Todos os detalhes e curiosidades dos bastidores da décima sexta turnê feita pela banda por países europeus
Texto por Gabriel Thomaz
Fotos: Reprodução/Acervo Autoramas
Os Autoramas iniciaram sua carreira internacional no ano de 2002, quando fizeram uma turnê no Japão com a lendária banda nipônica Guitar Wolf. Desde então não pararam de fazer shows fora do Brasil, tendo tocado em 23 diferentes países do mundo, num total de 48 viagens internacionais. No final do mês de abril de 2019, os Autoramas partiram para uma nova turnê na Europa, passando por Alemanha, Inglaterra e Espanha. Essa foi a turnê europeia de número 16. O plano desta vez era fazer dez shows na Alemanha e Inglaterra, tirar uma semana de folga (ou turismo) e retomar as datas com oito apresentações na Espanha. Nesta turnê levaríamos a responsabilidade de tocar o repertório do nosso mais recente álbum, Libido, que saiu também na Europa (pela Soundflat Records) e recebeu críticas e resenhas extrememente elogiosas, o que rendeu convites para festivais como Surforama, Liverpool Sound City, Rock’n’Roll Butterfahrt e Hipsville A-Go-Go.
Érika tem uma irmã e um sobrinho que vivem na Alemanha e, por isso, viajou alguns dias antes para visitar sua família. Eu, Jairo e Fábio saímos do Brasil na correria e chegamos já no dia do primeiro show da turnê na linda cidade de Stuttgart, no sul da Alemanha, a duas horas de van do aeroporto de Frankfurt. Nossa querida booker e manager Sandra Billig estava lá com a van vermelha para nos buscar. Enchemo-la de presentes brasileiros e partimos felizes para Stuttgart, sem qualquer atraso (coisa inadmissível para os alemães!).
Já tocamos várias vezes em Stuttgart, sempre no Goldmarks. A primeira vez que tocamos lá abrimos para os lendários Dictators e temos um público muito divertido e que se esbalda de dançar, o que não é comum por lá. Todos os contratantes se impressionam como a gente consegue colocar os alemães pra chacoalhar o esqueleto. Como sempre, o show foi animal. A banda que foi escalada pra abrir não compareceu por motivo de saúde e quem acabou tocando foi a excelente atração local The Dahlits (recomendo!). Vendemos merchandising pra caramba (o que é fundamental para as contas da turnê) e nos mandamos para o hotel pra descansar bem pro dia seguinte, já que já chegamos na Alemanha e emendamos no primeiro show.
O segundo show foi em Köln (ou Colônia, em português), no Mongogo, cujo dono é o Traxman, também dono do nosso selo europeu Soundflat. Já chegamos com a notícia que nosso LP Libido estava esgotado e teríamos de fazer novas prensagens, Ki beleza! Novamente o povo dançou pra caramba e a toda hora Traxman nos trazia no palco novas rodadas da especialidade da casa, o Drink de Pepino, uma delícia refrescante. Traxman tem em sua residência um belíssimo Tiki Room, um quarto todo com motivos polinésios e tropicais. Por isso, levamos jarras, copos e saleiros com design de abacaxi, coco e outras frutas tropicais ao melhor estilo A Grande Família – comprados da Maravilhas do Lar – para embelezar ainda mais seu impecável Tiki Room. As novas aquisições foram prontamente aprovadas e encaixadas na decoração, com a promessa de que seriam os novos destaques no verão europeu que estava por chegar.
Compramos vários discos no escritório da Soundflat (incluindo nossas colegas da The Let’s Go’s, banda da Sakura, filha do Seiji, do Guitar Wolf, que conheci ainda criança em Tokyo), e de lá fomos para Hamburgo, onde vamos tocar num lugar chamado Menschenzoo (“zoológico humano”) com abertura da banda local The Beasts. Já havíamos tocados com eles. São um duo local de garagem trash que se veste de múmias, tipo os Mummies. O local estava entupido, muito cheio e o show foi alucinante, com todo mundo se jogando na plateia, um monte de alemães xingando o Bolsonaro, suadeira total e o povo feliz ao final do show. Mas uma surpresa nos aguardava: um jovem de estatura avantajada subiu doidaço no palco e acabou tropeçando e caindo em cima da minha pedaleira. Seu peso fez com que alguns cabos e plugss se amassassem ou rompessem, mas, germanicamente, o jovem resolveu o assunto me dando 100 euros para os reparos.
