Music

David Byrne – ao vivo

Trazida ao Brasil antes de quase todo o resto do mundo, nova turnê eleva o ex-Talking Heads ao panteão dos maiores gênios da arte contemporânea

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Texto por Abonico R. Smith

Foto de iaskara

Foram catorze anos sem lançar um trabalho solo – shows, músicas e álbuns feitos neste intervalo de tempo foram em parceria com Fatboy Slim, Dizzee Rascal, Brian Eno e St Vincent. Até que neste início de março o silêncio musical de David Byrne foi interrompido. E em grande estilo, com um novo disco (American Utopia) e a turnê mais ambiciosa de sua carreira. São quase cem datas marcadas e uma megabanda composta por onze músicos de apoio.

Depois de apenas uma semana, Byrne interrompeu a turnê pelos Estados Unidos para já dar uma escapada rumo ao Brasil (Porto Alegre, São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte) que ele gosta tanto, com uma pequena adição de outras capitais sul-americanas (Montevidéo, Buenos Aires, Santiago). Privilégio nosso. Afinal, quase antes do que todo mundo – sobretudo as grandes cidades norte-americanas e os países europeus – nós pudemos vê-lo em ação no palco. E que sorte! Afinal, esta não é somente uma turnê convencional de um show convencional de música pop.

Para começar, Byrne fez o que ninguém havia pensado (ou, ao menos, se arriscado a faze até agora: ele descontruiu a ideia de uma banda de rock. Para começar desmembrou os kits de bateria e percussão e dividiu os instrumentos para serem tocados, um de cada vez, por seis pessoas (sendo três brasileiros, que chegam a tocar três berimbaus de uma vez só). A eles somou outros cinco (baixista, guitarrista, tecladista, um casal de backing vocals). À frente desta turma David ainda aplicou uma segunda ideia de desconstrução: a de posições fixas no palco. Cada músico carrega o próprio instrumento no corpo, assim como um microfone grudado à cabeça para que todos também possam engrossar os coros.

Isto leva à primeira das palavras-chave da atual turnê de David Byrne: mobilidade. O que justifica uma boca de cena completamente vazia, ausente de pedestais, amplificadores, praticáveis. O que leva a um incrível trabalho de precisão na coreografia criada para cada músico em cada uma das 21 músicas que compõem o set list da turnê. Isto é, uma verdadeira comissão de frente tirada das avenidas do samba e levadas a teatros e festivais. Isso tudo também facilita a inclusão de um trabalho de cenografia minimalista/iluminação artística, com direito a lâmpadas móveis e estrategicamente colocadas no palco para fazer um belíssimo jogo claro/escuro e o uso do reflexo de sombras gigantescas como novos personagens durante a encenação.

Por ser uma apresentação extremamente ágil, com os doze músicos no palco cantando, dançando e se movendo toda a hora, a resposta positiva do público é imediata. Em Curitiba, no show realizado em plena noite de segunda-feira (quando nada acontece na cidade inclusive até postos de combustível e restaurantes ficam fechados), Byrne quebrou todo o protocolo solene do Teatro Positivo. Bastou apenas um punhado de músicas para toda plateia se levantar e dançar. Logo todo mundo correu para a frete do palco, causando a maior concentração de pessoas não-sentadas, pulando e dançando freneticamente já vistas em um evento no local. Como diz a lei da ação e reação que todos nós aprendemos nas aulas de Física no colégio, a alegria que contagia bate e volta. Então, é impossível deixar de se contagiar de novo com a alegria (a segunda palavra-chave!) estampada nos olhos e bocas de Byrne e sua trupe.

Criatividade, a terceira palavra-chave, está acima de tudo no atual turnê de David Byrne. Ele não se prende apenas ao território da música e expande a apresentação para outras expressões artísticas. Ali se cruzam dança contemporânea, moda (o que são os ternos-uniforme azul-acinzentado especialmente construídos com um artifício secreto para poder movimentar sem dificuldade os braços?), artes visuais, literatura (a ordem do set desenha toda uma história, sem falar nos poemas canto-falados resgatados dos tempos de Talking Heads), teatro (o início é marcado por um cérebro apresentado pelo frontman sentado atrás de uma mesa no meio do palco) e performance (com direito a dribles e uma bola de futebol rolando de um lado a outro do palco durante o bis).

