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Tetris

Longa-metragem aborda a corrida de russos, americanos e ingleses pela patente de uma das criações mais famosas da história do videogame

Texto por Tais Zago

Foto: Apple TV+/Divulgação

Mais um filme sobre espionagem e Guerra Fria? Já não temos histórias suficientes, do ponto de vista ocidental, sobre como a URSS era a malvada anticapitalista a e os EUA os mocinhos do planeta? Poderia ser, mas Tetris (Reino Unido/EUA, 2023 – Apple TV+) se trata, em regra, de um jogo de gato e rato onde o pote de ouro no final do arco-íris são os direitos sobre um dos jogos mais famosos da história do videogame.

Alexey Pajitnov (Nikita Yefremov) é um programador russo, apaixonado por jogos e puzzles, servidor da ELORG (Elektronorgtechnica) estatal russa de tecnologia. Nas horas vagas, Alexey, usando o hardware e software disponíveis em seu trabalho, criou o que chamou de Tetris, baseado em um jogo de tabuleiro de origem grega chamado Pentominoes, no início dos anos 1980.

Henk Rogers (Taron Egerton) é um homem multifacetado. Nasceu na Holanda, tem ascendência indonésia e cidadania americana. Estudou no Havaí, onde conheceu a futura esposa Akemi (Ayane Nagabuchi), e passou a viver e trabalhar em Tóquio, no Japão. Henk era apaixonado por jogos e era programador. Após alguns tiros saírem pela culatra, decidiu concentrar os esforços em encontrar jogos ainda pouco conhecidos, comprar seus direitos e repassar para as grandes do mercado como a Nintendo.

Nessa área, Robert Stein (Toby Jones) já era um especialista. Ele revirava as salas de programação no leste europeu, principalmente na Hungria, na busca de novos sucessos para patentear. Ao ver uma versão pirata de Tetris, imediatamente entrou em contato com a empresa britânica Mirrorsoft, do magnata de mídia Robert Maxwell (Roger Allam), para quem ofereceu a intermediação com os russos pela sua patente. 

A partir daí vemos uma guerra de negociações, trapaças, fraudes e promessas não cumpridas entre russos, americanos e ingleses. Em 1988, no finalzinho da União Soviética, pouco antes da queda do Muro de Berlim em 1989, sob o governo de Mikhail Gorbachev (Matthew Marsh) e com resistência de políticos corruptos russos em busca de propina, um acordo é fechado para a distribuição mundial de Tetris.

Quem venceu a batalha? Para quem leu o livro The Tetris Effect (2016), do jornalista de tecnologia Dan Ackerman, a resposta já é sabida. Para o resto, temos essa produção do canal de streaming Apple TV+, dirigida por Jon S. Baird. Os verdadeiros Henk e Alexey leram previamente o roteiro de Noah Pink e afirmaram que é a versão hollywoodiana de sua história, mas bastante baseada nos fatos. Um exemplo de ficção é a personagem Sasha (Sofia Lebedeva), que trabalha como intérprete para Rogers. Ela nunca existiu na história oficial.

Baird nos apresenta o enredo em capítulos que mimetizam fases de jogos de videogame. Imagens pixeladas em 8 e 16bit e sonoplastia de sintetizadores se mesclam às imagens que dão o toque saudosista, junto, claro, à estética oitentista de gamers, nerds, consoles, arcades e do revolucionário Game Boy. E, como não poderia faltar, do lado soviético temos a estética comunista pelo filtro ocidental – frieza, pragmatismo, tecnologia obsoleta e perseguição. Adentramos um filme cheio de clichês, que poderia constar na longa lista de filmes norte-americanos que já trataram do tema Guerra Fria. Porém, também é uma obra repleta de referências para saudosistas que acompanharam desde cedo o mundo dos jogos, dos PCs e da evolução rasante na área de TI que ocorreu entre os anos 1980 a 2000.

Tetris é uma diversão – de alta resolução – para todas as idades. Mas, sobretudo, é um filme para agradar os fãs da história dos jogos eletrônicos. Aborda o primeiro programa que gerou hordas de pessoas completamente viciadas em seus elementos geométricos e bidimensionais, caindo em velocidade acelerada e que chegavam a nos acompanhar em sonhos. Ao soar da musiquinha baseada no clássico do folclore russo Korobeiniki (a palavra russa para “mascate”), que é oriunda de um poema de 1861 de Nikolay Nekrasov, já mergulhamos em lembranças da infância e adolescência.