O dia seguinte seria o mais esperado da turnê por nós até então, pois acordamos bem cedo para irmos até o porto de Cuxhaven, onde pegaríamos um barco para a maravilhosa ilha de Helgoland, no Mar do Norte, onde é realizado o sensacional festival Rock’n’Roll Butterfahrt. Helgoland é uma ilha onde não entram carros, os produtos vendidos são tax-free e onde vivem focas e leões marinhos em suas praias geladas. Um paraíso do frio e um lugar lindíssimo. Helgoland foi bombardeada fortemente durante a Segunda Guerra, pois era um lugar estratégico no meio do mar e esses bombardeios estão todos documentados com placas pela ilha. Nessa ilha é feito o Rock’n’Roll Butterfahrt, festival mais pro lado punk rock com o povo super cabeça aberta. O palco é montado em cima da areia da praia e, como não choveu durante o festival, o clima ficou ainda mais alto astral. Ao chegar na ilha, já fomos recebidos com uma banda no cais do porto cantando “I don’t wanna holiday in the sun”, do Sex Pistols, e levados pela organização ao nosso bungalow. Cada banda tinha uma casinha linda cheia de rango e birita pra se alojar. Coisa maravilhosa! Fomos almoçar e ver as focas e o Fabsi, lenda punk alemã que organiza o festival. Foi ele próprio me ajudar a consertar o estrago na pedaleira do dia anterior. Entramos no placo com tudo consertado ainda de dia e o povo, formado por gente de todas as idades, foi à loucura. Rola por aí um vídeo que ilustra bem como foi esse show. Depois rolou uma festa no cais. Todo mundo muito bem, nos divertimos a valer com nosso barrilzinho de cerveja disponível no nosso bangalô, que levamos para a festa.
No outro dia, numa ressaca descomunal, fomos almoçar no centro da ilha. Fábio pediu um sanduíche e saiu andando e comendo quando uma gaivota, um pássaro com umas asas enormes, atacou diretamente seu sanduba levando-o para comê-lo em outro lugar. As pessoas que viram o assalto disseram que era normal acontecer isso e realmente lemos sobre isso antes. Ou seja, foi uma experiência maravilhosa. É um grande privilégio de ter uma banda e viajar pelo mundo. Nós jamais escolheríamos Helgoland como um destino turístico e estávamos lá desfrutando de tudo aquilo.
Ainda tocamos em Wilhelmshaven, com o lendário punk britânico Johnny Moped, e em Frankfurt, dessa vez muito na correria, pois iríamos de van para a Inglaterra. Chegamos em Liverpool depois de longa viagem, sem tempo pra parar, já que pegamos muitos engarrafamentos. Para chegarmos no horário, Érika até fez xixi num copo do Starbucks – segundo ela, a experiência mais hippie da sua vida. Em Liverpool, ainda na correria, ainda fizemos uma reunião no escritório da marca de guitarras Eastwood, conhecemos a galera da Ditto, nossa distribuidora digital que tem sede na cidade, e já fomos passar som para o show no Liverpool Sound City. Deu tudo certo e nossa primeira vez em Liverpool foi linda. Na madrugada, eu e Jairo ainda saímos a pé debaixo de chuva para conhecer o Cavern Club e a área lendária relativa aos Beatles. De lá mandei foto pra minha mamãe, uma verdadeira fã dos 4 de Liverpool. Foi emocionante de verdade, pois nunca fomos até lá como turistas. A música nos levou a Liverpool.
