Music

Violent Femmes – ao vivo

Cultuada banda alternativa americana celebra os 40 anos de seu álbum de estreia tocando-o na íntegra em Los Angeles

Texto por Paulo Biscaia

Foto: Reprodução

Quando se pensa em álbum lendário na história da música pop, daqueles que apresentam vários hits perfeitos, surgem de pronto clássicos como White AlbumThe Dark Side Of The MoonSome GirlsThrillerOK Computer, Purple Rain e mais outros suspeitos de sempre. Só que mesmo alguns destes trabalhos, que são referência para várias gerações, têm uma ou outra canção que desliza e foge do padrão de qualidade do todo. Sempre muito subjetivo, é claro, mas tem.

Existe um album de 1983 que detém o raro feito de ter um conjunto PERFEITO de faixas e nem todo mundo trata dele com a devida reverência. Trata-se do primeiro disco do Violent Femmes, que carrega o mesmo nome da banda. No aniversário de 40 anos de lançamento, a banda fez um show de comemoração no The Novo em Los Angeles e este que vos escreve teve a imensa felicidade de estar presente naquela noite de 16 de novembro. 

A banda entrou e de cara Brian Ritchie abriu com os acordes inconfundíveis da primeira faixa do álbum, “Blister In The Sun”. Com Gordon Gano à frente, seguiram-se então, na exata ordem do disco, cada uma das faixas do album de estreia. Uma mais perfeita que a outra: “Kiss Off”, “Please Do Not Go”, “Add It Up”, “Confessions”, “Prove My Love”, “Promise”, “To The Kill”, “Gone Daddy Gone” e “Good Feeling”.

Ritchie no baixo (e mais voz e mais xilofone e mais um monte de outras coisas) e Gano na guitarra (e voz e violino e banjo e mais outras coisas), estavam acompanhados de dois jovens integrantes que certamente nem tinham nascido na época da estreia dos Violent Femmes. Um deles, um sujeito misteriosamente pomposo, todo de preto com um enorme chapéu de caubói, ficava de pé, imóvel, e entrava pontualmente em momentos para tocar uma singular tuba/sax barítono tão gigante que era maior que o próprio músico (e bem maior que o baixinho Gordon Gano). O jovem baterista seguia a tradição do original Victor de Lorenzo. Ao apresentá-lo, Ritchie disse que LA tem os mais bateristas incríveis por metro quadrado, mais do que qualquer outro lugar do planeta, mas que nenhum “tocava churrasqueira como ele toca”. Sim, a velha churrasqueira de metal ainda é o padrão de bateria e percussão do som único dos Femmes. 

Terminadas as faixas do disco de estreia, teria alguma outra música à altura? Claro! “Jesus Walking On The Water”, “Country Death Song”, “I Held Her In My Arms” e outras que culminaram com o grand finale de “American Music”. Uma aventura sonora conduzida por um grupo de instrumentistas ousados, inquietos e com letras provocadoras sobre o frágil american way of life

Depois de quase duas horas de show de arrepiar e tantas faixas memoráveis será que eles tinham gabaritado tudo o que há de perfeito em toda a discografia? Andando ao meu lado no corredor de saída, uma fã de 20 e poucos anos disse que faltou “Waiting For The Bus”. Só pensei: “Sim! Faltou essa. Amo essa música”. Pois é!

Violent Femmes é uma das bandas mais consistentes que já ouvi e lamentavelmente pouco lembrada nas listas de melhores de todos os tempos. A volumosa quantidade de composições incríveis da banda de Milwaukee garante seu lugar no panteão dos gigantes. Pelo menos ela está aqui no meu e no das pessoas que saíram maravilhadas do The Novo.

Set list: “Blister In The Sun”, “Kiss Off”, “Please Do Not Go”, “Add It Up”, “Confessions”, “Prove My Love”, “Promise”, “To The Kill”,  “Gone Daddy Gone”, “Good Felling”, “Jesus Walking On The Water”, “I’m Nothing”, “Memory”, “Country Death Song”, “I Could Be Anything”, “Old Mother Reagan”, “Dance Motherfucker Dance”, “Color Me Once”, “I Held Her In My Arms”, “Black Girls” e “Give Me The Car”. Bis: “I’m Not Gonna Cry” e “American Music”.

