Movies

Conduzindo Madeleine

Passageira idosa e taxista estressado tornam-se cúmplices durante extenso trajeto cheio de lembranças e afetos em Paris

Texto por Abonico Smith

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Dirigir estressa. Que o diga o taxista Charles. Por precisar ganhar dinheiro para pagar dívidas e levar comida para esposa e filha em casa, guia seu táxi por Paris seis dias por semana e muitas horas a cada dia, sempre com os nervos à flor da pele. Reclama de tudo e de todos, xinga clientes, pedestres, ciclistas e motoristas sem parar. Seu dia a dia não parece ter muitas nuances diferentes da previsibilidade e do constante estado de nervosismo. Até uma chamada incomum para atender uma passageira cair no seu colo.

Madeleine Keller é uma tagarela senhora de 92 anos que solicita um táxi para realizar um trajeto longo e incomum. Ela sai de sua casa com destino a uma casa de repouso para idosos. Com um bom dinheiro em mãos, não se furta em pagar o necessário para Charles. De taxímetro ligado (e autorizado para isso) desde antes de buscá-la, o chofer vai pegá-la do outro lado da cidade. Depois, atendendo a pedidos, aumenta o percurso para que a senhora possa visitar locais do passado, relembrar coisas da família e da vida e ainda esticar o tempo no que for possível, para chegar o mais tarde que der ao seu destino final.

Conduzindo Madeleine (Une Belle Course, França/Bélgica, 2022 – Califórnia Filmes), exibido antes por aqui no Festval Varilux, chega agora ao circuito nacional de cinema mostrando o improvável encontro esses dois personagens. Basicamente a trama vai se desenvolvendo durante o trajeto pelas ruas da capital francesa, com direito a flashbacks elucidativos. Neles, Madeleine (Line Renaud nos dias atuais e Alice Isaaz quando jovem) vai contando a Charles (Dany Boon) muito dos perrengues que vivera quando moça. A morte do pai durante a Segunda Guerra. A primeira paixão. O primeiro beijo. Os bailes da juventude. A gravidez inesperada e a maternidade ainda solteira. O namorado egocêntrico que, sem parar, abusava dela física e psicologicamente. A hora da vingança contra ele. A injusta pena imposta ela pela justiça por isso.

Pouco a pouco, o estressado motorista vai ficando para trás, dando espaço a um curioso e atencioso homem, cada vez mais envolvido com a peculiar experiência de vida da simpática idosa que acabou por se tornar um símbolo da resistência feminina contra os abusos da totalmente dissimulada sociedade daqueles tempos mid-century, regida sempre de acordo pelo impiedoso patriarcado. Carregadas de dramaticidade, as relembranças de Madeleine vão provocando profundas mudanças em Charles, mesmo com o pouco tempo de convivência entre os dois. O filme, então, vai se tornando um tocante road movie pelas charmosas ruas parisienses. A pequena bolada que ele vai ganhar pelo extenso e duradouro percurso com a passageira já passa a não importar tanto. Espectadores assistem a uma rápida conversão do motorista em cúmplice da senhora, que, ao mesmo tempo, passa a retribuir com gratidão a atenção dada por ele. Sobretudo depois de uma cena-chave em que ocorre uma perigosa ultrapassagem de um sinal vermelho. Os dois, uma com o dobro da idade do outro, tornam-se cúmplices a ponto de já não se saber mais quem conduz quem, metaforicamente falando. Contribui para isso a química entre Renaud e Boon, que já trabalharam juntos antes (na comédia romântica A Riviera Não é Aqui, de 2008) Com uma história simples, cativante e afetuosa, Conduzindo Madeleine provoca sério risco de derramar lágrimas em espectadores mais incautos quanto ao envolvimento de emoções. Só que não toca na tangente no melodrama e ainda proporciona alguns momentos de humor. Sem falar nos pontos de reflexão a respeito de mudança dos tempos, necessidades pessoais e também as dificuldades que cada um enfrenta no decorrer de sua vida.