Por falar no repertório, o set list se equilibra em um tripé. As doses são iguais. Da antiga banda do vocalista não vieram as faixas mais populares, mas aquelas bastante percussivas e com melodias que permitem o vocal em coros, cantos e contracantos, no melhor estilo “todo mundo” – aliás, o nome da atual pessoa jurídica (selo, produtora) de Byrne. Do álbum American Utopia, que nada deia a dever a outros cultuados discos lançados nos anos 1970, 1980 e 1990. Da somatória de outros trabalhos anteriores seus mais covers escolhidas a dedo, como “Toe Jam” (gravada em 2010 pelo coletivo Brighton Port Authority, do qual o artista também fez parte) e “Hell You Talmbout” (grito de protesto de Janelle Monáe contra o assassinato “nunca devidamente explicado” de negros, por parte do poder e de policiais nos Estados Unidos). Durante a passagem pelo Brasil, nesta última canção, estrategicamente reservada para o “bis do bis” e executada pelos onze coadjuvantes com o acompanhamento de apenas instrumentos de percussão, os nomes dos negros americanos foram trocados por vítimas brasileiras. Teve Amarildo no meio e, claro, Marielle Franco começando e encerrando a lista, sendo gritada a plenos pulmões pela banda toda. O adjetivo comovente é algo raso para descrever o impacto provocado disto na plateia.

Findada “Hell You Talmbout”, com a saída dos dez artistas do palco, restou apenas a impressão de que David Byrne não precisa e nunca precisou se apoiar na muleta dos Talking Heads em sua carreira solo. Como todo respeito aos sus três ex-companheiros da banda da geração punk nova-iorquina que ajudou a projetá-lo para a fama mundial, mas Tina Weymouth, Jerry Harrison e Chris Frantz nunca passaram de apenas ótimos instrumentistas, um apoio para a genialidade entregue por Byrne através de palavras, trabalhos visuais e demais ideias trazidas para cada trabalho da antiga banda. Mais do que uma “cabeça falante”, o vocalista e guitarrista era a verdadeira “cabeça pensante” do quarteto. Grandes músicos – como todos que o acompanham nos dias de hoje – são importantes para a criação sonora mas não respondem por todo o conceito de arte. E o escocês radicado desde a infância em Nova York sempre foi muito além da música. A turnê de American Utopia prova isso: David Byrne faz arte contemporânea em cima de um palco. Existe alguém capaz de duvidar disso?

Set List: “Here”, “Lazy”, “I Zimbra”, “Slippery People”, “I Should Watch TV”, “Dog’s Mind”, “Everybody’s Coming To My House”, “This Must Be The Place (Naïve Melody)”, “Once In A Lifetime”, “Doing The Right Thing”, “Toe Jam”, “Born Under Punches (The Heat Goes On)”, “I Dance Like This”, “Bullet”, “Everyday Is A Miracle”, “Like Humans Do”, “Blind”, “Burning Down The House”. Bis 1: “Dancing Together”, “The Great Curve”. Bis 2: “Hell You Talmbout”.

Music

Depeche Mode – ao vivo (parte 3 e final)

Apesar da forte chuva, turnê sulamericana termina em grande estilo e prova que catarse, a partir de agora, tem nome e sobrenome

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Textos de Edi Fortini e Fábio Soares

Fotos de Edi Fortini

Comprar ingressos com um ano de antecedência, esperar cinco horas debaixo de chuva e deslocar-se do outro lado do país em plena terça-feira são algumas das loucuras que alguns fãs fizeram para compensar a dor de aguardar por 24 anos para finalmente ver sua banda favorita no Brasil.

Os dias que antecederam o show de 27 de março de 2018 tiveram umas 50 horas. Mas deu tempo de conhecer gente na internet, trocar dicas e montar grupos, comprar souvenires, fazer vários planos para o grande momento. De Manaus até Rio Grande do Sul, vários fãs de todo o país (e de outros) vieram para prestigiar uma das bandas mais influentes da história da música. A noite tinha tudo para ser especial. E foi.

Em março do ano passado, quando foi anunciada a perna sulamericana da turnê Global Spirit, divulgando o mais recente álbum do Depeche Mode, uma comoção tomou conta dos devotos dos britânicos. E arrisco a dizer que a meia-noite do dia primeiro de janeiro de 2018 veio acompanhada de um “Ufa, agora só são mais três meses até o show!”.

