennedy, nos dias seguintes a seu assassinato. Com Spencer, ele dá continuidade a essa nova trinca de filmes. Com roteiro de Steven Knight, temos aqui um preciso recorte de três dias na vida da princesa Diana, da família real inglesa, então casada com o príncipe Charles, durante as festividades de Natal junto à Família Real (Stella Gonet interpreta o papel de Elizabeth). No papel-título, a atriz Kristen Stewart interpreta uma jovem angustiada e extremamente solitária presa a uma rotina de obrigações tradicionais que remonta há séculos. O principal elo que Lady Di tem com o mundo real se concentra nas figuras de Maggie (Sally Hawkins), sua estilista; o mordomo Alistar (Timothy Spall); e o cozinheiro Darren (Sean Harris). Além disso, ela tem visões da Ana Bolena, segunda esposa do rei Henrique VIII. Não há registro algum que confirme a história que Spencer conta. Trata-se de uma especulação bastante crível. Principalmente, quando sabemos de inúmeros relatos da rotina da princesa. Larraín é meticuloso em sua narrativa e tem Kristen Stewart em interpretação inspirada, precisa no sotaque britânico e minuciosa nos gestos, olhares e jeito de andar. Como se isso não bastasse, há um cuidado extremado com o desenho de produção, o que resulta em cenários, figurinos e objetos de cena que trabalham a favor da história. Da mesma forma que a fotografia, a montagem e especialmente a bela trilha sonora composta por Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead. (MM)

Corra Que a Polícia Vem Aí (1988)

O trio ZAZ, formado pelos irmãos Jerry e David Zucker junto com Jim Abrahams, surgiu em 1980 com o sucesso Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu, comédia que abriu espaço para outras semelhantes com traziam muitas piadas acontecendo ao mesmo tempo em cena. Piadas tanto verbais quanto não verbais, em primeiro, em segundo e até em terceiro planos. Corra Que a Polícia Vem Aí!, de 1988, é, na verdade, uma versão para cinema da série Esquadrão de Polícia, criada pelo trio em 1982, que apresentou o atrapalhado detetive Frank Drebin (Leslie Nielsen). Ele agora está de volta e tem como missão impedir um atentado contra a Rainha Elizabeth II (interpretada por Jeannette Charles), que está nos Estados Unidos para uma visita oficial. O roteiro, escrito pelo ZAZ junto com Pat Proft, não nos poupa de rir, sem exagero, por um segundo sequer. A resposta nas bilheterias foi mais do que satisfatória e gerou duas continuações, além de transformar Nielsen em astro da comédia pastelão. (MM)

The Crown (2016–)

A série anglo-americana feita para a Netflix conta a trajetória de Elizabeth II do seu casamento em 1947 ao começo deste novo século, passando por várias pessoas e acontecimentos que fizeram parte de seu extenso reinado. Com quatro temporadas já disponíveis, já arrebatou várias indicações e premiações. Três atrizes já fizeram a monarca durante a cronologia: Claire Foy, Olivia Colman e Imelda Stauton. A última estreará como protagonista da produção em novembro deste ano, quando vier a quinta temporada. (AS)

Os Simpsons (1989-)

Todo mundo que significa algo a mais na cultura pop mundial com certeza já ganhou alguma participação especial na longeva série de animação criada por Matt Groening. Elizabeth II aparece em carne, osso e pele amarelada em seis episódios (e ainda é mencionada em outros dois!). No mais engraçado deles, que pertence à decima quinta temporada, Homer provoca uma grande balbúrdia ao invadir acidentalmente o Palácio de Buckingham, bater em uma carruagem e ser espancado pela Guarda Real. Depois começa a chamar a rainha de impostora e acaba sentenciado à prisão nas masmorras da Torre de Londres. O desenrolar de tudo isso, se contado, vira spoiler, mas só dá para dizer que até a cantora Madonna acaba tendo seu nome envolvido em todo este imbroglio.