Series, TV

A Queda da Casa de Usher

Mike Flanagan transforma em minissérie toda a corrosão moral dos descendentes de um magnata de clássico conto de Edgar Allan Poe

Texto por Tais Zago

Foto: Netflix/Divulgação

No conto The Fall Of The House Of Usher de Edgar Allan Poe, o detetive Auguste Dupin narra o encontro derradeiro que tem com o milionário Roderick Usher, quando descobre alguns segredos da família de magnatas. É um conto trágico sobre loucura, família e isolamento que usa a estrutura de uma casa como metáfora para a destruição e corrosão moral.

Para terminar seu contrato com o streaming Netflix e nos presentear mais uma vez com uma obra assustadora em outubro, Mike Flanagan nos arrasta para a sua bela homenagem a Edgar Allan Poe – o pai do terror, horror, e, sim, também do true crime literário ao nos apresentar  Auguste Dupin, que inspirou Arthur Conan Doyle a criar sua mais famosa figura, o detetive Sherlock Holmes.

Em sua adaptação de A Queda da Casa de Usher (2023) para uma minissérie, Flanagan nos apresenta o clã dos Usher, uma linha de descendentes de Roderick Usher, o patriarca que construiu toda sua fortuna em cima da dor humana com a indústria farmacêutica. O grupo de seus filhos é formado por personalidades distintas mas que possuem em comum a ganância, a luxúria, a arrogância, a falta de talentos reais e a frieza daqueles endinheirados que há tempos perderam o contato com o mundo real e desaprenderam o código de normas éticas e morais humanas. Os semideuses construídos na base de grandes fortunas a la Elon Musk. Os donos do mundo que destroem o mundo.

Confesso que fui assistir com um pé atrás. Poucos conseguiram, até hoje, trazer Poe para as telas sem destruir o conteúdo. Algo meio parecido ao que ocorre com Stephen King. Mas Flanagan já provou seu talento em misturar terror, drama e suspense em obras-primas como A Maldição da Residência Hill (2018), baseado no romance de Shirley Jackson; A Maldição da Mansão Bly (2020), que, por sua vez, se inspirou no livro The Turn Of The Screw de Henry James. Ou com o complexo e ao mesmo tempo intrigante Missa da Meia-Noite (2021). Todos especialmente criados para a Netflix.

Flanagan é um artista multifacetado: cria, roteiriza, dirige, produz e até mesmo edita algumas de suas obras. Ele nos apresentou a uma forma de sentir medo confusa – a que nos assusta e também traz lágrimas de melancolia. Por vezes somos aliados de seus monstros e fantasmas. Por outras, roemos as unhas e levamos sustos de voar do sofá. Esse coquetel de sentimentos torna o trabalho de Mike um tanto inesquecível. As obras ficam conosco por alguns dias, meses ou até mesmo, anos gravadas em nossa memória.

Já Edgar Allan Poe dispensa apresentações. Quem, em algum momento da vida, interessou-se por literatura de terror, conhece bem o nome, sabe sua trágica história e entende algumas referências às suas mais famosas obras como The Raven, The Tell Tale Heart ou The Black Cat. Poe é a referência número um do terror gótico e vitoriano. É quem nos plantou na cabeça o medo de sermos enterrados vivos ou assombrados e levados à loucura pela nossa consciência.

Com respeito e reverência ao mestre do horror, Flanagan nos apresenta em oito episódios a série que tem o nome de um dos contos mais famosos de Poe. Só que A Queda da Casa de Usher, no final, é uma imensa homenagem a todo o corpo de trabalho do escritor, com capítulos cravejados de pequenas surpresas para os fãs. Vemos na tela seus poemas, seus temas, os nomes de seus personagens e todo clima gótico e depressivo-melancólico que envolve seus contos. Mergulhamos nas suas palavras que volta e meia nos tomam de assalto no meio dos roteiros de Flanagan. Como não poderia deixar de ser, os episódios levam também os nomes de obras de Poe.

