Music

Arnaldo Antunes + Vitor Araújo

Oito motivos para você não perder a chance de ver ao vivo o show em conjunto do cantor e compositor paulista e o pianista pernambucano

Texto por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Fevereiro de 2020. Mês de lançamento do décimo segundo álbum de estúdio de Arnaldo Antunes. O Real Resiste, como diz o próprio título (além dos versos que compõem a letra da faixa que o batizou, servia como um contraponto para o autor. Sob um clima de meia-luz, harmonizando teclas e cordas e dispensando a parte rítmica de percussão e bateria, era um pretexto para uma retomada de ar de toda a loucura na qual o país mergulhara no ano anterior, com todos os bichos escrtos que saíram dos esgotos sob o comando do inominável presidente.

Mas eis que veio a pandemia da covid e o Brasil parou. O mundo parou. Isolamento radical e a mais completa falta de possibilidade de seguir em frente no meio artístico e cultural. Arnaldo foi pego em cheio por este tsunami planetário. Estava preparado para estrear a turnê que divulgaria e espalharia por diversas cidades o disco novo. Ainda mais porque a empreitada traria uma novidade: em vez de estar acompanhado por uma banda no palco, haveria apenas um músico ao seu lado. E não qualquer músico. O escolhido havia sido o pernambucano Vitor Araújo, enfant terrible dos pianos, que alguns anos atrás despontara como uma grande revelação da música brasileira ao se propor a experimentar novos caminhos e sonoridades em seu instrumento, indo além da convencional exploração das teclas pretas e brancas com os pedais.

O novo show virou apenas lives (Sesc Pompeia, Inhotim) e gravação para documentários (Arnaldo 60). O entrosamento estava tão grande, porém, que Arnaldo voltou para o mesmo estúdio situado em uma fazenda do interior de São Paulo, levando Vitor para criar mais um disco. De lá saíram nove faixas (algumas inéditas, outras já lançadas antes por Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Itamar Assumpção, Titãs e o próprio Arnaldo em carreira solo) registradas  no período de uma semana. A temática compreende  as instabilidades emocionais tão pertinentes àqueles dias (distanciamento, saudade, comunicação ruidosa, fim de relacionamento) e a participação do jovem pernambucano não se limita à condição de mero coadjuvante musical. Vitor revela-se tão intérprete quanto Arnaldo, desdobrando o seu piano em muitas camadas e climas, dando a impressão de estar se ouvindo mais gente colocada ali no aquário do estúdio durante a gravação.

Aos poucos, depois do lançamento do álbum Lágrimas no Mar em setembro de 2021 (portanto, ainda naquele clima de incertezas vivido pelo lento arrefecimento do lockdown), Arnaldo e Vitor vão levando à estrada o show que a pandemia insistiu em adiar, agora com um repertório de canções ainda maior por conta do trabalho em conjunto. Nesta sexta, 17 de maio, é a vez de Florianópolis (clique aqui para mais informações sobre local, horário e ingressos). No sábado, a dupla se apresenta em Curitiba (clique aqui para mais informações sobre local, horário e ingressos). E o Mondo Bacana preparou abaixo oito motivos para você não perder a chance de assistir ao perfeito entrosamento entre Arnaldo Antunes e Vitor Araújo ao vivo.

Som do silêncio

Uma das ideias de Arnaldo ao apostar no formato de piano e voz ao vivo – ainda mais com as intervenções autorais de Vitor Araujo – foi justamente chamar a atenção para o momento das pausas. O intervalo, o interim, o pequeno espaço entre um som e outro, seja a sua voz ou de algum instrumento. Então, fazer a audiência poder desfrutar dos curtos instantes de silêncio também passa a ser um requinte que poder realçar o valor de uma canção – algo que seria quase impossível se estivesse ali com o vocalista uma banda inteira.

Piano autoral

A presença de um nome como Vitor Araújo significa perceber as canções – do próprio Arnaldo ou as releituras – de uma outra forma. O pernambucano assina o arranjo de todas as músicas para seu instrumento e se multiplica de uma forma pouco vista no terreno da música pop. Também apresenta ao gênero o piano preparado, que consiste na montagem de peças introduzidas entre as cordas, de modo que quando a pressão das teclas as fazem ressoar sejam produzidos efeitos sonoros inusitados e diferentes. Henry Cowell e John Cage são os principais nomes desta técnica.

Spoken word

Além da música, Arnaldo sempre foi bastante ligado ao mundo da poesia, chegando a fazer instalações e brincadeiras visuais com palavras e letras de canções para algumas exposições. Quase despido da instrumentação convencional da música pop, encontra um terreno ideal para injetar a leitura de alguns poemas entre uma música e outra do set list. Mas não espere que haja só a declamação por meio de sua voz. Vitor o acompanha criando efeitos e sonoridades que transforma tudo em um breve happening, tão visceral quanto o momento das harmonias e melodias.