Tetris nos acompanhou no console, no computador e hoje ainda é muito popular em aplicativos para smartphones. Suas inúmeras representações, inclusive as tridimensionais, foram o pontapé inicial para jogos como Candy Crush, que viraram mania em todas as faixas etárias. Eis o alívio da ansiedade por meio do pensamento lógico-matemático.

Music

Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá – ao vivo

Turnê com repertório mais suave baseado em dois discos da Legião Urbana se encaixa bem em um teatro de Curitiba

Texto e foto por Abonico Smith

Primeiro elemento: ar. Confissão, entrega, espelho. Segundo: água. Amor, relacionamento, self. Terceiro: terra. Grandes êxitos. Quarto: fogo. Luta, mudanças, política. Na sequência dos quatro elementos da natureza dispostos em uma linha contínua, o complemento do ser humano. Quinto, então: espírito. Só o amor salva.

Foi seguindo esta continuidade que foi montado o repertório da nova turnê de Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, que desde 2015 percorrem o país todo celebrando as canções (que ajudaram a conceber) da Legião Urbana (banda da qual participaram ativamente e fizeram parte da formação fonográfica clássica). Legalmente não podem utilizar o nome. Mas, afinal, quem que é fã se importa? Por onde passam eles carregam velhos e novos admiradores que estufam o peito, cantam alto e em uníssono tudo de cabo a rabo e celebram hits e lados b do quarteto/trio que saiu de Brasília em meados dos anos 1980 para se tornar uma das marcas mais pungentes do rock brasileiro.

Nos dias 25 e 26 de agosto último de Dado, Bonfá, o vocalista convidado André Frateschi e os outros que compõem o competente trio de apoio dos instrumentistas passaram novamente por Curitiba – justamente a primeira capital, que lá nos idos de 1985, bancou a primeira passagem de avião da Legião para tocar fora do Rio de janeiro, onde o grupo já havia gravado o primeiro álbum e estabelecido moradia. A turnê se chama As V Estações, batismo que condensa os nomes do quarto e do quinto álbum da carreira (respectivamente As Quatro Estações e V, lançados em 1989 e 1991), que fornecem a base para a maior parte do atual set list. Ambos são justamente trabalhos que marcam uma transição profunda na trajetória da banda, então reduzida a trio com a saída do baixista Renato Rocha. A intensidade das letras compostas por Renato Russo para a ser mais reflexiva, quando não bastante melancólica. Foram a passagem para a maturidade sem volta do mundo adulto. Saíam de campo o perfil de rapaz punk pós-adolescente para dar lugar às angústias, responsabilidades, cuidados e outras coisas que vêm junto com os trinta anos. Também foi o período em que o vocalista assumiu publicamente ser gay e descobrir ser HIV positivo. Naquela virada dos anos 1990, sempre é bom lembrar, a sexualidade ainda era um assunto para lá de tabu na mídia e na sociedade brasileira.

O que justifica a costura temática deste repertório de 22 músicas da Legião Urbana. Por isso a apresentação no Teatro Guaíra, um local mais recatado e conservador do que uma casa noturna, caiu bem para esta terceira vinda de Dado e Bonfá como Dado e Bonfá. Quase nenhuma presença do repertório politizado mais explosivo. Clássicos como “Que País é Esse”, “Geração Coca-Cola”, “Perfeição”, “Fábrica” ou  “Baader Meinhof-Blues” foram estrategicamente colocados de lado desta vez. Nada de arriscar acender qualquer pavio de polarização política na plateia – ainda mais em se tratando de uma cidade que claramente (ainda) pende para o lado perdedor da última eleição presidencial. A questão ali, naquelas duas horas de show, era celebrar a comunhão do eu com o ambiente e o mundo ao redor. O espírito com o ar, a água, a terra e o fogo. Não a faísca para que o vermelho pudesse se chocar e gerar grandes atritos com o verde-e-amarelo – embora Frateschi tenha sido bastante aplaudido e incensado ao mudar sorrateiramente dois versos para incluir referencias a questões políticas atuais (“Não boto bomba em Congresso Nacional”, em “Faroeste Caboclo”, e “Somos soldados vendendo joias”,  em “Soldados”).