“God Save The Queen” (1977)

Era final de maio de 1977 e o Reino Unido estava nas comemorações do jubileu da rainha, dos 25 anos de monarquia de Elizabeth II. Regidos pelo empresário picareta Malcolm McLaren, os Sex Pistols lançavam – tocando em um navio alugado por McLaren para ficar em movimento à frente do Parlamento, nas águas do Tâmisa – uma nova música com o mesmo nome do hino britânico de séculos e séculos. Só que a letra provoca uma cusparada verbal atrás da outra na história da realeza britânica. Na capa do single, uma foto da Elizabeth jovem cheia de referencia estética da arte punk.  Nos versos vociferados por Johnny Rotten, dizeres como “Deus salve a Rainha/ O regime fascista dela/ Eles fizeram você de idiota/ Uma bomba H em potencial/ Deus salve a Rainha/ Ela não é ser humano/ E não existe futuro/ No sonho da Inglaterra” transformaram a gravação em um clássico do punk rock.

“The Queen Is Dead” (1986)

Terceiro álbum de estúdio e considerado a grande obra-prima da banda inglesa que lançou as carreiras do Morrissey (vocais e letras) e Johnny Marr (guitarras e musicas). Com dez faixas e a capa ostentando uma foto monocromática em verde ao ator francês Alain Delon em um filme de 1964 que levou o nome de Terei o Direito de Matar? no Brasil, o disco tem dez faixas e traz clássicos como “There Is A Light That Never Goes Out”,  “Bigmouth Strikes Again” e “The Boy With The Thorn In His Side”. A abertura do lado A do vinil (e consequentemente a abertura do CD também) fica com a música-título, que traz versos costumeiramente interpretados como antimonarquistas, mas que fazem referência a passagens da vida de Morrissey, sobretudo as dificuldades de relacionamento com a mãe (no caso, a figura da Rainha Elizabeth seria apenas uma metáfora para a incitação a uma inevitável mudança de vida). “The Queen Is Dead”,  a música, não foi lançada como single. Entretanto, acabou ganhando videoclipe pelas mãos do cineasta Derek Jarman, que flagra, por meio de uma câmera frenética sempre em movimento, os momentos de rebeldia e insatisfação da  juventude e a sobreposição de imagens de ruas, edificações, pessoas, árvores, flores e o fogo, que culmina com a simbologia da destruição de tudo que havia até então. Jarman também produziu – com estética semelhante – videoclipes para outros dois singles da banda nesta época (“There Is A Light…” e “Ask”) e lançou tudo sequenciado como um curta-metragem e também sob o nome de The Queen Is Dead.

Movies

O Grande Movimento

Diretor boliviano aposta no retrato das relações metafísicas que sobrevivem à margem da selva de concreto

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Olhar de Cinema/Divulgação

As sinfonias da cidade retratam o movimento das metrópoles, transformando selvas de concreto e engarrafamentos em um ritmo sensível por meio da expressão do cinema. O Grande Movimento (El Gran Movimiento, Bolívia/Catar/França/Suíça/Reino Unido, 2021 – Olhar de Cinema) é o último lançamento do cineasta boliviano Kiro Russo, que foi o centro da mostra Foco da 11a edição do Olhar de Cinema, e se pretende fazer jus ao estilo de Dziga Vertov e Walter Ruttmann. Nele, La Paz é o vetor de uma jornada entre Elder (Julio César Ticona) e Max (Max Bautista Uchasara).

Elder é um dos protagonistas do primeiro longa de Russo, Viejo Calavera, do qual este é uma espécie de continuação, e caminhou sete dias para chegar à capital boliviana protestar por melhores condições para si e seus colegas, mineiros de carvão. Contudo, ao chegar em La Paz, vai em busca de trabalho e adoece por ter inalado muito carvão. A trama é esparsa e bastante aberta: as personagens vêm e vão sem muita explicação, uma característica que ecoa a postura passiva de Kiro Russo, cuja câmera é invisível, paciente e impassível. Seus longos planos frequentemente se alteram por meio de um potente jogo de zooms que aproximam e afastam os objetos sem movimentar a câmera. Também são comuns as instâncias em que Elder ou Max, um misterioso bruxo em situação de rua que vaga as ruas e arredores de La Paz, são enquadrados em meio a multidões, escombros e árvores, parte constituinte de um ruído socioeconômico.