Duas vezes Titãs

Claro que aqui não poderia deixar de ter a presença de faixas assinadas por Arnaldo para o repertório de sua ex-banda. A tensão da harmonia de “O Pulso” combinada à lista quase declamada de doenças e distorções do corpo e da mente é um dos momentos mais vibrantes do show. O arranjo elaborado por Vitor dá um novo gás à canção que sempre foi uma das favoritas dos fãs dos Titãs e foi muito bem recebida no resgate da recente turnê de reunião de seus integrantes da formação clássica. Já “Saia de Mim” tem as dissonâncias harmônicas das teclas de Araújo muito bem casadas com o vocal raivoso e gritado de Arnaldo, que parece expelir, na hora de cantar, as excreções corporais relacionadas em sua letra (suor, peido, vômito, escarro, espirro, pus, porra, sangue, lágrima, catarro). Tudo para chegar ao fim com a exclamação “saia de mim a verdade”.

“Fim de Festa”

Na releitura deste blues de pura fossa de Itamar Assumpção, Arnaldo e Vitor injetam um certo ar soturno, com a exploração de timbres graves (a linha contínua do baixo mais o vocal-tenor quase falado do paulista) e uma repetição mântrica propícia para o pernambucano criar alguns barulhos estranhos no arranjo, manipulando diretamente as cordas do piano no interior da cauda. Vale lembrar que o resgate da canção é mais uma referência ao período da pandemia, quando vários casamentos e namoros chegaram ao fim por conta justamente da incompatibilidade de gênios, modos e pensamentos reforçada pela intimidade extrema do isolamento social. Outra curiosidade: a gravação original veio outro disco criado em parceria entre São Paulo (Itamar) e Pernambuco (Naná Vasconcelos), lançado em 2004, um ano após a morte do cantor e compositor. O videoclipe oficial da faixa registrada em Lágrimas no Mar tem Rubi, neta de Itamar, fazendo a performance de dança.

“Manhãs de Love”

Composta por Arnaldo Antunes e Erasmo Carlos gravada pelo Gigante Gentil no álbum que leva justamente seu segundo apelido como título, em 2014. Faz parte do renascimento artístico do Tremendão, com uma sucessão de álbuns nos quais ele abriu seu leque de parceiros, indo bem além do costumeiro amigo de fé e irmão camarada Roberto Carlos. Este movimento fez com que o artista se aproximasse de uma nova geração de fãs, algo que continuou até a sua morte há dois anos. Faz dupla com “Fim de Festa” na cota de momento bluesy de dor-de-cotovelo neste trabalho parceira com Vitor Araújo. O piano, executado de modo mais tradicional, acentua a melancolia da letra.

Como 2 e 2

Composta por Caetano Veloso, gravada originalmente por Roberto Carlos e também bastante conhecida na voz de Gal Costa, a canção foi recriada por Vitor e Arnaldo para o álbum Lágrimas no Mar. Feita durante o período de maior repressão da ditadura militar no Brasil, sua letra expressa, recorrendo à matemática e alterando metaforicamente as suas certezas (e, claro, fazendo referência direta ao estado totalitário imaginado por George Orwell para o clássico livro 1984), a imprevisibilidade das coisas, seja na expressão dos sentimentos de qualquer pessoa ou mesmo na vida perante a uma sociedade que muitas vezes se transfigura no horror ao qual não desejamos para a gente. A manipulação da verdade – aqui, no caso de somar dois e dois e dar cinco como resultado – anda bastante em voga hoje em dia, em um mundo cheio de distorções provocadas por uma enxurrada diária de fake news, grande imprensa bastante tendenciosa e um bando de políticos que agem e dizem tudo de acordo com seus interesses e conveniências.