Music

Ney Matogrosso – Homem com H

Musical presta tributo ao cantor ao recriar desde a turbulenta relação com pai ao sucesso da carreira solo após a saída dos Secos & Molhados

Texto por Abonico Smith

Foto: Lina Sumzono/Festival de Curitiba/Divulgação

Já faz meio século que um furacão chamado Ney Souza Pereira tomou conta da música brasileira para nunca mais abandoná-la. Desde a meteórica ascensão dos Secos & Molhados até a afirmação de sua carreira solo, iniciada logo após a turbulenta saída do trio e consolidada com uma série de hits pelos anos seguintes. Hoje prestes a completar 83 anos de idade, Ney Matogrosso continua bastante na ativa, produzindo discos e shows, sendo um ícone de gerações na representativa de questões relacionadas a gênero e sexualidade. Isso sem falar no seu gogó de ouro, capaz de produzir notas agudas que arrepiam; na performance, sempre capaz de enlouquecer multidões até os dias atuais; e na calibrada capacidade de escolher repertórios provocativos e que cutucam lá no fundo o conservadorismo da sociedade brasileira.

Por isso que construir um espetáculo musical sobre o artista ainda vivíssimo e esperneando constituiu-se um grande desafio para a turma que montou e colocou nos palcos Ney Matogrosso – Homem com H. A encenação – apresentada no Festival de Curitiba nas duas primeiras noites de abril – mostrou como é possível ser bem sucedida mesmo com as dificuldades mais do que naturais. Ancorada na personificação plena de Renan Mattos como o protagonista (mesmo com a dificuldade de chegar perto do falsete inigualável), o texto cobre desde a turbulenta relação familiar nos tempos de adolescência em Brasília até o sucesso profissional como cantor solo no Rio de Janeiro, depois da meteórica e badalada passagem pelos Secos & Molhados, trio vocal paulista que subverteu a música popular brasileira e desafiou a censura e os militares dos anos de chumbo no regime ditatorial que tomou conta do Brasil após o golpe de 1964.

O esquema do roteiro é simples. Uma sucessão de pequenos esquetes que cobrem paulatinamente o desenvolvimento do artista Ney. Sempre com muito humor, o que favorece ainda mais a aproximação com o público. O primeiro ato começa nas discussões às turras com o intransigente pai militar e se estende às descobertas da juventude em Brasília: drogas, sexualidade, carreira artística. Ao sair da capital federal como ambiente, Ney se joga na vida cultural Rio de Janeiro até ir a São Paulo e se tornar o vocalista do Secos & Molhados, trio que estava nascendo e já vinha sendo bastante cultuado no underground. O recorte histórico da parte inicial se encerra com a realização do fenômeno de vendas e popularidade, por isso mesmo, uma implosão interna motivada por um “golpe financeiro” aplicado nos incautos Ney e Gerson Conrad pelo membro mais atuante nas composições musicais: o português João Ricardo.

A costura musical, até mesmo por questões lógicas, não segue a mesma ordem cronológica da vida antes da entrada em cena do trio – até porque o artista ainda dava seus primeiros passos rumo à fama. Entretanto, farta-se de uma discografia solo, rica em composições com temáticas que ilustram com perfeição cada período retratado. A mobilidade do cenário, formado por diversos palanques cúbicos (de alturas diferentes) e uma dupla de rampas, colabora para a fluidez do roteiro. A cantora e compositora Luli (autora do hit “O Vira”) e o amigo Vicente Pereira (que nos anos 1980 se destacaria como um dos nomes-chave do teatro besteirol nos palcos cariocas) são as personalidades que aparecem com relativo destaque, inclusive sendo “resgatados” no segundo ato.