A próxima parada seria o festival Hipsville, em Margate, litoral da Inglaterra. Chegamos lá num tremendo vento frio. O lindo hotel vitoriano – cuidado por uma velhinha, parecia filme – era em frente ao mar. O festival é um dos mais legais e lendários da cena garage/surf/60s da Europa. Foi a segunda vez que fomos convidados pra tocar nesse festival, a primeira foi em 2015. Nesse festival, as pessoas vão fantasiadas de acordo com o tema de cada ano. Neste ano o tema foi o Soho, bairro de Londres famoso por suas sex shops e cinemas pornô. Portanto, havia várias mulheres com roupas de “mulher pelada”: seios e pelos pubianos costurados em cima de um macacão cor da pele. Uma mulher levava uma placa hilária com os dizeres “Semen Is Vegan”. Uma outra era um abajur ambulante, minha fantasia preferida, e a dona dançava muito bem. Tivemos também as famosíssimas Go-Go Girls, que já ficaram nossas amigas de tantos festivais que já fizemos juntos, assim como Ade, Andrew e Alexandra, maravilhosos organizadores do Hipsville Soho A-Go-Go. Antes de subirmos ao palco encontramos nosso querido Steve Worral, do lendário RetroMan Blog – que fez os melhores elogios ao nosso show – e sua esposa Mayumi. O show foi sensacional, rendeu algumas das melhores fotos da turnê e logo após sairmos do palco fomos convidados pela lendária Gwen Ever, de um dos melhores programas de rádio de Rock do mundo, A Low Life in High Heels (se você não conhece, não perca mais seu tempo), para fazer uma entrevista atrás do palco do Winter Gardens, local onde se realizou o festival. Chegando lá vimos os cartazes de shows antigos que rolaram naquele palco e até os Beatles tocaram lá. Sim, tocamos na mesma casa que os caras. E só fui saber depois… Os shows foram animalescos, nos divertimos às pampas até a fome bater e irmos numa lanchonete turca junto com nosso amigo brasileiro Al Zioli, que tocou na mesma noite com o MFC Chicken. Daí caminhamos até o hotel sentindo o vento gélido do litoral inglês.
Era apenas a metade dos shows no Reino Unido. Acordamos e nos mandamos para Manchester para tocar no 0161, festival Antifascista. Ao chegarmos, vimos a quantidade de bandas de som pesado, o que nos fez pensar se o povo ia curtir o Autoramas… Mas o povo total cabeça aberta foi ao delírio com o show. Queremos muito voltar. No dia seguinte ao acordar ainda fomos tirar fotos na frente do Salford Lads Club, onde os Smiths fizeram a foto do encarte do The Queen Is Dead, antes de partirmos rumo a Londres para o último show dessa parte da turnê.
Em Londres, tocamos no Made In Brasil, bar e restaurante brasileiro comandado pelo nosso querido Renato, em plena Camden Town. Chegamos, fizemos um turismo no Camden Market e voltamos pra passar som. O local já estava lotado de brasileiros, muitos amigos que não víamos há anos e nem sabíamos que estavam morando lá. Encontramos nossos amigos da banda londrina King Salami and the Cumberland 3, com quem troquei um monte de vinis, e que me pediram uma música para o próximo disco deles (tomara que role!). Depois nos hospedamos na casa de nossos queridos amigos Juliana e Luis.
No dia seguinte, eu e Érika pegamos o EuroTunnel para nossa semana de descanso na Alemanha e Sandra voltava pra sua casa, enquanto Jairo e Fábio ficaram mais uns dias em Londres antes de partirem para encontrar amigos em Praga e Amsterdam. Foi ótimo descansar no meio da turnê. Estávamos revigorados para o restante na Espanha.
Eu e Érika voamos para Madrid e nosso querido manager espanhol Guiller nos buscou no aeroporto de Barajas. Jairo e Fabio já estavam lá curtindo bastante, hospedados na casa de nossos amigos Mila e Bono. Lá tínhamos vários compromissos. No primeiro dia fomos à lendária Rádio 3 espanhola, onde nos entrevistou o lendário Julio Ruiz, no seu programa Disco Grande, que está no ar há 50 anos! Pra nossa surpresa, Julio sabia TUDO da nossa carreira e nossa história. Foi lindo e emocionante e muito informativo. Depois de tantas turnês por países que falam espanhol, é muito bom poder soltar o sotaque brasileiro no rádio e ser compreendido. Muita gente ouviu o programa e fez muitos elogios em relação a isso. Também gravamos um programa em português na Rádio 3. Depois partimos para um pocket show na Delia Records, sensacional loja de discos e acessórios no centro da cidade. Só cinco musiquinhas, mas já foi muito alto astral. Pra completar, um divertidíssimo passeio pelos bares de Madrid com Guiller e sua namorada Irantzu.