As Quatro Estações e V  têm uma coisa em comum: são dois trabalhos que solidificaram a formação de trio da Legião e, por terem vindo na sequência de um período de muitas turbulências, serviram para colocar a banda nos trilhos e aquietar um pouco as coisas depois do estouro comercial e de toda a confusão vivida em 1988 no estádio Mané Garrincha, em Brasília, em uma frustrada “volta para casa após o sucesso”. No primeiro, a predominância do amor como a temática principal das canções se junta a citações do livro Tao Te Ching, da Bíblia, da literatura de Luís de Camões e a afirmação de que o caminho é um só. Fala sobre doença, aids, ditadura militar e morte mas procura trazer uma visão positiva no final. Já o posterior teve seu período de concepção abalado pelo confisco do governo Collor mais a descoberta do vírus HIV e um período de rehab de Renato. Isto se refletiu nas canções, mais lentas, sombrias, extensas e com um quê de rock progressivo, inclusive com referências à mitologia, natureza e temas que habitam o universo dos jogos de RPG e filmes/livros de fantasia.

Nove canções de As Quatro Estações, cinco do V. O que significa espaço restrito para o repertório dos outros discos. Muitos “lados B” (vale lembrar que o quinto álbum não teve single trabalhado nas rádios nem videoclipe feito para a MTV) e poucos hits. A sobra ficou para oito clássicos que não podem faltar em um show do grupo: “Faroeste Caboclo”, “Será”, “Tempo Perdido”, “’Índios’”, “Soldados”, “Eu Sei”, “Quase Sem Querer” e “Por Enquanto”. Canções que até hoje vivem sendo executadas em playlists radiofônicos, para o deleite dos mais velhos, e requisitadas nas demandas dos streamings dos mais novos. Esta configuração faz com que a atual turnê seja um pouco diferente das duas anteriores, dedicadas aos álbuns que fizeram a Legião Urbana, entre 1985 e 1988, explodir em onipresença nas rádios nacionais voltadas para o público jovem daquela época, quando o rock reinava soberano no mercado fonográfico nacional e ainda não havia sido solapado pela música sertaneja e pelo pagode.

Por ter um set list mais soft que as turnês anteriores, ter a ambientação em um teatro caiu bem para As V Estações. Poltronas para o público sentar em momentos de menor agito, horário camarada para uma noite de muito frio  em Curitiba (não era nem onze e meia da noite e o concerto já havia acabado). Telão de fundo com vídeos ilustrativos (e/ou abstratos) podendo ser bem visualizado de qualquer lugar. Boca de cena grande o suficiente para garantir boas performances de Frateschi e Dado (que chegam a encenar uma emocionante luta no intenso final de “Soldados”).

“Esta é a primeira vez que a gente levando esse show a um teatro”, comentou Dado em um determinado intervalo entre duas canções. Sinal dos tempos. O rock, gênero musical que nasceu da insatisfação e da vontade de ruptura com o status quo social distanciou-se demais de seu magnetismo perante a juvenília. Para a maior parte da geração de vinte e poucos anos restaram os grandes festivais que misturam musicalmente alhos com bugalhos e se preocupam em ser acima de tudo uma experiência, não uma finalidade musical. Restou a curiosidade de tentar imaginar como o imprevisível Renato Russo se comportaria (e o que falaria ali nos seus famosos discursos afiados ao microfone) se ali estivesse em carne e osso. Ainda mais em se tratando da terra de esmagadora maioria defensora da direita.

Set list: “Há Tempos”, “Meninos e Meninas”, “Sereníssima”, “Eu Sei”, “Quase Sem Querer”, “Eu Era um Lobisomem Juvenil”, “Sete Cidades”, “O Mundo Anda Tão Complicado”, “O Teatro dos Vampiros”, “Vento no Litoral”, “Por Enquanto/Heroes”, “Tempo Perdido”, “’Índios’”, “Será”, “Faroeste Caboclo/I Wanna Be Your Dog”, “1965 (Duas Tribos)”, “Soldados”, “Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar”, “Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto”, “Pais e Filhos” e “Monte Castelo”. Bis: “Metal Contra as Nuvens”. 