O Real Resiste

“Autoritarismo não existe/ Sectarismo não existe/ Xenofobia não existe/ Fanatismo não existe/ Bruxa, fantasma, bicho papão/ O real resiste/ É só pesadelo depois passa/ Na fumaça de um rojão/ É só ilusão, não, não/ Deve ser ilusão, não, não/ É só ilusão, não, não/ Só pode ser ilusão/ Miliciano não existe/ Torturador não existe/ Fundamentalista não existe/ Terraplanista não existe/ Monstro, vampiro, assombração/ O real resiste/ É só pesadelo depois passa/ Múmia, zumbi, medo/ Depressão, não, não/ Não, não/ Não, não, não, não/ Não, não, não, não/ Trabalho escravo não existe/ Desmatamento não existe/ Homofobia não existe/Extermínio não existe/ Mula sem cabeça, demônio, dragão/ O real resiste/ É só pesadelo depois passa/ Com um estrondo de um trovão/ É só ilusão, não, não/ Deve ser ilusão, não, não/ É só ilusão, não, não/ Só pode ser ilusão/ Esquadrão da morte não existe/ Ku Klux Klan não existe/ Neonazismo não existe/ O inferno não existe/ Tirania eleita pela multidão/ O real resiste/ É só pesadelo depois passa/ Lobisomem, horror/ Opressão, não, não/ Não, não/ Não, não, não, não/ Não, não, não, não”. Esta é a letra toda da canção criada durante o primeiro ano de desgoverno do inominável. É preciso dizer mais alguma coisa depois disso tudo?

Movies, Music

Back To Black

Cinebiografia traz um olhar terno sobre a fragilidade emocional de Amy Winehouse nos bastidores do mundo da música pop

Texto por Abonico Smith

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Amy Jade Winehouse dizia que gostaria de ser lembrada pelas pessoas como um grande alívio de cinco minutos, para que estas pudessem escutar sua voz nas canções e se esquecer dos problemas da vida por este instante. Não estava atrás de sucesso mercadológico como cantora: queria apenas se divertir e ser reconhecida pelo seu talento musical aliado ao serviço de instrumento para o sentimento alheio. Entretanto, a fama veio e também de modo enviesado. Ganhou vários prêmios (entre eles uma limpa de Grammy num mesmo ano), vendeu milhões de discos em todo o mundo e se transformou em principal objeto midiático de paparazzi e editores de tabloides sensacionalistas, que não se importavam em devassar, dia após dia, a sua problemática vida pessoal em fotografias e manchetes garrafais.

Depois de tanto batalhar pela carreira e atingir o auge para logo depois mergulhar em uma espiral de confusões e abusos, tentou se reerguer e ficar sóbria até 22 de julho de 2011. No dia seguinte, a tragédia: seu corpo foi achado em sua residência em Londres, depois de uma noite de recaída etílica. Amy Winehouse, então, juntava-se a nomes como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Brian Jones e Kurt Cobain no grupo dos grandes ícones da música jovem que morreram aos 27 anos de idade.

Já com o devido distanciamento temporal da ascensão e queda da cantora, chega aos cinemas a sua cinebiografia Back To Black (França/Reino Unido/Estados Unidos, 2024 – Universal Pictures). A seu favor, a diretora Sam Taylor-Johnson, que não é marinheira de primeira viagem em adaptação da vida pré-fama de ícones pop (ela assinou O Garoto de Liverpool, que mostra a adolescência de um John Lennon antes dos Beatles), conta com um recorte temporal favorável: das primeiras aventuras da teenager Amy nos palcos da região boêmia de Camden Town à fantástica noite em que arrebatou seis Grammy em 2008 (gravação do ano, álbum do ano, canção do ano, revelação, álbum pop com vocais e performance feminina pop com vocais) não se passou nem uma década. Portanto, um período perfeito para ser trabalhado no roteiro de duas horas assinado por Matt Greenhalgh, que, por sua vez, também tem experiência na equação cinema + música (fez o mesmo trabalho em O Garoto de Liverpool e Control: A História de Ian Curtis).

Marisa Abela tem a dura missão de encarnar Winehouse nas telas. E a faz com competência, inclusive emprestando sua voz a clássicos da cantora e imitando seus maneirismos gestuais de modo a fazer com que quem veja abstraia o fato de não ser a própria popstar ali em cena. Nas cenas de maior dramaticidade também passa com louvor, imprimindo uma Amy tão durona quanto insegura. Jack O’Connell, como o controverso namorado/marido Blake Fielder-Civil, é outro a cumprir bem o seu papel, imprimindo a rusticidade um tanto quanto ingênua que a  imprensa sensacionalista britânica sempre atribui à sua imagem de bad boy. No núcleo familiar da personagem principal, a avó Cynthia (Lesley Manville) e o pai Mitch (Eddie Marsan), ambos apaixonadíssimos por jazz, também ganham peso na narrativa, conferindo um tanto de apoio emocional e segurança à cantora desde o início da trajetória artística. Isso reforça o objetivo de Matt e Sam, que é focar em uma Amy Winehouse além das canções e da mídia, mostrando um lado que a maioria de seus fãs não chegou a conhecer – mesmo, no caso de Mitch, indo contra a opinião frequente de que muitas vezes ele atrapalhava a carreira da filha e exercia uma certa dose de vilania junto a ela nos bastidores.