Desafiando o reducionismo do cinema a furos de roteiro e “finais explicados”, Kiro Russo é bastante óbvio em sua temática, mas absurdamente vago em seu roteiro, desenvolvendo a trama com lentidão, num entremeio de cenas cotidianas e repetições de motif constante. Se a primeira parte, por assim dizer, do longa-metragem remete ao estilo de uma sinfonia da cidade, a segunda é o retrato das relações metafísicas que sobrevivem à margem da selva de concreto. 

A margem, aqui, é um elemento central: o diretor é explícito ao afirmar, na breve apresentação em vídeo exibida antes do início da exibição em Curitiba, que seu interesse é versar sobre o capital. Contudo, o desempregado e o homem em situação de rua que protagonizam o filme são personagens à margem das relações capitalistas – o proletário em ruína física e o lumpen, já excluído da própria relação de trabalho e existência que configuram o trabalhador. A partir do momento em que deixa de posicioná-los no mecanismo capitalista e individualiza-os, operando uma transição do macro da cidade para o micro de Elder e Max, O Grande Movimento parece afastar-se da pretensão de Russo para embarcar numa situação marginal ao capital. Quando a barreira de classes impede o acesso da população mais pobre da ciência e, principalmente, da saúde, quem é capaz de salvá-la em um momento de necessidade?

Ainda no começo do longa-metragem, Elder é encontrado por Mama Pancha (Francisca Arce de Aro) uma senhora que, embora o protagonista não conheça, afirma ser sua madrinha e grande amiga de sua falecida mãe. É ela que o abriga, encontra bicos para que ele trabalhe e o leva ao médico, a fim de investigar a tosse constante. O doutor, após uma breve consulta, afirma não haver nada de errado e é imediatamente respondido com uma preocupação maternal: pode ser um demônio? Com a escassez de respostas, Mama Pancha une Elder e Max, a quem ajuda quando vê, e busca no misticismo ancestral a salvação de seu afilhado.

Sem teto, comida ou lugar na cidade – afinal, dorme numa floresta próxima à cidade –, Max é a representação pictórica da ancestralidade cultural latino-americana. Sua reza e seu benzimento são a linha de frente do único combate possível pela vida de Elder. Mas o desfecho é trágico. Nem mesmo o resgate da tradição pode curar uma doença, por essência, capitalista. O carvão em pó inalado durante o trabalho de Elder é, como Russo expõe em sua sequência final, o moedor de carne que assola a sociedade em La Paz e a sentencia para o mesmo fim.

Contudo, o simbolismo raso dessa fração final e algumas experimentações no andar do filme tornam sua projeção incerta – O Grande Movimento é um filme divisivo. Seu ritmo lento faz com que os defeitos, que são poucos embora flagrantes, sejam amplificados na mente do espectador e as escolhas de estilo que se repetem transformem-se num marasmo criativo. Mas a paciência faz bem: Kiro Russo traz a reflexão ao centro dessa experiência fílmica, gostemos ou não de seu resultado.

Movies

Viúva Negra

Depois de alguns adiamentos por conta da pandemia, a heroína vingadora ganha seu primeiro filme solo tanto nos cinemas quanto no streaming