No dia seguinte, nosso show principal em Madrid, na Fun House, com abertura de Granada Perro Mojado e dos Sacramentos, excelente banda de Barcelona formada só por argentinos. Foi a loucura de sempre. Eu e minha guitarra levamos um banho de cuba libre. O povo se se esbaldou e dançou loucamente.
No dia seguinte, entramos na van para o show em Cox, em Alicante, na casa TNT Blues, que estava fazendo aniversário de 27 anos. Pra comemorar, os Autoramas junto com o grande duo espanhol Los Bengala. Excelente banda (se eu fosse você, iria conferir os videos deles no YouTube!). O lugar estava entupido. Já começamos o show e o povo já foi à loucura. Caíam um monte de copos pelo chão – depois de tocar só íamos sentindo o vidro sendo pisado por nossos sapatos. Até Érika fez um crowdsurfing lendário. O povo a tirou do palco e quando vi ela já estava lá longe.
No domingo, partimos para belíssima cidade de Granada meio ressaqueados. O show foi no Planta Baja e mesmo num domingo o povo pirou. No dia seguinte, segunda-feira, fizemos turismo pela lindíssima Granada, fomos a Alhambra, castelos mouros, lugares onde o Joe Strummer frequentava. Só coisa linda. O hotel onde ficamos também merece menção especial, com decoração espanhola ultratradicional. Parecia coisa de filme. À noite partimos para Sevilla, onde também fomos tocar pela primeira vez. Nos hospedamos num hotel que fica dentro do alojamento das seleções espanholas de remo e canoagem. O restaurante também era destinado aos atletas, então aproveitamos a comida saudável da galera. Em Sevilla tocamos na Sala X e foi destruição total. Saiu uma resenha do show (cujo título era “Brasil, el país del Rock and Roll”) e recebemos elogios em que nos compararam aos Mutantes. Muita responsabilidade!
O antepenúltimo show foi na cidade de Valladolid, onde o merchandising que levamos começou a esgotar. Todos os LPs já tinham sido vendidos e as opções para o público começavam a ficar menores. É muito importante para as bandas em turnê na Europa levar e vender merchandising. No calor do final das apresentações, o povo compra mesmo. Em Valladolid, experimentei as clássicas Gambas com Gabardinas. Ki delícia! A comida na Espanha é um capítulo à parte.
Albacete era nosso penúltimo destino. Lá tocamos em uma casa chamada La Cachorra Ye-Yé. O técnico de som da casa também é dono de uma loja de instrumentos. Quando ele viu que estávamos vendendo minha série de pedais de efeito Vibratoramas e Fuzzoramas, nos chamou para ir até sua loja, comprou alguns pedais e eles passaram a ficar à venda em lojas na Espanha.
Nosso último show na turnê seria no festival Surforama. Chegamos em Valencia na sexta, mas tocaríamos apenas no sábado. Na sexta rolaria o show dos lendários The Cynics e não marcamos nada nessa data para vê-los e curtirmos o festival. Foi uma escolha acertadíssima. Ki noite e ki banda! Sabe-se lá quando se pode ter a oportunidade de ver uma lenda dessas em ação. No sábado, eu ainda estava louco pra ver os mexicanos do Matorralman, que arrebentaram, e os Bomboras, clássico californiano da surf music reunido especialmente para esse festival. Agradeço muito ao Diego, organizador do festival, pelo convite, pois foi uma noite memorável. Entramos depois do Matorralman e a galera respondeu já nos primeiros acordes. A energia foi tão intensa que ao final do show parecia que eu tinha corrido uma maratona. O vídeo do final ilustra bem como foi. Todos diziam que foi o melhor show do festival e vendemos TUDO que havia de merchandising. Voltamos com uma mala que só não veio vazia por causa das compras que fizemos nos dois dias de folga que tivemos em Madrid com nossos queridos Guiller e Irantzu.
Logo chegamos ao Brasil e no dia 15 de junho já arrebentamos no Cerrado Fuzz Festival, em Rondonópolis, Mato Grosso…
Que delícia de leitura!
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