Assim como outros mestres do horror, Mike tem suas musas, seu atores que aparecem em diversas obras em papeis diferentes. Sempre presente estão Kate Siegel (Camille), a esposa de Flanagan, e a atriz Carla Gugino (Verna). Mas temos também surpresas no cast como Mark Hamill (Arthur Pym) e Henry Thomas (Frederick), além de um elenco mais etnicamente diverso com Rahul Kohli (Napoleon), Sauriyan Sapkota (Prospero) e a encantadora Kyliegh Curran (Lenore). Uma agradável surpresa em relação a um dos pontos críticos que era identificado em suas obras. Contudo, confesso que senti bastante a falta de Victoria Pedretti, que junto com Kate Siegal são a marca registrada do horror de Flanagan, assim como Sarah Paulson e Jessica Lange estão para a obra de Ryan Murphy (American Horror Story).

Como nada é perfeito, também há pontos de crítica aqui. Algumas interpretações são engessadas, principalmente as de Hamill e de Mary McDonnell (Madeline); alguns CGIs deixaram a desejar; e alguns diálogos se tornaram longos demais. Às vezes é mais efetivo apresentar em seis episódios uma serie mais coesa e interessante do que estender por oito longas horas e arriscar a monotonia.

Apesar disso, A Queda da Casa de Usher deve empolgar bastante os fãs de Edgar Allan Poe. Principalmente aqueles que devoraram toda a sua produção e que são capazes de captar referência sutis, como o nome do arquiinimigo da vida real de Poe, Rufus Griswold, que empresta o nome a uma das figuras antagônicas da trama.

Music

Nenhum de Nós – ao vivo

Sem um integrante, banda apresenta em Curitiba uma acentuada veia rock’n’roll jamais vista em shows anteriores

Texto por Abonico Smith

Fotos de iaskara

Quando vou escrever o texto de alguma resenha procuro pensar numa ideia referente ao objeto da análise. Pode ser algo sobre o artista, a obra, o público-alvo, mas necessariamente precisa poder me dar algum assunto para discorrer sobre, defender alguma teoria – seja positiva ou negativa – a respeito disso. Quando solicitei o credenciamento para realizar a cobertura da recente passagem do Nenhum de Nós por Curitiba fiquei matutando a respeito do que iria ser a costura do texto.

Acabei me fixando em um ponto curioso. Ainda são várias as bandas que colocaram o rock no mainstream brasileiro a partir dos anos 1980 que permanecem em atividade. Isso que dizer que lá se vão entre três e quatro décadas continuas de shows e lançamentos de discos (no formato do momento do mercado fonográfico que fosse). Só quase todas sofreram com perdas pelo caminho. Mortes, desentendimentos, rompimentos e saídas dos integrantes de suas formações, se não a original, a clássica, aquela que ficou conhecida pelo grande público. Só para citar algumas que permanecem vivas: Blitz, Rádio Táxi, RPM, Barão Vermelho, Titãs, Ultraje a Rigor, Ratos de Porão, Mercenárias, Replicantes, Ira!, Capital Inicial, Biquíni, Inocentes, Plebe Rude, Legião Urbana (ops, essa não pode, judicialmente, nem utilizar o próprio nome durante as turnês!). Se o panorama se estender para os anos 1990, outra década de ouro do gênero no Brasil, temos Raimundos, Nação Zumbi, mundo livre s/a, Planet Hemp, Natiruts, Relespública, Sepultura e por aí vai. Caso você queira estender o panorama aos anos 1970, dá para adicionar dois heróis da resistência bem famosos, que mais recentemente decidiram retomar a trajetória como conjunto: Mutantes e Novos Baianos.