Textos por Andrizy Bento e Leonardo Andreiko

Fotos: Marvel/Disney/Divulgação

Previsto para estrear originalmente em abril de 2020, Viúva Negra (Black Widow, EUA, 2020 – Marvel/Disney) sofreu adiamentos devido à pandemia de covid-19, que obrigou as salas de cinema e vários outros estabelecimentos a fecharem as portas temporariamente a fim de evitar aglomerações e, portanto, preservar a saúde e segurança da população. A ansiedade resultante dos constantes reagendamentos da estreia fez com que as expectativas dos fãs com relação ao longa se tornassem cada vez mais altas, já que eles mal podiam esperar para conferir uma das integrantes originais dos Vingadores ganhar o tão merecido protagonismo. Todas essas situações de adiamento e espera poderiam ser fatores prejudiciais para seu desempenho nas telas (o filme poderia não corresponder às expectativas projetadas pelos fãs), mas ainda havia outro complicador: o timing de lançamento dentro da cronologia do MCU, independente de pandemia, parecia inadequado após o desfecho trágico de Natasha Romanoff em Vingadores: Ultimato.

Entretanto, esse ainda se tratava de um aspecto contornável – bastava que os produtores e roteiristas tivessem acertado na tônica e abordagem assumidas pela produção. Viúva Negra seria um tributo à heroína abatida, com um provável sabor agridoce de encerramento do arco da vingadora? Ou exploraria sua origem e legado, de modo a dar continuidade com outra personagem assumindo seu posto, considerando que Natasha foi uma das várias meninas treinadas na Sala Vermelha no Programa Operação Viúva Negra? As perguntas são devidamente respondidas no filme que segue, sabiamente, pelos dois caminhos.

Como ainda estamos atravessando um momento pandêmico, a solução para Viúva Negra enfim ganhar as telas, foi lançá-lo simultaneamente nos cinemas e na plataforma Disney+; claro que no streaming ele ainda não está disponível para todo e qualquer assinante, podendo ser conferido por um valor adicional. Dessa forma, aqueles que não podem ir ao cinema e não se rendem aos meios ilegais, têm de desembolsar alguns reais a mais para ter o acesso premium. É o modo que a casa do Mickey encontrou de não sair no prejuízo.

Para quem já conhece um pouco do background da personagem, o filme protagonizado por ela é facilmente entendível e não necessita de muitas exposições, escapando do caráter didático de grande parte das produções solo de origem. Para quem não se lembra do momento em que ela revela brevemente seu passado em Vingadores: Era de Ultron, basta ter em mente que Natasha foi treinada na Sala Vermelha (programa desenvolvido por uma organização da União Soviética), juntamente com outras jovens órfãs para o combate e espionagem. Lá também foi biológica e psicotecnologicamente aprimorada. Bem como as demais garotas, ainda teve de passar por um procedimento invasivo de histerectomia, de modo a evitar distrações e “obstáculos” em seu trabalho como espiã.

Tornando-se o “projeto” mais bem-sucedido desenvolvido pelo Programa Operação Viúva Negra, ela passou a figurar como uma ameaça à segurança global e entrou no radar da S.H.I.E.L.D. Para matá-la, Nick Fury enviou o agente Clint Barton, conhecido pela alcunha de Gavião Arqueiro, mas reconhecendo seu potencial, habilidades e destreza, Clint recuou em sua missão e aconselhou Fury a integrá-la à SHIELD. Trabalhando juntos, Natasha e Barton desenvolveram um vínculo poderoso de cumplicidade e uma ótima dinâmica de equipe, o que os levou a uma missão em Budapeste, citada primeiramente no longa original dos Os Vingadores (2012) e finalmente explicada no filme solo da Viúva Negra. Aliás, no primeiro longa da equipe, pudemos testemunhar a trajetória de Natasha de agente da SHIELD à vingadora.

Nem vou entrar no mérito de que uma personagem tão fascinante e que, para completar, foi intensamente ativa e onipresente em filmes pregressos do MCU, merecia um longa individual muito antes. Pois teria de considerar as perspectivas mercadológicas de bem poucos anos atrás, quando executivos de estúdios eram terminantes em afirmar – sem nem ao menos fazer alguma tentativa – que filmes solo de heroínas (ainda mais uma relativamente desconhecida do público que não consome HQs) não seriam capazes de render altas cifras como as produções protagonizadas por personagens do gênero masculino e já familiares ao público, a exemplo de Homem de Ferro, Thor e Capitão América. Antes tarde do que nunca, pelo menos.