Passado o breve intervalo, entretanto, a correria toma conta da narrativa, em virtude do tanto de acontecimentos na careira solo de Ney na segunda metade dos anos 1970 e a primeira da década seguinte. Personagens entra e saem de cena, sem muito aprofundamento. Rita Lee é badalada, mas o nome de Roberto de Carvalho, guitarrista da banda solo do cantor montada logo após o Secos & Molhados, sequer é mencionado (Matogrosso foi o “cupido” do casal!). Rosinha de Valença, quem foi ela, afinal? A celebrada musicista desaparece em questão de segundos logo depois de estar no palco. O pianista Arthur Moreira Lima, lá no final, também resvala na tangente das citações, mesmo sendo a peça-motriz da mais significativa mudança artística de Ney durante os 1980s. Mazzola, o produtor artístico de muitos de seus discos, vai e vem, vai e vem, mas também sequer o seu porquê de estar ali é aprofundado. A seleção musical já passa a incluir canções alheias, não gravadas por Ney, mas com toda a relação com a ocasião enfocado. Por falar nisso, a fase do sucesso nacional estrondoso do RPM (primeiro show brasileiro a usar raio laser, com Matogrosso assinando a direção de iluminação) é solenemente ignorada, o que é uma pena.

Cazuza, este sim, recebe mais holofotes. Claro, foi um dos namorados que mais marcou a vida de Ney – e também sua obra. Com caracterização tão duvidosa quanto sua interpretação (que dividiu opiniões entre os jornalistas que cobriam o festival), o vocalista aparece em momentos de grande intimidade com o protagonista e ainda à frente do Barão Vermelho. Outro nome de destaque entre as relações pessoais do cantor também aparece com força: o médico Marco de Maria, o único com quem Matogrosso aceitou dividir o cotidiano em uma mesma casa. Tanto Marco quanto Caju faleceram em decorrência de complicações do vírus HIV. Por isso, a chegada de ambos em cena acaba por deixar um clima bem mais pesado e dramático no musical, que abandona quase que de vez o humor escrachado de antes. A enorme sombra da aids sobre toda a juventude daquela geração foi uma cruz muito pesada de se carregar para quem viveu aquela época (e sobreviveu!). Portanto, não havia mesmo como escapar dela no ato derradeiro mesmo mudando radicalmente a atmosfera de festa.

Foi justamente esta transformação comportamental de uma geração, porém, que sela o fim do musical de uma forma maravilhosa, apesar dos pequenos escorregões no decorrer da encenação de quase quatro dezenas de canções e quase três horas de duração. Os vários Neys que o Ney apresentou entre os anos 1970 e 1980 estão lá, até tudo terminar nele próprio, despido da persona sexualmente fantástica que todo mundo conheceu de início e passou a amar e idolatrar. O Ney Matogrosso incorpora o Ney Souza Pereira também no figurino e na performance de palco, fechando um ciclo de sucesso (e também de insistência, perseverança e também orgulho) para aquele jovem que se lançou no mundo querendo ser ator (e não cantor), sobreviver de sua arte e viver um dia a dia de liberdade plena, sem quaisquer amarras (as sentimentais também!), curtindo e sorvendo cada minuto da vida ao máximo. Homem Com H é um grande tributo a este múltiplo artista de meio século de magnificência e brilho intenso. Tanto que no próximo semestre partirá para uma turnê nacional por grandes arenas e estádios de futebol.

Set List: Primeiro ato – “Sangue Latino”, “Por Debaixo dos Panos”, “Tic Tac do Meu Coração”, “Assim Assado”, “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, “Vira-Lata de Raça”, “Bandido Corazón”, “Divino, Maravilhoso”, “Trepa no Coqueiro”, “Maria/The More I See You”, “Trepa no Coqueiro”,”Nem Vem que Não Tem”, “Balada do Louco”, “O Vira”, “Rosa de Hiroshima”, “Mulher Barriguda”, “Amor”, “Sangue Latino” e “Sei dos Caminhos”. Segundo ato – “América do Sul”, “Com a Boca no Mundo”, “Dancin’ Days”, “Tigresa”, “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, “Coubanakan”, “Mulheres de Atenas”, “Bandoleiro”, “Ano Meio Desligado”, “Maior Abandonado”, “A Maçã”, “Homem com H”, “Pro Dia Nascer Feliz”, “Poema”, “Blues da Piedade”, “O Tempo Não Pára”, “Mal Necessário”, “O Mundo é um Moinho”, “O Sol Nascerá” e “Homem com H”.