São poucos os exemplos quem sobreviveu ao desmonte mantendo o mesmo time clássico de músicos. Pode-se começar por aquelas exceções graças a curiosidades. O Los Hermanos só volta a se reunir em turnês esporádicas a cada três ou quatro anos. O Skank permaneceu unido até o começo deste ano até, enfim, dar adeus aos palcos. O Pato Fu iniciou como um trio que está lá até hoje na linha de frente, embora outros instrumentistas (teclados, bateria, percussão) tenham ido e vindo na formação. Dá para contar nos dedos de uma mão aqueles que permanecem intocáveis: Jota Quest, Racionais MCs (ainda mais para quem defende a teoria de que o rap é o novo rock), Paralamas do Sucesso (que inclusive montaram um show baseado no trio-que-vira-quarteto, com o tecladista que toca com eles desde sempre) e, o foco deste texto, Nenhum de Nós. Muitos músicos dizem que fazer parte de uma banda é como manter um casamento, quase sempre com mais de duas pessoas envolvidas. Por isso dar continuidade ao relacionamento acaba virando algo difícil quanto com o passar dos anos. Sem falar no sempre eterno Made In Brazil.

O Nenhum de Nós é um caso interessante quanto a isso. Começou em Porto Alegre em 1986 como um trio (Thedy Corrêa, baixo e voz; Carlos Stein, guitarra; Sady Homrich, bateria) e nos anos seguintes gravou os dois primeiros discos, já com três grandes hits  nacional (“Camila, Camila”, “Eu Caminhava” e “O Astronauta de Mármore”). O terceiro, de 1990, indicou um crescimento tanto no direcionamento sonoro (a incorporação de timbres e instrumentos que flertavam com a música tradicional gaúcha) e o acréscimo de Veco Marques para se dividir entre os violões e a segunda guitarra. Em 1996, já no sexto disco, o quarteto virou oficialmente um quinteto, com o músico de apoio João Vicenti (teclados e acordeon) virando membro fixo. Já na primeira década do novo século, Thedy passou a se dedicar mais à função de frontman sem ter de estar sempre tocando algo com as mãos. Por isso, deixou o baixo a cargo de Estevão Camargo, que desde então acompanha o grupo nos concertos sem, contudo, figurar na formação oficial. Portanto, é um trio que virou quarto, transformou-se em quinteto e hoje viaja como sexteto. Mas o mais importante é que quem entrou para o time não saiu mais. Nunca mais. Pelo menos até agora. Ou não?

Madrugada de 17 de setembro deste ano. Perto da uma da manhã, o Nenhum de Nós está sendo aguardado por uma plateia ávida por rock cantado em português. A banda gaúcha era a atração principal da noite no White Hall Jockey Eventos, que lançava a edição deste ano do Prime Rock Festival em Curitiba, evento anual que reúne grandes nomes do segmento durante um dia todo na Pedreira Paulo Leminski – informações sobre atrações, ingressos e tudo mais do próximo dia 9 de dezembro você encontra clicando aqui). Chego quase em cima da hora do início do show e me posiciono bem na cara do palco, mas na lateral direita. Era uma área reservada para ingressos vip. Dali, bem na grade, enxergava com perfeição a frente toda. Mas pouco via a bateria colocada ali ao fundo.

Entraram os músicos. Thedy, Carlos, Veco, Sady, Estevão… Mas cadê João? Me dirigi em direção ao centro e só então caiu a ficha: não havia nada de teclas disposto no palco. Nada da sanfona, nenhum teclado sequer. Atrás dos guitarristas e do vocalista, apenas o kit de Homrich e o pedestal com microfone para o baixista fazer os backings. O que teria acontecido com Vicenti? Espero alguma informação dita entre as músicas a respeito da ausência. Nada. Teria saído do grupo?