Como nada vem fácil para apaixonados, uma chuva fortíssima caiu perto da hora de abrir os portões do estádio do Allianz Parque, na zona oeste de São Paulo, alagando alguns pontos da cidade e dificultando o acesso de muita gente. Mas nada daquilo parecia importar muito ao semblante dos que chegavam. Apenas havia um sorriso gigante da realização de um desejo antigo.

As horas que antecederam o show tiveram uns 97 minutos. Era difícil de conter a emoção, mas os fãs seguiram firmes com suas capas de chuva, que insistia em nos castigar. Mas o sangue de São Gahan tem poder: às 21h45 em ponto, foi só o vocalista aparecer no palco, logo após a intro de “Revolution”, dos Beatles, que a chuva finalmente começou a dar trela, quase que definitivamente assim que a banda iniciou sua performance com “Going Backwards”. Incrível! O momento radiante finalmente acontecia. Era real. Dave Gahan, Martin Gore e Andrew Fletcher finalmente estavam ali, em solo brasileiro, com uma energia incrível na frente de mais de 20 mil pessoas. Além do trio, também estavam com a banda Peter Gordeno (teclado e baixo) e Christian Eigner (bateria).

A noite seguiu com “It’s No Good” e “Barrel Of A Gun” e, nesta altura, o público já estava mesmerizado e completamente entregue ao show. Foi só conduzir a multidão, coisa que Gahan sempre fez com extrema maestria. Os adjetivos para descrever o show, aliás, não acabam: arranjos cativantes, projeções fortíssimas, simpatia estonteante. Logo nos primeiros minutos, banda e público eram uma só entidade, expressando o mais sublime poder da música.

Alguns dos destaques da noite ficaram com as músicas cantadas pelo Martin Gore. “Home” ficou belíssima ao vivo. “Insight” e “Strangelove” também tornaram-se poderosas e arrancaram muitas lágrimas de muitos fãs à nossa volta. “Precious”, “Useless”, “Strangelove” foram algumas das músicas incluídas na turnê recentemente e o set list se manteve o mesmo dos últimos shows nos outros países vizinhos. Obviamente não vai agradar a todos e realmente é difícil montar um repertório perfeito com mais de 30 anos de carreira, mas os fãs do álbum Ultra, de 1997, ficaram bem satisfeitos, pois ouviram cinco músicas na noite. Não reclamamos.

Entre um set com músicas ora sensuais ora românticas, o grito por mudança era claro: Depeche Mode é também uma banda muito politizada e às vezes o faz inclusive em ambas ocasiões como em “Stripped” (“Let me hear you/ Make decisions/ Without your television”), ou em “Going Backwards” e “Where’s the Revolution”. Eles clamam por revolução e só nos resta esperar que os fãs ouçam! O trio tem feito muitas ações para mudar a situação precária que o mundo se encontra atualmente – como na campanha “charity: water” que ajudou a fornecer água segura e limpa para mais de 30 mil pessoas no Nepal e na Etiópia. E ficou o recado bem claro de Gahan: “The train is coming. So get on board”. Vamos juntos? (EF)

***

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São Pedro acordou num mau humor desgraçado na última terça-feira (27 de março) em São Paulo. Castigou a cidade sem dó com uma chuva torrencial e constante, horas antes do último show do Depeche Mode da perna latino-americana da Global Spirit Tour. Cheguei com meus amigos na fila para a entrada por volta das 16h, com previsão de abertura dos portões para às 17h30. Pouco tempo depois, o tempo fechou e o “pau cantou” em matéria de chuva. Por mais de uma hora sofremos com o temporal que devastou a Zona Oeste na tarde de terça. Ponto negativo para a organização do evento, porque ninguém iria morrer se os portões fossem abertos meia hora antes do previsto. Percalços à parte, conseguimos um bom lugar, junto à grade.

Muito bacana comprovar que fãs de outros estados brasileiros vieram a São Paulo especialmente para o concerto. Conhecemos Gina e Lemirtes, que vieram de Brasília, mais uma garota de Goiânia. A maioria estava ali porque sabia que, dificilmente, Gore, Gahan e companhia voltarão ao Brasil novamente. A chuva, no entanto, não dava trégua. Ia e voltava, ia e voltava, num aporrinhamento muito chato. Só queera um show do Depeche! E vamo que vamo!