O olhar terno de Taylor-Johnson sobre a fragilidade emocional de sua protagonista pode até decepcionar muitos fãs que desejariam ver retratada nas telas a Amy poderosa, que não tardou a conquistar o mundo com seu misto retrô de visual e sonoridade (penteado colmeia, roupas de brechó vintage, pop de girl groups dos anos 1960) e um punhado de hits baseados em versos tão hiperconfessionais quanto suas tatuagens, depois de mudar o direcionamento artístico outrora mais voltado à tão adorada influência caseira do jazz. Back To Black chegou dividindo opiniões lá fora. Entretanto, é uma obra competente, mesmo enfrentando as limitações habituais impostas no suporte cinematográfico a uma proposta biográfica. Vale a pena ser visto mesmo por quem esperava muito do filme já há algum tempo.

Music

Jethro Tull – ao vivo

Ao proibir o uso de celulares durante quase toda a noite, Ian Anderson leva à plateia de Curitiba bastante do clima de um concerto do início da carreira

Texto por Daniela Farah

Foto: Abonico Smith

Se Ian Anderson queria reproduzir um concerto dos anos 1970 para o público que está em plena temporada de 2024, ele conseguiu. Tanto para o bem quanto para o não tão bem assim. Na noite de 12 de abril, o artista trouxe sua performance de Jethro Tull para Curitiba, mais precisamente o Teatro Positivo. A escolha por ser um teatro determinou todo o contexto do show. Não pela casa em si, já que o local recebe diversos concertos, mas pela estrutura da apresentação – dividida em duas partes, com direito a um intervalo de 20 minutos.

Quem foi lá esperando um show de rock saiu de lá frustrado, assim como quem se deixou levar pela ansiedade causada pela dependência digital e a raiva pela obrigação de deixar o celular guardado. O uso do aparelho era expressamente probidio por Anderson e havia alguns seguranças para vigiar quem insistisse em ignorar a ordem e botar medo de uma possível exclusão do recinto. Por outro lado, quem se abriu e deixou-se levar pela proposta do escocês saiu de lá diferente. Anderson encarnou a experimentação, a arte, a mistura com a tecnologia do presente apenas no palco (toda canção tocada era acmpanhada por um vídeo recentemente produzido, cheio de efeitos digitais e aquele ritmo fragmentado típico do videoclipe) e sua personalidade forte para dar o tom da apresentação da RökFlöte Tour.

Essa mudança de show para performance artística se refletiu inclusive nos arranjos sonoros das principais músicas do Jethro Tull. Mas isso não pegou ninguém desavisado: após entrar ovacionado e tocar “My Sunday Feeeling”, Ian conversou com o público. “Bem-vindos para celebrar sete décadas de lançamentos de discos”, disparou.

O cantor comentou com uma tonalidade um tanto quanto jocosa a respeito do fato de “Hotel California” ser curiosamente parecido com a sua composição “We Used To Know”, criada em 1969. “Ela é dedicada aos Eagles, aquele grupo pop fabuloso dos Estados Unidos que surgiu com uma música pop brilhante em 1974. Você vai poder notar similaridades entre as canções. Esta é uma minha que eu escrevi anos antes, particularmente o solo de guitarra que Jack irá tocar”, disse Ian, só errando a data do megahit (a faixa foi gravada em 1976 e lançada em dezembro do mesmo ano, dando nome ao quinto álbum dos anericanos).

Anderson contou histórias de todas as suas obras apresentadas no Positivo, como a do catavento em forma de galináceo que vive no teto de sua casa (o “Sr. Weathercock”). Ele ainda trouxe o clima de Natal antecipado – porque nunca é cedo para comemorar o Natal, ainda mais para cantar canções do Jethro Tull. “Ela traz elementos de música de igreja e folk mais algumas coisas da minha própria criação. Nós chamamos essa de “Holly Herald” e Scott Hammond vai começar com os bongôs.”

O passado logo foi substituído pelo presente e uma música do RökFlöte, “Wolf Unchained”, chegou, enfim, ao set list. E como o grande contador de histórias da noite, Ian mostrou seu humor britânico (ou seria o particularmente escocês?) especialmente nessa aqui, que soa muito sério no começo e surpreende no final. “É sobre aquele barulhento lobo perverso chamado fenrir. Era um cachorro muito mau… e eu ficava dizendo a ele para não lutar contra o entregador da Amazon senão não iria ganhar presente de Natal”, disse o músico fazendo o público cair na gargalhada.

Depois de “Mine Is The Mountain” e “Bourrée In E Minor” (versão da obra de Johann Sebastian Bach), chegou ao fim a primeira metade. Depois foram 20 minutos de intervalo, importante para que todo mundo pudesse relaxar da tensão e poder esticar as pernas. Ou mexer nos próprios celulares e coisas assim.