Lembro rapidamente que horas antes havia procurado na internet NdN informação mais recente sobre a banda. Algum lançamento, algum anúncio. Afinal, já fazia um tempinho que não sabia nada a respeito de novidades. Para minha surpresa, um comunicado dizia que o site oficial está em fase de reconstrução e em breve estará novamente ativo. Fui às redes sociais do NdN e também nada de novo encontrei por lá. Enquanto isso, as primeiras canções seguiam e Thedy continuava sem se pronunciar a respeito da “nova formação” de quinteto.

Passou mais um filme ligeiro em minha cabeça. O de que jornalistas também passam por perrengues em suas coberturas externas. Muitas vezes o cenário encontrado no local pode não bater com as informações prévias que existem sobre aquela pauta. Me peguei ficando surpreso e ansioso por alguma peça que ainda faltava no quebra-cabeça. Acompanho a trajetória ao vivo do NdN com regularidade desde 1988, quando assisti em um palquinho armado no Parque Barigui ao lançamento do primeiro álbum deles (e na sequência fui entrevistá-los no microônibus estacionado nos bastidores). Na foto utilizada nas peças promocionais da apresentação do White Hall o tecladista estava presente. Cadê João Vicenti e por quê ele não estava lá eram as perguntas que se repetiam em marteladas na mente. Havia ainda espaço para mais outras duas: será que todo o mote previamente pensado para escrever este texto teria simplesmente desabado em questão de segundos e eu teria de me virar para achar um fio condutor ali, meio que do nada, enquanto as músicas eram tocadas?

Um certo nervosismo tomou conta depois de um punhado delas. Fui observando como estavam os arranjos sem piano, teclado e acordeon. Percebi que Thedy empunhou mais vezes o violão, tecendo o fundo das bases harmônicas. Percebi também que o volume das guitarras de Veco e Carlos estavam mais alto do que o de outros shows anteriores em que estive presente. Com mais peso e distorções também. Puxava na cabeça a lembrança das gravações em discos de estúdio. Tinha momentos em que eles (às vezes um, às vezes outro, às vezes os dois juntos) substituíam os riffs tocados nas teclas pretas e brancas ali nas ligas metálicas que formam as seis cordas. Aos poucos ia criando um plano B para poder fazer a resenha enquanto ainda esperava alguma fala sobre a ausência da noite. Criatividade e improviso também são recursos de última hora que podem (e devem) ser utilizados durante o exercício do jornalismo.

set list do Nenhum de Nós em versão quinteto acabava surpreendendo. Nunca havia visto os gaúchos em uma performance tão (com o perdão do trocadilho besta para um artista que já lançou alguns discos acústicos!) elétrica. A veia pop que sempre permeou aquela extensa coleção de hits que o grupo costuma tocar ao vivo nunca havia soado tão rock’n’roll como ali, naquele instante. Várias vezes me peguei olhando o figurino escolhido pelo vocalista para se apresentar na capital paranaense. Uma jaqueta jeans trazia vários signos do rock entre o cult e ounderground. O slogan básico rock’n’roll, uma caveira, uma cruz, um enorme rosto de David Bowie do look raio colorido no rosto enfeitava as nas costas, um X bem grande na lateral frontal (que poderia remeter tanto à negação e à ruptura propostas pelo gênero como também à histórica banda punk X, de Los Angeles). Por baixo da jaqueta, uma camiseta com a estampa onde se lia o nome original do livro Espere a Primavera, Bandini. Publicada em 1938, a primeira obra de John Fante fala sobre o típico sentimento de inadaptação durante a adolescência, o fato de se sentir deslocado em relação à família, escola e sistema vigente. O protagonista Bandini nada mais era do que o alter ego do autor, que depois viria a escrever o clássico Pergunte ao Pó e se tornar um dos nomes mais cultuados da literatura underground norte-americana do século 20. Sei que Thedy é um consumidor voraz de livros e HQs. Estaria ali na camiseta dele um recado discreto sobre a “nova fase” do NdN?