Às 19:45h, Gui Boratto abriu os trabalhos na arena do Palmeiras. Nome consagrado na cena eletrônica, botou todo mundo pra dançar sob a chuva que caía. Set denso, pesado e adequado para o aquecimento. Findada a abertura, a atmosfera na Allianz Parque se acentuava. Como esperado, o espaço não lotou mesmo com a capacidade reduzida para 25 mil pessoas. Normal. Assim, como Santiago e La Plata, o Depeche fez jus à sua pontualidade britânica e pontualmente às 21h45 os acordes de “Revolution”, dos Beatles, foram ouvidos nos alto-falantes. Era a deixa para a introdução de “Going Backwards”, primeira do set list que nenhuma alteração sofreu nos concertos da América Latina da turnê.

Após o caos registrado na Argentina três dias antes e às vésperas de desfrutar um merecido período de férias de dois meses, a banda mostrou-se relaxada durante os 120 minutos de espetáculo. Dave permanece como símbolo da identidade visual e performática do Depeche Mode. Com preparo físico invejável e sem parar um único segundo, não é exagero algum afirmar que o veterano frontman é um Mick Jagger à sua maneira: fará 60 anos, 65, 70 e continuará com a mesma jovialidade, sensualidade de energia em sua performance. Com relação a Martin Gore, ficar posicionado bem em frente ao ponto em que ele ficou posicionado no palco, causou-me emoção diferenciada. O cara que admiro há trinta anos bem ali, à minha frente. Um gênio contemporâneo dos sintetizadores. A mente cerebral por trás da máquina. Se tivesse a oportunidade de conversar com ele por um minuto, inicialmente perguntaria; “Quer dizer então que você criou o Céu e a Terra em sete dias? Como foi esse processo de criação?”.

Com relação ao público, o brasileiro superou, em muito, o chileno e argentino. Sintonia total com a banda – afinal, foram 24 anos de espera pela volta do ícone. “World In My Eyes”, “Everything Counts”, “Enjoy The Silence” e a para sempre antológica “Never Let Me Down Again”, ganharam contornos de catarse. Vi muita gente emocionada com o que via. Vi sorrisos mil serem distribuídos a torto e a direito. Vi a concretização do sonho de muitos (eu, inclusive) de ver de perto a banda que marcou nossas vidas. O símbolo máximo de um universo atemporal sem paralelos. O expoente máximo de um estilo musical que foi criado por eles, para eles e para nós, fiéis escudeiros e devotos desta religião chamada Depeche Mode.

A partir desta quarta-feira a vida voltou ao normal e não mais teremos o Depeche entre nós. E agora? (FS)

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Set List: “Going Backwards”, “It’s No Good”, “Barrel Of A Gun”, “A Pain That I’m Used To”, “Useless”, “Precious”, “World In My Eyes”, “Cover Me”, “Insight”, “Home”, “In Your Room”, “Where’s The Revolution”, “Everything Counts”, “Stripped”, “Enjoy The Silence”, “Never Let Me Down Again”. Bis: “Strangelove”, “Walking in My Shoes”, “A Question Of Time” e “Personal Jesus”.

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Jogador Nº 1

Steven Spielberg celebra o cinema pipoca que ajudou a inventar com filme-videogame que celebra a vasta cultura nerd criada nas últimas décadas

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Texto por Abonico R. Smith

Foto: Warner/Divulgação

A) Leitura superficial

Depois de ser o caçula da turma do cinema marginal que transformou Hollywood entre as décadas de 1960 e 1970, Steven Spielberg se transformou no grande Rei do cinema pipoca. Depois de E.T. – O Extraterrestre (1982), volta e meia ele tem entregue para a plateia de gosta de entretenimento com qualidade uma série de filmes juvenis de ação exatamente isso: histórias magníficas que despertam o teenager herói que existe na alma de cada um.