Movies, Music

Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos

Documentário proporciona um olhar carinhoso para vida e obra do baiano que estabeleceu as bases do que se entende por música popular brasileira

Texto por Abonico Smith

Foto: Descoloniza Filmes/Divulgação

O próximo dia 30 de abril marcará os 110 anos de nascimento da pedra fundamental daquilo que todo mundo entende por música popular brasileira. Para celebrar a data, chega aos cinemas nacionais nesta quinta Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos (Brasil, 2020 – Descoloniza Filmes), depois de ter sua première mundial na edição deste ano do festival internacional de documentários É Tudo Verdade.

Sob o comando de Daniela Broitman, que assina roteiro, direção e produção, Um Homem de Afetos é, como seu próprio título já entrega, um olhar carinhoso por todo o universo de vida e obra do cantor e compositor baiano. Disseca passagens curiosas, engraçadas e afetivas do artista, falecidos em 2008 aos 94 anos de idade. Traz depoimentos dos três filhos, pessoas que conviveram com muita proximidade a ele e fãs famosos como Gilberto Gil e Caetano Veloso. Apresenta também depoimentos e antigas gravações de Dorival em vídeo. Não pretende reinventar a roda, muito menos revolucionar narrativas e formatos. É um doc tradicional, mas que prima em pegar os espectadores pela emoção. E consegue, sem deixar aquela temida mácula de chapa-branca que contamina produções deste tipo. Louva o legado inovador e criativo de Caymmi mas também se propõe a apresentar pequenos deslizes comportamentais do homem por trás do ídolo. Detalhe: faz isso com a ajuda de Nana, Dori e Danilo, inclusive. E do próprio Dorival…

Sua intrínseca relação com o mar da Bahia vem desvendada logo no início. A ligação profunda, que marcou a passagem do “compositor por trás da imagem pública de Carmen Miranda em Hollywood” ao Dorival trabalhador boêmio das boates dos anos dourados de um Rio de Janeiro ainda capital federal, pode ser deliciosamente saboreada nas explicações particulares e históricas da vida do músico. Foram as águas do mar que banharam muitas de suas geniais criações lançadas por ele em disco no começo dos anos 1950 e construíram um universo temático tão rico e emocionante descrito em letras inigualáveis. Único também era seu jeito de tocar o violão e interpretar as próprias composições, o que leva a crer que Caymmi, ao menos no Brasil, foi o primeiro grande representante do termo cantautor (o famoso compositor que interpreta as suas canções), que viria a se popularizar décadas depois.

O período áureo da temática do mar – que antecedeu o estouro bossa nova mas nem por isso deixou de ser celebrado nos Estados Unidos, embora seja bem menos lembrado até hoje no Brasil – rende boa parte do documentário, inclusive com um engraçado trecho em que Caetano tece muitos elogios à maestria de encaixar a prosódia baiana nas melodias e letras. Há também um breve mergulho no Dorival músico e compositor, ainda por trás dos microfones, quando rendeu a Carmen Miranda todo o suporte para a imagem da baiana brasileira que encantou o mundo por meio do filtro do entretenimento estadunidense. Também ocupa parte generosa do roteiro a conturbada relação da esposa Stella Maris (com quem ficou casado por 68 anos, até a morte de ambos separada por questão de dias) com o cara que não conseguia suportar a convivência com barulhos mas não se afastava da fama de mulherengo.