Conforme o show se encaminhava para o final sentia o que em inglês se chama de mixed emotions. Gosto demais do terceiro álbum, Extraño, de 1990, no qual o Nenhum de Nós passou a incorporar elementos e influências da música regional do sul do país, criando uma identidade própria que passou a diferenciá-la de outros grupos locais de sua época – inclusive incluí o disco na minha votação feita para o recentemente lançado livro sobre os cem maiores álbuns do rock gaúcho. Com o tempo e a rápida consolidação do então músico de apoio João Vicenti na formação oficial, o NdN foi desenhando uma sólida discografia em conjunto com grande fanbase em todo o país. Saiu de uma grande gravadora, pipocou por vários selos menores e/ou independentes, voltou a uma major, retornou à independência (estacionando em 2009, enfim, no do it yourself do selo ligado à própria produtora de shows que sempre esteve com a banda). Tudo isso sem diminuir o volume de convites, viagens, lançamentos e fãs. Como assim, de uma hora para outra, depois de três décadas, poderia haver uma nova adaptação sonora tão repentina?

Ao mesmo tempo, a garra e o afinco mostrados ali, sem João e com muita segurança, possibilitaram que, sim, poderiam servir como um alívio imediato (com o perdão do trocadilho que faz uso do nome de uma música de outros gaúchos, os Engenheiros do Hawaii!) para um possível imediatamente “novo” NdN. Ao vivo já resolvido. Talvez em estúdio preparando novidades e surpresas para logo.

set list foi chegando ao final com os refrões dos diversos hits cantados a plenos pulmões e algumas covers adicionadas estrategicamente no repertório – afinal o evento era para promover o vindouro festival que celebra o rock nacional. Teve, então, “O Segundo Sol” (de Nando Reis mas muito famosa na voz de Cassia Eller), “Gita”(de Raul Seixas, de quem eles já regravaram “Tente Outra Vez”), “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo” (de Lô Borges e lançado no histórico álbum Clube da Esquina) e “Toda Forma de Amor” (de Lulu Santos). As duas últimas, aliás, os gaúchos regravaram em Outros, disco de intérprete dedicado ao repertório alheio, lançado em 2012). E o encerramento (por que não?) do bis ficou com “O Astronauta de Mármore”, a consagrada versão em português para “Starman”, de David Bowie. Contudo, nenhum palavra proferida a respeito de João Vicenti não estar ali. 

Depois de cerca de uma hora e quinze de apresentação, saí do White Hall ainda encafifado mas com uma ideia simples e básica: mandar uma mensagem para Thedy perguntando o porquê da ausência de João. A resposta chegou no meu whatsapp horas depois, dando, enfim, uma conclusão para o mistério: ele sequer embarcara para Curitiba, pois havia sentido uma indisposição. Menos mal. O Nenhum de Nós não perdera um membro. O desfalque era apenas momentâneo e a sonoridade com a mistura de elementos da música gaúcha não fora descartada. Lado positivo: quem esteve ali na casa pode ver um raro show do NdN em que ele voltava às origens guitarreias pré-Extraño, porém com muito mais peso e barulho. E o fim definitivo dessa incógnita ainda possibilitou uma saída robusta para a tarefa de escrever o texto sobre o concerto: transformá-lo em misto de resenha, relato pessoal da noite e crônica gonzo.

Set list: “Paz e Amor”, “Notícia Boa”, “Eu Caminhava”, “Amanhã ou Depois”, “Eu Não Entendo”, “Das Coisas Que Eu Entendo”, “O Segundo Sol”, “Sobre o Tempo”, “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo”, “Diga a Ela”, “Gita”, “Julho de 93”, “Você Vai Lembrar de Mim”, “Vou Deixar Que Você Se Vá” e “Camila, Camila”. Bis: “Toda Forma de Amor” e “O Astronauta de Mármore”.

Movies

Destino das Sombras

Longa nacional de terror mostra que uma boa e assustadora história também pode ser baseada em problemas sociais do nosso dia a dia

Texto por Frederico DiLullo

Foto: Moro Filmes/Divulgação

Sim, já é uma realidade: o terror emerge como uma vertente ousada no cenário cinematográfico brasileiro contemporâneo. Com uma rica diversidade cultural como pano de fundo, essa categoria tem conquistado espaço e admiradores, revelando-se uma poderosa ferramenta para a expressão de temores e angústias do dia a dia.