Com Jogador Nº 1 (Ready Player One, EUA, 2017 – Warner), adaptação do livro escrito por Ernest Cline, não é diferente. Em um futuro distópico não muito distante de nós (a trama se passa no ano de 2045), as pessoas regulam a sua vida inteira de de acordo com a realidade virtual. Tudo o que é feito gira de acordo com a percepção fornecida por uma geringonça que, acoplada à cabeça, simula uma realidade que só existe graças à tecnologia. Ali você pode ser quem você quiser, viver como quiser, fazer o que quiser, da maneira que quiser. E para os mais novos quem manda nesta second life é um mundo paralelo chamado Oasis, criado por um geek antissocial que já morreu e deixou como o legado não só a sua genialidade criativa como também uma espécie de desafio – um jogo com fases progressivas que dará a quem encontrar três chaves escondidas um tesouro mais do que especial: o controle majoritário das ações da empresa à qual pertence o Oasis. Isto significa não só a fortuna incalculável do excêntrico James Halliday (Mark Rylance, em mais uma excelente atuação sob o comando do cineasta) como também a possibilidade de fazer o que quiser e ser como quiser na realidade “de carne e osso”.

Então uma turma de adolescentes – amigos virtuais mas que nunca estiveram face a face – encabeça a corrida de três etapas para desvendar o intrincado quebra-cabeça criado por Halliday. À frente deste “videogame live action” estão o garoto Wade (Tye Sheridan) e a garota Samantha (Olivia Cooke), que, ao lado dos amigos, seguem toda a estrutura banal e corriqueira de um filme de ação deste tipo. Com direito a um supervilão a ser confrontado, claro. Nisto, o longa acaba prestando reverência a muitos dos populares videogames que tornaram-se itens cult da criançada e juventude das últimas quatro décadas.

No fim, chega a recompensa pelo esforço feito durante a jornada do herói, toda a tensão sexual vivida entre eles se dissipa do modo mais shipado possível e todos acabam felizes para sempre. Personagens e espectadores. Como em toda e qualquer Sessão da Tarde, elevada à categoria de blockbuster depois que a assinatura de Spielberg tornou-se grife nos anos 1980. E ainda há uma liçãozinha de moral na última cena.

B) Leitura intermediária

A história bolada por Cline (que também assina como um dos roteiristas) e levada às telas por Spielberg faz uma critica atroz à dependência tecnológica viva pelos seres humanos nas últimas décadas. Nada do que é feito sem as máquinas tem qualquer importância. O que vale mesmo é o que é vivido através de nossos avatares, sempre ligados, conectados e ávidos pelo consumo imediato de qualquer informação zero um que vier pela frente.

O mundo pode estar na maior decadência – aliás o conceito steampunk de favela apresentado logo no início é de um assombro visual só. A nossa vida pode estar na mão de megacorporações – uma delas é justamente comandada pelo principal antagonista da trama. Tais empresas gigantes como esta IOI (Innovative Online Industries) travestem seus reais objetivos através de “espelhinhos mágicos dados aos índios para eles se verem pela primeira vez”. Estão interessada apenas em rios de grana e seguir a velha cartilha capitalista de escravizar e sugar o sangue de seus funcionários, transformados em servos lobotomizados.

Cabe, porém, a qualquer ser humano decidir até onde vai a extensão tecnológica de sua reles vidinha mortal. E distinguir as reais vantagens e desvantagens de todo e qualquer negócio novo que é ofertado.

C) Leitura profunda

Além de ser uma bela homenagem à cultura pop dos anos 1980 para cá, Jogador Nº 1 é um megafestival de easter eggs proporcionados não só pela muleta do mundo virtual no qual os personagens passam a maior parte do tempo da trama, como também nas poucas cenas em que o espectador os vê em suas próprias vidas. Seja em primeiro plano na narrativa ou secretamente escondidos durante a história, o que rola nas quase duas horas e meia de projeção é uma torrente de referencias a jogos, filmes, quadrinhos, animes, cartoons e personalidades que construíram o universo nerd que hoje dá as cartas na indústria mundial do entretenimento. Até mesmo as canções pop parecem ter sido escolhidas a dedo para pontuar com seus versos a temática de determinadas cenas.

Como a grande brincadeira de um easter egg é achar pistas escondidas pelos criadores no meio de sua criação, nem vale a pena ficar citando estas referências. A graça é justamente a de ficar atento para encontrá-las na hora em que elas aparecem. O que pode mostrar o grau de nerdice que existe em cada espectador e depois ficar discutindo e apresentando aos amigos que não perceberam o que você já descobriu. Outro estímulo desses easter eggs (bingo para a indústria, aliás!) é estimular a mesma pessoa a consumir várias vezes o mesmo produto. Só isso vai garantir ao filme uma bela bilheteria ao longa nos cinemas de todo o mundo e depois sua sobrevida nos formatos e suportes posteriores.