Talvez pela dispersão da pausa, a segunda parte não empolgou tanto assim. Exceto, claro, por dois momentos muito importantes. Um deles foi “Aqualung”. O clássico dos clássicos do Jethro Tull protagonizou o clímax da noite e levou o público a se soltar na cadeira, dançar e gritar. Anderson parecia feliz em proporcionar essa alegria aos fãs. É tão bonito quando a gente vê um momento genuíno de troca entre artista e público, especialmente com uma música que ele tocou tantas vezes durante toda a extensa carreira.

O outro grande momento foi a última música “Locomotive Breath”. Aqui, Ian Anderson foi genial. Como já estava no bis, ele permitiu que todo mundo pegasse seus celulares e câmeras e filmasse e fotografasse tudo o que quisesse. O público entrou em frenesi e milhares de celulares foram apontados para o palco praticamente a canção inteira. Assim distraídos, ninguém pode perceber a falta que a guitarra de Martin Barre (habilidoso membro da formação original que brigou com Anderson em 2011 e passou a excursionar com uma banda própria sem deixar de tocar os clássicos do Jethro Tull) fazia, especialmente nessa música.

Set list: Parte 1 – “My Sunday Feeling”, “We Used To Know”, “Heavy Horses”, “Weathercock”, “Roots To Branches”, “Holly Herald”, “Wolf Unchained”, “Mine Is The Mountain” e “Bourrée In E Minor”. Parte 2 – “Farm On The Freeway”, “The Navigators”, “Warm Sporran”, “Mrs Tibbets”, “Dark Ages”, “Aquadiddley” e “Aqualung”. Bis: “Locomotive Breath”.

Music

Madonna – ao vivo

O lado A e o lado B de quem assistiu à espetacular derradeira apresentação de A Celebration Tour na praia de Copacabana

Madonna durante a canção “Like a Prayer”

Textos por Abonico Smith e Rodrigo Browne

Fotos: Reprodução

Transgressão é a melhor única palavra que pode definir os 40 anos de carreira fonográfica de Madonna. Tanto no sentido de ir além quanto no de descumprir determinadas ordens (veladas ou não) do estabilishment. A última noite de 4 de maio, quando a cantora encerrou a turnê A Celebration em uma megaestrutura montada nas areias de Copacabana, no Rio de Janeiro, foi um belo exemplo deste espírito sempre ousado e desafiador da artista.

Tentar não cair no mais do mesmo ao escrever qualquer texto crítico sobre a cantora é uma obrigação. Portanto, não espere aqui meras repetições sobre os simbolismos que lhe caíram neste longevo período de tempo. Muito já se ponderou sobre o empoderamento feminino, as bandeiras da diversidade sexual, a solidez artística que perpassa o terreno musical e se estende para demais expressões artísticas e a penca de hits planetários empilhados disco após disco de 1983 para cá. Não será desta vez, portanto, que isso se dará por aqui.

A artista transgressora, que vai além (e bem além aliás!), ficou estampada no formato da apresentação. Não foi bem um show, muito menos um concerto. Foi um musical. Pop, para as massas, mas um musical no strictu sensu de uma encenação teatral recheada por canções. Falou-se demais, depois da noite de sábado, na transfusão da Broadway para Copacabana, já que, em sete atos, Madonna contou a história de Madonna. Ela passou por canções de várias fases, muitas delas interpretadas parcialmente ou aparecendo discretamente como vinhetas e inserção incidental em remixes introdutórios dos atos ou arranjos de outras canções (se hoje nem os  jovens consumidores de plataformas de streaming nem as emissoras de rádio no tradicional dial têm paciência para esperar uma faixa chegar ao seu final de fato, porquê a popstar não poderia fazer o mesmo ao vivo agora?). Reviveu looks, cabelos e figurinos desde aquela aprendiz de dançarina e cantora nada famosa que chegou em Nova York cheia de sonho, ambição e um punhado de dólares no bolso. Rebateu de forma jocosa as críticas ácidas que recebia durante os anos iniciais da carreira reproduzindo as mesmas nos telões com se fosse uma reportagem-videoclipe. No palco, muitos bailarinos, a protagonista sendo encenada por ela própria e por simulacros do passado que contracenavam com a Madonna de hoje. E nada de músicos. Zero banda. Tudo bastante ensaiado, para que as várias câmeras captassem absolutamente tudo. Para a transmissão comercial da TV, para a transmissão artística dos telões.