As rápidas mudanças sociais e musicais promovidas no decorrer dos anos 1960 provocaram gradativamente a diminuição dos trabalhos inéditos de Dorival como cantor e compositor. Mas um curioso fato reacendeu a fama da idolatria… fora do país. Mais precisamente na extinta União Soviética, quando uma versão cantada em russo de “Suíte do Pescador” para a exibição do filme The Sandpit Generals (baseado na obra literária Capitães de Areia, de Jorge Amado rodado na Bahia, com produção norte-americana e censurado por aqui pelo regime ditatorial dos militares) tornou-se um hino que acabou por entrar para a posteridade por lá. Prova de que Caymmi pode ser coisa nossa mas o reconhecimento de seu talento ultrapassa barreiras geográficas e idiomáticas.

Difícil acabar de assistir a Um Homem de Afetos e não se afeiçoar ainda mais a Dorival Caymmi, o homem por trás da figura pública da música brasileira – sobretudo na hora em que o caçula Danilo aperta suas bochechas e brinca livremente com o pai coruja, com quem sempre teve muita proximidade de afeto. Para toda uma novíssima geração que acha ser a também baiana Ivete Sangalo o nome-mor da música brasileira (como mostrou-se em uma polêmica envolvendo a performance de Paulo Ricardo no mais recente BBB), pode ser um excelente canal para grandes descobertas e viagens no tempo.

Aliás, é para isso que servem documentários. Mais do que deleitar os iniciados em um assunto o grande papel de uma obra como esta é proporcionar expressões de estupefaciência em quem adora deixar-se surpreender. Certamente este Um Homem de Afetos pode e deve produzir isso em quem nem era nascido (ou ainda era bem pequeno) quando Dorival Caymmi faleceu.

Drama

Traidor

Gerald Thomas e Marco Nanini voltam a trabalhar juntos em espetáculo com jorro intenso de lembranças da vida de um velho e solitário ator

Texto por Abonico Smith (com colaboração de Daniela Farah)

Foto: Annelize Tozetto/Festival de Curitiba/Divulgação

Dentre todas as palavras que cumprem a função de sinônimo para o título deste espetáculo, a que melhor se encaixa é “enganador”. Afinal, não pode haver descrição para o velho ator, que, solitariamente, vê-se envolto em uma névoa mental onde fluxo ininterrupto de pensamentos, vozes, luzes e reflexões passam toda a sua vida a limpo, pessoal e profissionalmente falando. Enquanto tudo isso ocorre, o protagonista também percorre o caminho do engano. A si próprio e também à plateia que está lá diante dele, por conta da mágica da quarta parede quebrada.

Dezoito anos depois, Marco Nanini e Gerald Thomas voltam a trabalhar conjuntamente em uma produção, que ocupou os dias de 29 e 30 de março do Teatro Guaíra e da grade da mostra principal do anual Festival de Curitiba. Ator e dramaturgo, na duração de apenas sessenta minutos, provocam um jorro de considerações a respeito de passado, presente e futuro do personagem, “perdido em uma ilha” de ideias e considerações a respeito de muita coisa. Tal qual a torrente apresentada em um feed de rede social. Seja o Facebook, seja o Instagram, seja o X, seja o TikTok, seja o Kwai. O suporte é o que menos importa, mas sim o bombardeio ininterrupto capaz de provocar vertigem. Ou medo. Ou gozo.

Por falar em gozo, Gerald Thomas permanece sem resistir à tentação de provocar a  plateia, colocando atores renomados pronunciando palavras que fazem uma pretensa elite cultural se retorcer por dentro. Sim, os tais termos de baixo calão e com beliscadas na tangente do sexual. No primeiro Festival de Teatro de Curitiba, lá no já longínquo ano de 1992, barbarizou a plateia “republicana” em The Flash and Crash Days, na qual Fernandona (Montenegro) e Fernandinha (Torres) fizeram metade da plateia sair indignada da Ópera de Arame. Três décadas depois, com bem menos incautos na audiência mas ainda assim com um punhado de gente “de bem” que ainda tem a capacidade de se ofender e se chocar com isso, ele coloca Nanini dizer uma, duas, três vezes “cu” do palco do Teatro Guaíra. E não apenas isso. O mesmo ator (“enganador”) que  ficou no imaginário de milhões de brasileiros na pele do recatado, tímido, discreto e certinho pai de família Lineu, um dos personagens de destaque na série de TV A Grande Família, segura uma linguiça gigante durante uma memória de comercial e passa a disparar considerações sobre como é gostoso sentir a tal linguiça quente entrando (no forno?). É o enfant terrible confrontando de frente e com humor bastante afiado os traidores da pátria e os defensores da moral e dos bons costumes da família verde e amarela.