Toda esta questão faz de Jogador Nº 1 um filme bastante excitante a quem não se prende pelo fascínio visual de videogame/tecnologia de última geração que gruda nas telas tanto os olhos dos mais novinhos como os gamers viciados e convictos. Amantes inveterados da cultura pop em seus mais variados níveis não correm o menor risco de se decepcionar com a história, já que este jogo criado por Cline e Spielberg também foi feito a el@s.

E viva à diversidade, celebrada, aliás, desde o início da história. Racial, social, étnica, sexual e – por que não? – nerd e geek.

Music

Depeche Mode – ao vivo (parte 2)

Apagão faz a banda transformar o caos em luz e promover uma comunhão quase religiosa com os fãs na Argentina

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Texto por Fábio Soares

Foto: LMNéuquen/Reprodução

Chegar ao Estádio Único de La Plata traz duas certezas: demorou muito para a Argentina seguir uma tendência mundial e finalmente ter sua arena multiuso e, de agora por diante, dificilmente grandes nomes internacionais farão shows em Buenos Aires por uma questão de economia. O único local na capital portenha a abrigar concertos com 50 mil espectadores é o Monumental de Nunez, casa do River Plate que, por sua vez, cobra um aluguel altíssimo por sua utilização. O U2 já se apresentou na arena de La Plata em outubro do ano passado e, no último sábado, foi a vez do Depeche Mode.

Coberto em quase toda a sua extensão, o Estádio Único deu uma expectativa de melhor acústica para o show, comparando-se com o de Santiago, um local aberto. Tinha tudo para ser uma grande noite. Os argentinos prepararam-se como nunca para este 24 de março de 2018. Há um ano já era grande a ansiedade nas páginas portenhas dedicadas à banda. O publico, que aos poucos lotava a arena, era quase uniforme: faixa etária entre 35 e 45 anos, sendo que muitos levaram seus filhos pequenos ao show. Indícios de uma noite perfeita que viria.

Às 19h15, Juliana Molina – artista local escalada para a abertura – pisou no palco. Sua influência é escancarada demais: Cocteau Twins do início de carreira, com experimentações eletrônicas a dar com o pau e uma batida marcial de bateria. Mistura que me agradou mas que teve recepção fria por parte dos fãs depecheiros. Ela deixou o palco cinquenta minutos depois, aumentando ainda mais a expectativa pelo grande nome da noite. A atmosfera de ansiedade no ar estava a mil. Nove anos de espera próximos do fim. Um sonho para os portenhos.

Assim como em Santiago, a introdução de “Revolution”, dos Beatles, começou a ser executada pontualmente às 21h, seguida dos primeiros acordes de “Going Backwards”. Quando a figura de Dave Gahan surgiu no palco, o êxtase foi total. Voz poderosa, expressão corporal idem e evidenciada ainda mais no início de “It’s No Good”, segunda canção do imutável set list que a banda oferece à América Latina. Dave Gahan, a cada ano que passa, reafirma sua posição como um dos maiores frontmen da história: preparo físico invejável, gestual longo e elegante, vocal visceral e marcante. Com a plateia em êxtase, tudo caminhava para mais uma apresentação coesa e sólida do Depeche Mode. Entretanto, foi aí que tudo começou a desandar.

No início de “Barrel Of A Gun”, terceira canção da noite, uma pane generalizada fez com que os três telões do palco (dois laterais e o maior, localizado no centro) se apagassem completamente. Situação semelhante em “A Pain That I’m Used To” e “Useless”. O que parecia ser apenas passageiro tornou-se permanente. O desconforto foi geral. A banda, porém, continuou com a apresentação e o que se viu dali por diante foi algo raro: o estádio todo às escuras, excetuando-se a escassa iluminação de palco. Dave continuava com sua performance acrobática, dando tudo de si. Martin Gore, por sua vez, destilava toda sua genialidade a cada canção que se seguia. Diante do apagão, o público (sobretudo nas arquibancadas) viu-se obrigado a se adaptar. O show deixava de ser visual para tornar-se puramente auditivo.