Viúva Negra agrada e empolga quem curte a fórmula da Marvel Studios e surpreende quem assiste de maneira descompromissada. O longa protagonizado por Scarlett Johansson consegue ir um pouco além de apenas um bom entretenimento de fim de semana, com uma trama sólida, ritmo fluido, resultando em uma eficiente tradução da heroína dos quadrinhos para as telas.

A narrativa começa em 1995, quando Natasha e sua “irmã” Yelena têm suas infâncias interrompidas, ingressando forçosamente em uma iniciação cruel que visa transformá-las em assassinas perfeitas. O prólogo se concentra na falsa família infiltrada em Ohio, composta pela jovem Natasha Romanoff, a irmã caçula Yelena Belova, o pai Alexei Shostakov (conhecido como o Guardião Vermelho) e a ex-viúva negra Melina Vostokoff, que assume o papel de mãe das garotas. Esses minutos iniciais já deixam aparente que Natasha tem conhecimento de que aquele núcleo familiar no qual está inserida é fake. Mas Yelena, de apenas seis anos, não faz a menor ideia. Posteriormente, durante os créditos iniciais, temos lampejos do treinamento e da rotina brutal aos quais Natasha, Yelena e outras órfãs são submetidas, destacando que a missão das jovens mais aptas é converterem-se em espiãs e assassinas, enquanto as demais são friamente executadas. O começo sombrio é embalado por um cover inusitado de “Smells Like Teen Spirit”, clássico do Nirvana, interpretado por Malia J em uma toada bastante melancólica que corresponde perfeitamente às imagens mostradas na tela.

Vinte e um anos depois, vemos Natasha escapando dos homens do General Ross, que a acusa de violar o Tratado de Sokovia e ferir o rei de Wakanda. A vingadora é bem-sucedida em sua fuga e retira-se para um lugar isolado a fim de permanecer reclusa por um tempo. No entanto, seus planos não saem exatamente como ela desejava e seu caminho se cruza novamente com o de Yelena e de seus pais adotivos, aos quais ela deve se unir a fim de executar uma nova missão: ir atrás de uma figura aterrorizante de seu passado do qual ela acreditava já ter se livrado há anos. Ninguém menos do que Dreykov, o chefe da Sala Vermelha que, para surpresa de Nat, continua ativa. O filme narra o que houve com Natasha durante esse período em que permaneceu afastada dos Vingadores e foi para Budapeste confrontar seus fantasmas – situando-se entre os eventos de Capitão América: Guerra Civil e Vingadores: Guerra Infinita. Sem muitos spoilers: a localização da Sala Vermelha é um achado e todo o plano para derrotar o responsável pelo programa é bem orquestrado na tela.

A produção é recheada de sequências de explosões, tiros, perseguições por terra e ar e muita pancadaria para deleite dos fãs do gênero. As cenas de ação são bem conduzidas e, apesar de toda a pirotecnia e situações surreais e inverossímeis, não apenas funcionam como conseguem soar bastante plausíveis dado o acuro da direção de fotografia, do desenho de produção e do preciso emprego dos efeitos especiais. Se há algum demérito no departamento visual, está no fato de a Marvel Studios insistir em apresentar cenas de luta com demasiados cortes, o que tira um pouco da “magia” desse tipo de sequência. O espectador tem a ciência de que os embates corporais ilustrados na tela tratam-se de pura coreografia e são resultantes de um árduo trabalho de montagem, não transmitindo a sensação de legitimidade esperada. Todavia, o clímax ágil e eletrizante mais do que compensam essa deficiência.

Além de contar com bons acréscimos ao elenco, cuja presença que mais se destaca é a de Florence Pugh que interpreta Yelena, além de nomes como Rachel Weisz e David Harbour, a inserção do personagem Taskmaster (traduzido como Treinador nas HQs em português), agrada aos fãs de quadrinhos, ainda que apareça no longa com identidade e background bem distintos das de sua contraparte na mídia original. E, obviamente, há numerosas referências aos Vingadores.