Madonna e Pabllo Vittar durante a canção “Music”

Aliás, os maldosos comentários sobre fazer playback ao vivo que volta e meia assombravam a carreira dela nem foram tão massivos desta vez. Não houve necessidade. A base pré-gravada foi muito, muito desmitificada e pouco importou se até a voz dela é pré-gravada em boa parte das músicas (afinal, tente você dançar e se movimentar sem parar por quase duas horas pelo palco com elevações e passarelas e não entoar qualquer frase melódica sem ofegar). Com a potência do som e a megaestrutura montada na praia, as batidas dançantes eletrônicas vieram carregadas de peso impressionante, capaz de incendiar a multidão de quase 2 milhões de pessoas (fora 1,6 mi na areia e na calçada e na rua, havia muita gente nos apartamentos dos prédios transformados em camarotes e ainda outros tantos vendo tudo do oceano, dentro de 380 embarcações alugadas e devidamente autorizadas pela marinha para estarem ali naquele trecho marítimo).

Só que para ser autocelebrada em um musical dos 40 anos de carreira, Madonna precisava ser transgressora ali em Copacabana e quebrar regras ali em do palco também. E assim o fez. Estava no mesmo bairro e na mesma praia em que um certo fracassado ex-presidente, na manhã recente de um domingo, reuniu 30 mil apoiadores (para bom entendedor, meio público pagante reunido pelo Flamengo em dia de jogo importante no Maracanã basta!). Em um sábado à noite, a popstar juntou mais de cinquenta vezes o número de fãs. Então tinha de se esbaldar. Falou palavrões a torto e a direito (para diversão de quem assistia ao espetáculo pela Globo, a tradutora simultânea se equilibrava direto na corda bamba, inventando frases e palavras similares para não perder o sentido do que ela falava ao microfone), fez simulações sexuais quase explícitas ao lado das convidadas especiais Anitta (que participou como jurada dos desfiles e passos de dança do momento ballroom de “Vogue”) e Pabllo Vittar (que rebolou livre, leve e solta ao som de uma diferentona “Music” levada pelas percussões de crianças e adolescentes ritmistas de escolas de samba cariocas), profanou as cruzes de uma capela em “Like a Prayer”, cantou os versos dos surubões de “Erotica” e “Justify My Love”, disse estar estupefata sendo “espremida” por aquela multidão na praia e o “Jesus” que observava tudo lá de cima do morro e ainda, ousadia das ousadias, fez às câmeras o L quando estava vestida por um espartilho com as cores da bandeira brasileira. Resumindo: disparou performances perfeitas para confrontar boa parte de um público Deus-Pátria-Família-Liberdade que estava sintonizado no evento em sua própria casa (sem falar que havia conhecido político/traficante da extrema-direita em plena área vip). Prestes a completar 66 anos de idade e mesmo com uma joelheira especial para amenizar terríveis dores sentidas há anos na perna esquerda, Madonna ainda mostrou ter combustível suficiente para botar fogo no circo do conservadorismo radical que ainda quer fazer do nosso país o seu reino eterno.

Madonna e Anitta durante a canção “Vogue”

De resto, ela ainda revelou aos brasileiros o talento de seus quatro filhos adolescentes. David Banda tocou violão na versão acústica de “Express Yourself” e em “La Isla Bonita” e ainda fez as vezes do soberano púrpura Prince com um solo de guitarra. Mercy James tocou lindamente um piano de cauda na balada “Bad Girl”, canção incluída no repertório dessa turnê por insistência de seus fãs ao redor do mundo. Stella participou do corpo de baile escalado para a quase-country “Don’t Tell Me”. Sua irmã gêmea Estere encantou todo mundo interpretando a DJ e a ousada bailarina mirim com fantásticos passos de dança trazidos do underground gay nova-iorquino dos anos 1970 e 1980 em “Vogue”. Costurando os atos da narrativa do musical, a inclusão do ator Caldwell Tidicue (mais conhecido pela alcunha de Bob The Drag) também revelou-se um acerto e tanto.

Encerrada a turnê em que passou a limpo as diversas Madonnas reunidas de 1983 para cá, ela voltou para casa para descansar desta longa empreitada. Apenas Deus deve saber o que virá daqui para frente em sua trajetória artística. Entretanto, é certo que não deverão ser abandonadas a pátria planetária e multilíngue de fãs, todas as famílias que fogem do modelo bíblico de Adão e Eva e, sobretudo, aquela liberdade, pela qual sempre prezou, de ser e fazer tudo o que quiser. Afinal, bitch, she’s Madonna (AS)

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Vista aérea de Copacabana durante o espetáculo

Quatro de maio de 2024. Sábado de outono no Rio de Janeiro. Dia de celebração de quatro décadas da carreira de uma das cantoras mais icônicas do nosso tempo. Madonna escolheu a Cidade Maravilhosa para o último show da sua Celebration Tour. Tiro certo. Praias, bares, hotéis, restaurantes: tudo estava lotado. O clima não poderia ser melhor: a capital carioca adora fazer uma festa e essa foi a maior festa que Madonna poderia ter na sua vida com quase dois milhões de convidados para comemorar com ela e sua música na maior pista de dança do mundo, a praia de Copacabana, que por algumas horas virou Copamadonna.