Music

Pitty – ao vivo

Em show de aniversário do álbum de estreia, cantora se emociona com lembranças, se vê madura e poderosa e “ressignifica” o passado

Texto por Marcos Bragatto (Rock em Geral)

Foto de Amanda Respício (Rock em Geral)

Um riff de guitarra bem distorcido quebra o silêncio no palco. Um átimo de segundo depois, o mesmo riff e a mesma distorção que, com as luzes agora acesas, vê-se que vem de uma guitarra atravessada no tronco de uma garota. Não uma qualquer, mas A garota, dona da festa toda e de mais um pouco. Garotas com guitarras costumam seduzir aos borbotões e é assim que dois varões, um de cada lado, juntam-se a ela no meio do palco, ao passo que outro, atrás, espanca os tambores sem dó e assim se faz a mágica do riff no rock’n’roll, condutor principal da tal música. É assim que Pitty, a tal garota com guitarra, comanda o singelo começo de “O Lobo”, a tal música, na noite de 29 de abril, um sábado, em uma Fundição Progresso com gente jorrando pelo ladrão, no Rio de Janeiro.

É o show que marca o aniversário de 20 anos – olhe só, vejam vocês – do álbum de estreia da cantora, Admirável Chip Novo, e o plano é tocar todas as músicas dele e otras cositas mas. É uma turnê revivalista, sim, mas Pitty, dada a rebeldias e não é de hoje, trata logo de desfazer o conceito e dizer que a apresentação é “uma ressignificação, o Chip Novo hoje”. Olhando para o palco, com o cenário criado para essa turnê, dá pra entender. Passarelas laterais com uma outra atrás da bateria, um telão low profile com cortinas sobrepostas ao fundo que recebem efeitos de luz simples, mas bastante eficientes. No começo, a imagem da “garrinchinha de botas e pernas tortas” no telão dá lugar ao mulherão em que ela se converteu que surge já de guitarra em punho, atrás da banda, no alto, detonando em “Teto de Vidro”.

É a abertura do álbum com a tríade matadora que tem ainda “Admirável Chip Novo” e a entrada de bateria, agora conduzida por Jean Dolabella (do Ego Kill Talent e com o Sepultura no currículo), e “Máscara”, coisa de arrasar quarteirão. E é isso que acontece com o povaréu que não se incomoda nem um pouco em participar, em frenético pula-pula e cantando tudo a plenos pulmões. As músicas são intervaladas por trechos de conversas da pequena Pitty (em ligação a cobrar de Salvador para o Rio) para tratar do envio do material que se tornaria esse disco e ainda se impondo ante a interesses da gravadora, que não curtiu, à época, a vontade da cantora de que “Máscara” fosse o primeiro single do disco. O resto é história e é muita história que se passa na cabeça de quase todo mundo ali – há jovens e muitos jovens há 20 anos ou mais, quando Chip Novo saiu.

Assim Pitty se esforça para segurar o choro e suplantar e emoção em várias passagens. Honra seja feita, embora tenha saído dos cafundós de Salvador, foi no Rio, por força da sede da gravadora, que ela deu os primeiros passos na carreira, tocando em tudo o que é canto underground da cidade, muitas vezes para alguns gatos pingados e em condições bem acanhadas, para dizer o mínimo. Diferentemente do trio que a acompanha – além de Jean, tem o ótimo guitarrista Matin Mendonça e o baixista Paulo Kishimoto – ela viveu tudo isso, o que carrega o espetáculo com mais emoção ainda. Pena que, nesse show, não tenha entrado nenhuma citação aos guerreiros da época: o guitarrista Peu, falecido em 2013; o baixista Joe, desafeto depois de questões levadas à justiça trabalhista; e o batera Duda.

show de íntegra do disco segue o desafio de tocar músicas que podem não ser tão conhecidas assim e que não eram executadas com frequência ao vivo nem na época em que foram lançadas. E também de tocar ou não todas elas na ordem em que foram gravadas – porque uma coisa é bolar uma sequência de disco, outra é de como apresentá-las no palco. É claro que Pitty foi na decisão corajosa de manter a ordem do CD, respaldada pelo fato de nada menos que cinco singles terem sido lançados na época, todos com boas execuções radiofônicas, em um tempo em que isso fazia a diferença. E, no fundo, no fundo, ela sabe que fã da Pitty – fã de rock – é quase sempre do tipo que conhece tudo. É o que acontece com a cantoria comendo solta em praticamente todas as músicas, em umas mais, noutras menos. E ainda tinha aqueles esperando justamente as menos tocadas ao longo da carreira.