Também não dá para imaginar Gerald Thomas dirigindo e criando uma narrativa fechadinha, convencional, com começo, meio e fim. O jorro de pensamentos que aflige Nanini (o personagem, batizado com o sobrenome do ator) vem com significados bem abertos, tabelando com o cenário que flerta com o steampunk, o nonsense e o hiperrealismo e o diálogo com uma voz feminina pré-gravada que o alerta de algumas situações. Tudo dura exatamente uma horinha só. Pode até parecer pouco perto da média de duração dos espetáculos teatrais em geral. Mas a intensidade é tamanha que quem se joga e curte a viagem de Nanini de cabo a rabo (ops!) sai recompensado. E nem precisa procurar muito sentido em tudo.

Aliás, quando o assunto é Gerald Thomas, como se brincava na estampa daquela velha camiseta, tudo o que você menos precisa é entender um espetáculo seu. A maioria de quem se propõe a fazer isso, por sinal, levanta a bunda (ops!) da cadeira e sai mais cedo do recinto.

***

Três perguntas para Marco Nanini

Com Traidor, Você e Gerald estão retomando uma parceria depois de quase vinte anos. Como foi o processo de criação deste espetáculo?

Nossa relação sempre vai sendo feita aos poucos. Aqui foi se modificando conforme eu também ia sugerindo a ele algumas coisas, intercalando textos irreverentes com outros mais contemplativos. É uma peça cotidiana, sem aquela coisa de coisa, meio e fim, Então o personagem alterna ideias, alucinações. Tudo acontece muito rápido. Gerald é muito bom parceiro mas durante os ensaios, em um estúdio que temos na zona portuária do Rio de Janeiro, o Fernando [Libonati, meu diretor de produção, com quem estou há muitos anos] deu muita opinião por causa do traquejo que ele também tem. É tanta coisa que é dita no palco que eu acabo saindo esgotado mentalmente de cada espetáculo. Nanini é um personagem bastante complicado, custei a encontrar um sentido geral para ele., que fica na solidão, revivendo personagens, como se estivesse perdido em uma ilha. Meio que como o Próspero, de A Tempestade de Shakespeare.

Há um momento durante o espetáculo em que você faz referência a uma velha cafeteira que faz parte do cenário da peça mas não é usada para nada. Para aumentar o nonsense você nunca pensou ou sugeriu trocar a tal cafeteira por uma jarra de plástico em formato de abacaxi tal qual aquela que ficou famosa na mesa da família do Lineu n’A Grande Família?

Graças a Deus, não! Quero continuar me livrando do peso do Lineu. Quando digo peso, claro que isso é algo que existe de melhor para qualquer ator. O reconhecimento, afinal, do trabalho. Mas também ao longo do tempo sempre me pautei pela diversidade na carreira. Sempre foi algo pensado, sabia que não queria ser só ator de chanchada no início. Eu vou fazendo coisas diferentes conforme elas vão aparecendo. Outra coisa que também me afasta bastante do Lineu na peça é a maquiagem do personagem, inspirada numa mistura do maestro russo Shostakovich com o pássaro pardal. Isso me ajuda a pensar ainda mais que não sou eu que estou ali.

Recentemente você teve uma biografia sua lançada, assinada pela jornalista Mariana Filgueiras. O que achou desta experiência?

Rememorar minha vida foi um processo muito agradável. Já fiz tanto e ainda tenho aquela vontade de fazer mais. Gostei muito do jeito que ela escreveu o livro. Mariana é muito cuidadosa e competente. Eu não a conhecia, foi meu editor que sugeriu o nome dela.