Embora seja um espetáculo visual e sonoro, o que realmente se sobressai em Viúva Negra é o fato de o filme humanizar a protagonista. O roteiro explora muito mais do que seu lado vingadora, propondo um mergulho em sua psique e deixando bem aparente os esforços descomunais que ela faz em ordem de manter seu emocional estável, ainda que este esteja comprometido. Contudo, não deixa de manter alguns de seus sentimentos nebulosos, considerando que o mistério é parte essencial do charme da personagem. Ao introduzir o plot da família de Natasha, mesmo que esta se trate de uma família fake, temos acesso à intimidade da heroína de um modo que ainda não havíamos tido a oportunidade em longas que o precederam na cronologia do MCU. E, felizmente, é um plot que não soa artificial.

De forma bastante sutil, pontual e orgânica, a produção ainda lança luz sobre questões pertinentes e atuais, como o papel da mulher na sociedade, o insistente controle sobre nossos corpos, comportamentos e os questionamentos diante de nossas condutas, o quão valiosa é nossa autonomia e poder de escolha, bem como a representação das super-heroínas na cultura pop. O longa até se permite um momento de autossátira, como quando Yelena zomba da pose de Natasha para lutar – o modo característico de jogar o cabelo para trás em câmera lenta, que se trata de pura estética, mas tornou-se algo emblemático da personagem, visto pela primeira vez no hoje longínquo Homem de Ferro 2, lançado em 2010. O melhor? Aborda pautas fundamentais com relação ao espaço e representação da mulher, mas passando bem longe do discurso panfletário.

O resultado é um bom thriller de espionagem e ação, que coloca em evidência temas de hoje e bem relevantes, e retrata na tela tanto o que faz de Natasha Romanoff uma lutadora poderosa e perspicaz, quanto uma pessoa sensível e, por vezes, vulnerável. Dirigido, roteirizado e protagonizado por mulheres, o longa de Cate Shortland, escrito por Jac Schaeffer é um filme feito especialmente para os fãs da heroína, mas não se reduzindo a uma “carta de amor” destinada a eles.

Há um anacronismo na origem da espiã – aspectos de sua história que conflitam com o que já foi apresentado sobre ela em filmes predecessores da estrutura MCU – para o qual é difícil fazer vista grossa. E o longa também tem aquele jeito de “meio do caminho” como a maioria esmagadora das produções da Marvel Studios – a aventura isolada que não faz tanta diferença no todo. Assim são também os outros filmes solo dos heróis da Marvel, como os do Thor, Homem-Aranha e mesmo os longas protagonizados pelo Homem de Ferro. No entanto, Viúva Negra tem um enredo muito mais consistente do que os filmes do Homem-Formiga ou da Capitã Marvel, para citar alguns exemplos. De qualquer forma, apesar das falhas, o conjunto da obra é bastante agradável.

Para completar, a trilha sonora é outro de seus atrativos. Inclui, além da citada cover do Nirvana, a versão original de “American Pie”, de Don McLean, que garante alguns momentos de leveza em meio ao caos que se desenrola ao redor de Natasha e sua família.

Lançado tardiamente, Viúva Negra não só cumpre o esperado, como supera expectativas e não desaponta os fãs. É o filme ideal para inaugurar a Fase 4 do MCU nas telonas. (AB)

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Um Universo Cinematográfico, em especial de proporções tão grandiosas quanto o da Marvel, impõe uma série de limitações a seus filmes e em especial às aventuras solo, em virtude de seus épicos crossover e de uma narrativa geral que se estende por anos. Nesse caso, as constrições narrativas são muitas: a protagonista cuja morte já está anunciada; a necessidade de uma trama simples o suficiente para passar despercebida no tempo em que se insere (entre Guerra Civil e Guerra do Infinito), mas espalhafatosa o bastante para caber na fórmula Marvel; a introdução de uma nova protagonista, sua história e o anúncio de sua próxima participação. Justamente por isso, esse não é tanto um filme da Viúva Negra, Natasha (Scarlett Johansson), como é de Yelena (Florence Pugh).