Essa diversidade está presente em Destino das Sombras (Brasil, 2023 – Moro Filmes), que estreia no próximo dia 10 em algumas capitais. Com direção de Klaus’Berg, doutor em Comunicação Social e cofundador do canal virtual de humor TV Quase, o longa conta a história dos amigos Sérgio e Marcos, que decidem passar um fim de semana em um sítio para se afastarem dos problemas familiares que abatem o segundo e a sua pequena filha, Eduarda.  No entanto, eles logo descobrem que o lugar possui uma história obscura, onde o real e o subconsciente começam a se misturar. O que é real, afinal? E o que é fantasia? Esse contexto ainda é marcado por misteriosos casos de desaparecimento de crianças na região. 

Incertos sobre a veracidade dos relatos sobrenaturais contados pelas poucas pessoas que vivem ali, os amigos acabam enfrentando ameaças reais ocultas pela escuridão. Conforme a trama vai se desenrolando, as linhas temporais do passado e do presente se fundem numa só, onde algumas respostas sobre desparecimento de crianças começam a ser revelados.

Um outro ponto interessante é a trilha sonora envolvente, que conduz a narrativa de forma evocativa cada situação. E todos esses axiomas levam o filme a ser uma narrativa de horror e suspense que parte do grande medo social que é o desaparecimento infantil. Esse trauma real exibe uma tríade junto ao psicopatológico e o sobrenatural.

Destino das Sombras é um bom filme de terror, vai agradar aos fãs do gênero. Carrega uma história interessante e atmosfera de suspense bem construída. De quebra, também consegue ser assustador sem recorrer a clichês ou sustos fáceis. 

Movies

Oppenheimer

Cinebiografia do “pai da bomba atômica” traz três horas de grandiloquência e desafios autorais com a assinatura de Christopher Nolan

Texto por Abonico Smith

Foto: Universal Pictures/Divulgação

A biografia de Julius Robert Oppenheimer é uma das mais interessantes do último século. Nova-iorquino descendente de uma abastada família de origem germânica e judia, cresceu com os estudos bancados em uma conceituada escola particular chamada Ethical Cultural Society, algo bastante incomum para uma criança naquele início dos 1900. Logo manifestou interesse por áreas diversas, chegando a se formar em Matemática, Ciências e Literaturas Grega e Francesa. 

Apreciador também das artes, seu  negócio mesmo era estudar. Com afinco e muita dedicação. Terminou em 1925 a faculdade de Química em Harvard e logo se mudou para o Reino Unido. Como seu negócio não era ficar manuseando os equipamentos de um laboratório, partiu, na sequência, para fazer doutorado em Física na Alemanha. Pelo menos ali, o ambiente era de sua preferência: estar em contato com físicos renomados e mergulhar de cabeça nas mais trabalhadas e complicadas questões teóricas da área. Enquanto investigava processos em partículas subatômicas, já como professor de física repatriado aos Estados  Unidos, começou a se envolver em assuntos políticos que o preocupavam: a ascensão do fascismo na Europa, em especial o nazismo na terra natal de seu pai. Passou, inclusive, a financiar organizações contra a extrema-direita após herdar a fortuna da família e flertou brevemente com o partido comunista, o qual abandonou também após se decepcionar com o desdém da ditadura stalinista em relação à ciência. Até que, advertido por Albert Einstein e Leo Szilard sobre a ameaça de Hitler ter em mãos o pioneirismo de ter uma bomba atômica, passou a pesquisar como ter o urânio 235 a partir do mineral natural e foi contratado pelo governo norte-americano, em 1942, para chefiar o Projeto Manhattan e comandar uma equipe de cientistas para obter, em um megalaboratório secreto, a energia nuclear a fim de ser incluída em operações militares. Era contra o uso de toda e qualquer arma química como instrumento de guerra, inclusive chamava a indústria armamentista de trabalho demoníaco. Após o sucesso do grande teste realizado em 1945 no deserto de Los Alamos, no Novo México, demitiu-se da direção do projeto. Semanas depois, viu o mundo se aterrorizar com os dois cogumelos que dizimaram as regiões das cidades de Hiroshima e Nagasaki, escolhidas para serem o alvo de uma nação japonesa que ainda não havia se rendido na Segunda Guerra Mundial. Oppie – como era carinhosamente chamado – não só entrou para a História (contra a sua vontade e interesse) como “o pai da bomba atômica” como ainda caiu em desgraça em seu país, através de mentiras e manipulações políticas movidas pelo conservadorismo maccarthista que o levaram a julgamentos e destruíram sua reputação pública e a trajetória profissional.