A chegada na praia foi um espetáculo à parte. Após passar pelas barreiras policiais que revistavam todo mundo para garantir a segurança, o calçadão revelava vários universos num só. O multiverso de Madonna estabeleceu uma união cósmica com a multidão do réveillon de Copacabana presente numa enorme parada LGBTQIA+. Liberdade, amor, tolerância, respeito e alegria – tudo ao mesmo tempo em um só lugar. Ao longo da praia, a economia popular, com ambulantes de todos os tipos e todos os produtos possíveis, faturava alto com a venda de churrasquinho, bebidas, sorvetes, banquinhos para descanso e, claro, inúmeros acessórios de memorabilia do show (faixas, camisetas, copos, leques, bandeiras). Desde cedo a circulação era intensa, com uma fauna humana variada e divertida que reunia casais felizes vestidos com as cores do arco-íris, famílias com crianças nos ombros, drag queens com seus leques ritmados e vestidas de Madonna, moradores dos vários bairros da cidade e turistas de todas as partes do Brasil e do exterior. Tudo em perfeita harmonia.

Vista aérea de Copacabana durante o espetáculo

O megapalco estava na frente do hotel mais famoso do Brasil: o Copacabana Palace. A rainha do pop se apresentou olhando a praia do Leme e com a maior multidão que um artista já reuniu na orla carioca – superando o público que foi ver os Rolling Stones em 2006. As pessoas ocuparam toda a faixa de areia mais as ruas. Telões ajudavam a visão de quem não conseguiu ficar próximo do palco. O som, longe do ideal, deixou a desejar. Mas ninguém ligou para isso.

O melhor de tudo é que, no final da noite, tudo acabou bem. Para um evento desse porte, o máximo que aconteceu foram algumas ocorrências de furtos de celulares pelos pivetes de sempre que acabam roubando os inocentes (e distraídos) de sempre. Mas a sensação geral do público foi de alegria, de quem foi a um show histórico de um ícone da música mundial. Presente no momento certo e no lugar perfeito. (RB)

Set list: introdução It’s a Celebration, “Nothing Really Matters”, “Everybody”, “Into The Groove”, “Burning Up”, “Open Your Heart”, “Holiday”, interlúdio The Storm, “Live To Tell”, interlúdio The Ritual, “Like a Prayer”, interlúdio Living For Love, “Erotica”, “Justify My Love”, “Hang Up”, “Bad Girl”, interlúdio Ballroom, “Vogue”, “Human Nature”, “Crazy For You”, interlúdio The Beast Within, “Die Another Day”, “Don’t Tell Me”, “This Little Light Of Mine”, “Express Yourself”, “La Isla Bonita”, “Music”, interlúdio Madonna, “Bedtime Story”, “Ray Of Light”, “Rain”, interlúdio “Billie Jean/Like a Virgin”. Bis: “Bitch I’m Madonna”, encerramento Celebration.

Music

Bruce Dickinson – ao vivo

Vocalista do Iron Maiden inicia turnê brasileira do novo disco solo, The Mandrake Project, fazendo mágica sonora para o público de Curitiba

Texto e foto por Daniela Farah

Hipnose, olhos, gestos das mãos são poderes telepáticos usados pelos melhores mágicos do mundo. Enquanto o público olha para a direita, ele tira um coelho da cartola, na mão esquerda. Sinônimos de ousadia, mestre das fugas, senhor das sombras, mandrake, são vários apelidos dados aos ilusionistas. Ainda que Bruce Dickinson não se aposse desse título, ele veste a carapuça muito bem. Ou melhor, a cartola. E assim o fez na noite de 24 de abril, na Live Curitiba. A estreia da sua Mandrake Project Tour contou com um roteiro estruturado e muitos truques de quem é bem experiente.

A noite começou com a abertura de Clash Bulldog’s, que entregou um show animado, com bastante conexão com o público, que respondeu muito bem as interações. Cabe aqui um adendo em dizer que a primeira atração tem uma missão sempre muito difícil e que pode gerar um desses três sentimentos: deixar o público entediado, desvirtuar as pessoas ou animá-las para a próxima atração. Quem sabe o que está fazendo escolhe as duas últimas opções. A banda de Nova Friburgo (RJ) incluiu em seu repertório de músicas autorais um cover de “Sad But True”, do Metallica. FIzeram todo mundo cantar junto e esquecer a ansiedade.