Assim, Viúva Negra (Black WIdow, EUA, 2020 – Marvel/Disney) retrata o reencontro das irmãs para enfrentar o abusivo vilão que as transformou em Viúvas, Dreykov (Ray Winstone), superagentes com as mesmas aptidões da heroína. Para isso, precisam recuperar contato com sua família “adotiva”, com quem estiveram por alguns anos como disfarce para uma missão de Melina (Rachel Weisz) e o Guardião Vermelho (David Harbour).

Conduzido como qualquer blockbuster da Marvel, o enredo é fraco e serve somente como cola gasta entre cenas de ação “engajantes”, cuja lógica interna comete inúmeras adaptações convenientes às protagonistas (a já conhecida armadura de enredo ou plot armor). Se havia alguma tentativa de estudo emocional ou psíquico de Natasha, ela não sobrevive ao ritmo constantemente quebrado por piadocas e alívios cômicos fora de hora.

A princípio, o que descrevo pode ser a análise de muitos longas multimilionários de super-heróis e heroínas dos últimos anos. Tal sensação não se distancia de um diagnóstico já esperado: de fato, este é somente um entre tantos lançamentos desprovidos de um discurso profundo. Costuma-se admitir um bom filme do gênero quando há um conflito interessante. Por exemplo, Thanos é um bom vilão porque somos capazes de entender suas motivações.

No entanto, Dreykov, além de não interagir com a trama até seu clímax, é plástico e unidimensional, providenciando ao longa um pretenso embate moral confuso e politicamente complicado. Líder estratégico da União Soviética, ele se refugia numa base espacial após um atentado de Natasha que supostamente o mata. Embora ecoe o estereótipo de crueza moral do regime socialista aos olhos do Ocidente, acompanhado da estética soviética mesmo que tenha se refugiado nos ares após o fim do regime, o patético plano de dominação mundial do antagonista o concede “o poder de manipular o preço de petróleo, água e afins” – um controle absoluto do capital, portanto, mas nunca utilizado ou sequer percebido pelas agências de inteligência do Universo Marvel. Confuso, não?

Ao mirar no repetitivo artifício de entregar riscos astronômicos ao conflito vigente buscando conferir-lhe legitimidade ao público, ou seja, buscando a empatia e atenção dos espectadores, Viúva Negra comete o mesmo erro que diversos filmes de seu gênero, e alcança seu mesmo resultado: o desinteresse. Parece-nos então que, ciente da fraqueza do roteiro que lhe é entregue, a diretora Cate Shortland foca sua atenção – além das longas e repetitivas batalhas e fugas – na interpretação de seu quarteto estelar. Contudo, não há bons personagens sem um bom roteiro. Os diálogos travados e as já comuns interrupções para alívio cômico resultam em quase-personagens dramáticos, com pouquíssimo impacto e traços caricatos, como o sotaque russo forçado das três novas adições ao UCM.

Sendo assim, a personagem mais surpreendente é Alexei, o Guardião Vermelho, a quem é dada a menor expectativa narrativa e o papel mais simples: atenuar o tom pretensamente dramático com uma personalidade deslumbrada e atrapalhada. David Harbour está extremamente confortável no papel, assim como todas as atrizes com quem contracena. É de se supor que, caso o elenco não tivesse nomes de tamanha força, as dobradinhas entre Natasha e Yelena, além de toda a dinâmica familiar frustrada, não teriam sido ruins, mas desprezíveis.

Viúva Negra é um filme esquecível que se propõe à difícil tarefa de construir camadas a um personagem falecido e, claro, introduzir uma nova (anti?)heroína ao panteão da Marvel. Sofrendo todos os sintomas do corporativismo exagerado da Disney, não oferece uma história convincente ou qualquer discurso que não se resuma a maniqueísmo barato embrulhado em ação antilógica e explosões aleatórias. (LA)