Uma figura tão controversa e famosa só poderia ter sua biopic com a assinatura de outro nome do cinema com credenciais iguais: o diretor, roteirista e produtor Christopher Nolan. Eis que Oppenheimer (Reino Unido/EUA, 2023 – Universal Pictures) chega às telas com toda a grandiloquência possível. Primeiro, é uma biografia de três horas de duração, feita com tecnologia para ser exibida em telas IMAX (inclusive com a primazia de exibir, estilosamente, várias cenas em preto e branco). Depois, a data escolhida para o lançamento: em pleno verão lá de cima, período reservado para as estreias de blockbusters populares (como,por exemplo, Barbie, com quem luta pelas bilheterias neste fim de semana de estreia). Tem também o elenco recheadíssimo de estrelas: Cillian Murphy (o protagonista, em magistral atuação), Emily Blunt (a esposa), Florence Pugh (a amante), Robert Downey Jr (o antagonista), Kenneth Branagh, Matt Damon, Gary Oldman, Josh Hartnett, Matthew Modine, Benny Safdie, Rami Malek, Casey Affleck, Olivia Thrilby, Jason Clarke, James D’Arcy e outros mais em pontas ou papéis secundários.

Claro que a cinematografia de Hoyte van Hoytema (parceiro de Nolan em vários outros filmes) é um luxo só. Não só em toda a sequência que culmina no momento de maior dramaticidade, o teste bem sucedido da megaexplosão em Los Alamos. Os muitos closes em Oppie e mais a fusão entre os delírios, os pensamentos e a realidade vivida por ele também reforçam a tensão que sempre o rondou por vários anos (o antes e o depois da “fama”). O desenho de som também impressiona – e ainda prega uma grande peça na hora H da tal explosão. Outro bom trunfo do longa é todo o  vai-vem da narrativa criada pelo próprio Nolan, que adianta e antecede no tempo o tempo todo, desorientando o espectador quanto a causas e consequências durante a trajetória do cientista.

Aliás, as três horas de duração também se tornam um grande truque imposto pelo cineasta ardiloso para o público. Uma sucessão de personagens aparecem e desaparecem da tela, muitos dados e conceitos teóricos (que vão de física e química a política e ética) embaralham a mente. Torna-se um grande desafio ficar imerso na poltrona do cinema por todo este tempo, ainda mais se a pessoa não tem muito conhecimento prévio da Segunda Guerra Mundial ou mesmo paciência para uma trama mais reflexiva e sem muitos efeitos visuais criados por CGI (o que é bem comum nos blockbusters apresentados em Imax e algo ausente em uma obra do diretor). Não será comum ver gente saindo do cinema reclamando que muito deste tempo poderia um pouco reduzido. Por isso mesmo, Barbie larga com amplo favoritismo na somatória das bilheterias do mundo todo.

Desta forma, Nolan continua sendo Nolan com toda pompa possível. Oferece mais um filme difícil, perfeccionista e impactante. E mais: ao recontar a história de Oppenheimer, brinca de mergulhar no passado para mexer com as entrelinhas do presente. Não será muito difícil fazer conexões mentais com fatos e pessoas do nosso tempo recente.