Movies

A Matriarca

Charlotte Rampling dá mais um show de atuação em filme que mostra choque de temperamentos entre avó e neto

Texto por Abonico Smith

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Contrapor duas pessoas de temperamento impetuoso e explosivo em uma mesma história é sinônimo de fartura de elementos para se conseguir um resultado cheio de drama e tensão. Quase sempre isso resulta em tramas que cativam leitores e espectadores. Se quem estiver envolvido, então, tiver um grau de proximidade no cotidiano ou mesmo parentesco, tudo ainda faz o panorama melhorar.

Arriscando-se pela primeira vez na direção, o ator e roteirista Matthew J. Saville parte desta premissa para fazer de A Matriarca (Juniper, Nova Zelândia, 2021 – Pandora Filmes) um filme de forte teor sentimental. Se não parte de algo original (pelo contrário, este tipo de atrito sempre foi bastante utilizado na indústria cinematográfica), prepara ao menos uma hora e meia de um misto de grandes atuações com o discorrer de como gerações e gerações lidam quando se deparam com problemas ocasionadas por questões internas (disfuncionalidade, depressão, culpa) e externas (alcoolismo, estudos, separação física).

O embate central da trama fica entre o neto que se vê em maus lençóis de muito aprontar no internato e ser temporariamente suspenso de lá (Sam, interpretado por George Ferrier) e a avó (Ruth, construída com densidade e maestria pela recém-indicada ao Oscar Charlotte Rampling). De um lado, ele não tem outra opção para sua vida a não ser cuidar da “velha doente” sem qualquer preparo ou treinamento anterior para isso. Do outro, a birrenta e turrona fotógrafa de guerra que não aceita muito a deterioração progressiva de seu organismo e, depois de voltar para junto ao seio da família, acaba se vendo bastante limitada em suas ambições pessoais. Para piorar, o filho, com quem nunca se deu lá muito bem a ponto de, depois de adulto, nunca ter contado a ele o nome de quem é seu pai, empurra, de uma hora para a outra, um “pequeno pedaço de merda” para viver em sua casa e às suas custas.

Desde as primeiras faíscas produzidas por esta inevitável obrigação de convivência entre ambos, o choque reserva ao espectador um misto de drama e comédia, sobretudo em alguns diálogos desferidos por Rampling em mais uma excelente atuação. Diante das limitações físicas impostas pela sua personagem, a veterana atriz inglesa se desdobra em expressões faciais e jeito de falar para compor uma Ruth que foi se tornando cada vez mais rabugenta nos últimos anos da vida mas que, bem lá no fundo, quer se esforça para recuperar a sensação de liberdade que sempre norteara sua vida até alguns anos atrás. Quem sabe, com a vinda do neto, mesmo indesejada, ela não venha a (re)descobrir uma vida sem tanto amargor e com mais prazeres simples? Por outro lado, Sam (Ferrier, em bela estreia no cinema) também procura isso desde que passou a ser bastante atormentado pelo remorso que sente desde a partida precoce da mãe.

O cruzamento de descobertas entre duas gerações com um abismo de interesses entre elas pode servir como indicador de novos sabores para uma vida que se tornou agridoce, da revelação de uma adormecida força interna – o que evoca o nome original do filme, que em português significa “zimbro” e faz referência a uma planta medicinal que se desenvolve mesmo nas condições mais adversas e, por isso, simboliza sabedoria, beleza e fortaleza.

Mesmo bastante tradicional em forma e narrativa, o filme de Saville se destaca por fazer-se valer de uma alta dose de emoção sem se tornar arrastado ou melodramático em demasia. Simplicidade – inclusive no número de atores que compõem o elenco – é um dos trunfos de A Matriarca. Mesmo tendo demorado três anos para chegar ao circuito de cinemas brasileiros, o longa é um atrativo para quem gosta de um cinema que discuta interrelações sem deixar o clima pesado.