Somente em “Home” (oito canções após o apagão) o telão central foi restabelecido causando comoção no estádio. Comoção esta que foi ampliada pela sempre emocionada interpretação de Martin Gore à uma de suas mais brilhantes composições. Em “Where’s The Revolution” (décima segunda canção de um set list de vinte) os dois telões laterais foram restabelecidos embora o central tivesse sido desligado. Tudo estava longe do ideal mas, àquela altura do campeonato, qualquer imagem transmitida aos fãs – sobretudo os que se encontravam na pista comum – era válida.

Mas… santa ilusão temporária, Batman! Dois minutos depois, os telões voltaram a se apagar para nunca mais voltarem. O que se viu dali por diante foi algo comovente. Percebendo que a vaca já havia ido de vez para o brejo, a banda concentrou-se em dar ao público presente no estádio o melhor show possível apesar das precárias condições. O refrão de “Everything Counts”, cantado a capella pela plateia completamente às escuras, foi algo que não sairá de minha memória tão cedo. Em “Never Let Me Down Again”, o “mar de braços” tomou diferentes contornos no completo breu instalado.

Como num teatro grego, o Depeche Mode usou a melhor e mais potente arma que possuía para combater o caos: seu próprio repertório. Um mundo de possibilidades sonoras capaz de hipnotizar qualquer platéia. Uma dominação sensorial que durou até o fim da primeira parte e que se estendeu pelo bis, com Martin Gore mais uma vez emocionando a audiência em sua interpretação de “Strangelove” somente com voz e piano. Na penúltima canção, “A Question Of Time”, a platéia pulou como nunca desde os primeiros acordes. Já a derradeira, “Personal Jesus”, trouxe o que todos já esperavam: um final apoteótico para uma noite desastrosa em que toda a experiência de uma banda com 37 anos de estrada fez toda a diferença.

Sabotado, caótico e dramático, como todo tango argentino deve ser. Querendo ou não, o concerto do Depeche Mode em La Plata já marcará a história da banda como um dos maiores, em se tratando de carga emocional. Já marcou a minha também. Demorarei ainda muito tempo para definir o que vi em La Plata neste 24 de Março. Uma das bandas de minha vida em uma comunhão quase que religiosa com seu público. Uma troca sensorial emocionante que somente a arte pode oferecer.

Set List: “Going Backwards”, “It’s No Good”, “Barrel Of A Gun”, “A Pain That I’m Used To”, “Useless”, “Precious”, “World In My Eyes”, “Cover Me”, “Insight”, “Home”, “In Your Room”, “Where’s The Revolution”, “Everything Counts”, “Stripped”, “Enjoy The Silence”, “Never Let Me Down Again”. Bis: “Strangelove”, “Walking In My Shoes”, “A Question Of Time” e “Personal Jesus”.

Music

Depeche Mode – ao vivo (parte 1)

Aos pés da cordilheira chilena, uma festa privê no primeiro show sul-americano da Global Spirit Tour

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Texto por Fábio Soares

Foto: HumoNegro.com/Reprodução

Nem parecia que o Depeche Mode estava na capital chilena. Dois dias antes da apresentação, nenhum cartaz ou anúncio de rua anunciava o concerto. O mesmo acontecia com as rádios e canais de TV abertos. Nenhuma menção, nenhum comentário, nada. Eu e três amigos depecheiros nos hospedamos no bairro da Bella Vista, tradicional ponto boêmio de Santiago, esperando por uma legião de devotos locais assim como outros egressos de países vizinhos. Somente no final da tarde de terça-feira, véspera do show, encontramos no alto do Cerro San Cristóbal (tradicional mirante da cidade) oito “gatos pingados” devidamente uniformizados com camisetas da banda e eles eram… argentinos. Sim, como previsto, hermanos sairam de Buenos Aires e cercanias para o show em Santiago e a expectativa era grande. “Estávamos no show de Buenos Aires em 2009. Nove anos de espera, é muito tempo”, disse um deles. Informei-o que, no meu caso, são vinte e quatro anos de espera, tendo em vista que em 2009 (mesma turnê que passou por BsAs) a banda cancelou o show marcado para o Anhembi. Entre nós, porém, um consenso: a certeza de que a Global Spirit Tour será o último giro mundial do Depeche Mode. Quem vir agora viu.