Já havia passado das 21 horas e o palco ainda estava sendo arrumado para a estrela da noite. Por causa de alguns prováveis problemas de telão, o show atrasou uns 15 minutos. O que não significou absolutamente nada para os fãs, que o receberam com a gritaria habitual e os milhares de celulares apontados para o palco, na intenção de registrar os primeiros momentos do artista em palco brasileiro.

Bruce Dickinson veio ao Brasil acompanhado da House Band Of Hell, formada por Chris Declercq e Philip Näslund (guitarras), Mistheria (teclados) e Dave Moreno na bateria. Mas quem brilharia mesmo no palco seria a baixista Tanya O’Callaghan, que já tocou com Whitesnake, Dee Snider, Orianthi, Steven Adler (Guns N’ Roses), Nuno Bettencourt (Extreme) e mais uma lista enorme de estrelas do rock. Demonstrando muita técnica e carisma, ela vem se destacando lá fora.

Eis que, como um passe de mágica, os olhos dos fãs brilhavam. Então, Dickinson mostrou um cinco de copas numa mão, nada na outra e tirou um coelho brilhante da cartola. Vou explicar.

Bruce entrou direto com a sequência “Accident of Birth”, do álbum de mesmo nome; “Abduction”, de Tyranny Of Souls; “Laughing In The Hiding Bush”, de Balls to Picasso; “Afterglow Of Ragnarok, de The Mandrake Project. Vale lembrar que este foi o primeiro single do novo álbum, lançado no último 30 de novembro, na CCXP23.

Daí o músico cantou uma das favoritas da noite. “Chemical Wedding”, de The Chemical Wedding, foi um dos momentos mais bonitos na interação com o público, que surpreendeu Bruce, cantando mais alto que ele em um coro, não tão afinado mas com o coração cheio. As luzes se acenderam e sua cara de satisfação ficou exposta. Fechava-se assim um belo cinco de copas, conectado direto ao mesmo coração inebriado dos fãs.

“Caros cidadãos de Curitiba! Nós nos divertimos ontem, bebendo cerveja e dirigindo motocicletas e ansiosos para ver você em todos os lugares, motherfucka. Então, vamos lá! Wstamos de volta com essa banda incrível, mostrando para vocês o primeiro show no Brasil. Faremos muitas coisas, todos os tipos de coisas, em todos os lugares”, disse Bruce antes de anunciar “Many Doors To Hell”, que fala sobre uma vampira que cansou de morder pessoas.  Um silêncio reinou durante boa parte da música, até que o artista pediu palmas, e, claro, foi atendido. Estava, então, na hora de tirar o coelho da cartola, correto?

“Este é um momento muito perigoso. Esta [música] não é de The Project Mandrake. Vou deixar para vocês adivinharem”, provocou. Logo os primeiros acordes começaram e o público respondeu emocionado e com o celular em mãos. “Tears Of The Dragon”, um dos hits mais icônicos da carreira solo de Bruce Dickinson. Tinha gente tremendo, chorando, cantando, de olhos fechados e, claro, gravando o momento para rever depois.

Se o vocalista já tinha usado seus maiores números antes da metade do show, o que poderíamos esperar para a segunda parte? Experiente como é, ele sabe que nada poderia chegar aos pés dessa emoção para o público. Então, incluiu duas músicas do álbum novo: “Resurrection Men” e “Rain On The Graves”.

Passado o frisson, a instrumental “Frankenstein” (cover do Edgar Winter Group) mostrou um Bruce realizando um sonho de criança, tocando percussão. E não foi só isso: a mensagem na tela, feito grafismo de filme mudo, já avisou: “Oh, Meu Deus! Isso é um teremim!”. E lá foi ele tocar o prosaico instrumento. E toda essa encenação foi durante a execução da música.

E assim, como o experiente ilusionista que é, o vocalista não tardou a desaparecer um pouco tempo depois na cortina de aplausos, deixando os clássicos na memória.

Set list Clash Bulldog’s: “Intro”, “Prophets Of Time”, “Tears Of Blood”, “Take The Liars Down”, “Sharp Teeth”, “Them Bones”, “Sad But True”, “Evil Within” e “Anger Grows”.

Setlist Bruce Dickinson: “Accident Of Birth”, “Abduction, “Laughing In The Hiding Bush”, “Afterglow Of Ragnarok”, “Chemical Wedding”, “Many Doors To Hell”, “Tears Of The Dragon”, “Resurrection Men”, “Rain On The Graves”, “Frankenstein”, “Gods Of War”, “The Alchemist” e “Darkside Of Aquarius”. Bis: “Navigate The Seas Of The Sun”, “Book Of Thel” e “The Tower”.