Chegou a quarta-feira (21 de março) e, com ela, um calor e ar seco quase que insuportáveis em Santiago, como esperado. O Estádio Nacional, localizado aos pés da Cordilheira dos Andes num bairro estritamente comercial, é grande, antigo e com alguns problemas estruturais. Nada, porém, que comprometesse. Ponto negativo para a retirada dos ingressos comprados pela internet: era necessário caminhar quase dois quilômetros até a bilheteria do velódromo (parte integrante do complexo poliesportivo da “cancha”) para pegá-los. Falhas à parte, a logística do staff local funcionou muito bem. Nada de filas nos banheiros ou lanchonetes. Bebi apenas água, porque, em experiência anterior há três anos, comprovei que as cervejas chilenas são horríveis. Da arquibancada lateral, onde ficamos, era possível se ter boa visão do palco. Pouquíssima movimentação até às 20h, quando começou o show de abertura: Matias Aguayo, desagradou metade do estádio mas agradou, em muito, a mim. Sua mistura de drum’n’bass com bases obscuras e com clara referência ao gótico dos anos 80 fez com que eu passasse a acompanhá-lo nas plataformas digitais.

Às 21h, os acordes de “Revolution”, dos Beatles, entoaram no alto-falante. Pano de fundo para a introdução de “Going Backwards”, fez com que o estádio quase viesse abaixo assim que Dave Gahan pisou no palco. Às vésperas de completar 56 anos de vida, o vocalista está mais em forma que nunca, não parando um segundo sequer, com uma performance que impressiona. Já Martin Gore ratifica o rótulo de gênio por trás da máquina: é impecável na execução dos arranjos e somente sua presença no palco já vale o ingresso. Andrew Fletcher, entretanto, reforça o coro de ser o boneco de Olinda da banda. Segundo meus amigos Ricardo e Priscila, que me acompanharam nesta empreitada, seus teclados devem estar desligados em todos os shows, tamanha sua inoperância e falta de atitude em cena.

Voltando ao show: o álbum Ultra, de 1997, é o mais privilegiado do set list com cinco canções: “It’s No Good”, “Barrel Of A Gun”, “Insight”, “Home” e “Useless”. “Cover Me”, “Precious” e “A Pain That I’m Used To” foram escolhas mais que adequadas, mesmo eu sentindo falta de “Policy Of Truth”. Não há variação na lista das execuções nos shows da perna latino-americana da turnê, o que não chega a ser um demérito.

O repertório do Depeche Mode propicia um leque de opções quase que infinito à banda para montagem do set. Em certo momento da apresentação, Dave Gahan convidou: “Santiago, você está pronta para o passado?”. Era a deixa para uma viagem no tempo para ninguém botar defeito: “World In My Eyes”, “Everything Counts”, “Stripped” e “Enjoy The Silence” são os vagões de um trem emocional que leva os fãs mais antigos às lágrimas (eu, inclusive) e prepara o terreno para, a cada vez, antológica execução de “Never Let Me Down Again”. A hipnose e histeria coletiva que esta canção causa é impressionante. Maravilhosa foi a visão de 30 mil pessoas chacoalhando seus braços da direita à esquerda num momento inesquecível.

Dos vídeos da turnê que estão no YouTube, não havia gostado da execução de “Strangelove” com piano e voz. Minha opinião, porém, foi mudada ao presenciá-la ao vivo: Martin Gore, pai da criança, a executa como ninguém. Muita emoção em sua voz ao entoá-la. Emoção esta, que o estádio inteiro sentiu (eu, inclusive, novamente). “Personal Jesus” veio para encerrar os trabalhos. À esta altura, uma mistura de êxtase e respeito permeava a atmosfera do Estádio Nacional. É um “final de balada de véio” cantada em uníssono. Duas horas de devoção a este expoente gigantesco de um estilo musical criado por eles mesmos. Assisti-los ao vivo é, acima de tudo, presenciar um fato histórico.

Set List: “Going Backwards”, “It’s No Good”, “Barrel Of A Gun”, “A Pain That I’m Used To”, “Useless”, “Precious”, “World In My Eyes”, “Cover Me”, “Insight”, “Home”, “In Your Room”, “Where’s The Revolution”, “Everything Counts”, “Stripped”, “Enjoy The Silence”, “Never Let Me Down Again”. Bis: “Strangelove”, “Walking In My Shoes”, “A Question Of Time” e “Personal Jesus”.