Como por exemplo “Do Mesmo Lado”, rock enguitarrado dos bons, no qual Pitty canta “escondida” atrás de uma cortina branca e recebe focos de luzes coloridas, de modo que sua silhueta aparece distorcida e borrada, de acordo com os movimentos, em excelente efeito visual. Dá pra lembrar que “Só de Passagem” é uma pedrada nu metal das boas, e aí brilha Dolabella detonando na bateria; e a já citada “O Lobo” vira um rockão daqueles de obediência ao riff. Dentre os hits, vale destacar a lentinha “Equalize”, não pela música em si, mas por evidenciar uma Pitty bem resolvida com a sensualidade que parecia lhe incomodar. Se antes tinha dificuldade até para cantar uma letra mais de relacionamento/romântica, hoje desfila o corpo de modo soberano pelo palco e não só nessa música. E ainda recomenda ao público que “solte a pélvis”. É a tal da – repita-se – menininha convertida em mulherão.

O show é todo fechadinho em 1h40 e bolado para ser mesmo especial. É repartido em três blocos. Se o primeiro tem as 11 músicas do álbum Admirável Chip Novo, o segundo traz um complemento da época, com “Seu Mestre Mandou”, espécie de sobra, que se converte em nervoso hardcore dos tempos do Inkoma, e três covers, com destaque absoluto para “Love Buzz”, da banda holandesa Shocking Blue, eternizada na voz de Kurt Cobain, do Nirvana. No bis, é a hora da representatividade dos outros álbuns da cantora. Aí realçam “Memórias”, esticada com uma jam session em que cada músico é apresentado e sola em seu instrumento e tem Pitty refestelada no solo, e o arremate com “Me Adora”, a canção mais pop/colante dela e talvez a de maior sucesso, para terminar a altíssimo astral.

Em suma: o show é verdadeiro espetáculo planejado para uma ocasião especial e que tem vida própria. O que lhe dá, e antemão, o status de imperdível.

Set list: “Teto de Vidro”, “Admirável Chip Novo”, “Máscara”, “Equalize”, “O Lobo”, “Emboscada”, “Do Mesmo Lado”, “Temporal”, “Só de Passagem”, “I Wanna Be”, “Semana Que Vem”, “Seu Mestre Mandou”, “Sailin’ On”, “Love Buzz” e “Femme Fatale”. Bis: “Setevidas”, “Memórias”, “Na Sua Estante” e “Me Adora”.

festival, Music

Lollapalooza Brasil 2023 – ao vivo

Billie Eilish, Modest Mouse, Jane’s Addiction, Paralamas, Aurora, Baco Exu do Blues, Tove Lo e Cigarettes After Sex: shows que marcaram o festival

Billie EIlish

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução

Entre os dias 24 e 26 de março foi realizada a décima edição brasileira do festival Lollapalooza, a última em parceria da produtora T4F com a americana LLC, detentora da marca do evento. Depois de cinco recentes cancelamentos de concertos programados para este ano, todo mundo foi surpreendido com a não vinda ao Brasil do headliner da última noite, o canadense Drake, horas antes dos portões do Autódromo de Interlagos serem abertos. A desculpa oficial do artista, esfarrapada, não colou: a de que estariam faltando pessoas de sua equipe no país. Entretanto, ele foi visto na madrugada anterior festando em Miami em conjunto com o rapper 50 Cent. E mais: estas pessoas de sua equipe já estavam em SP instalando no autódromo os telões e o material de seu espetáculo. Mas como é sempre melhor falar de coisas boas, deve também ser registrado um marco desta edição: pela primeira vez o line-up estava dividido quase igualitariamente entre artistas dos dois gêneros.

O Mondo Bacana comenta um pouco dos oito shows que deixarão esta edição do Lolla na história dos grandes festivais de música pop do Brasil.

Billie Eilish

Única headliner originalmente anunciada a se apresentar em Interlagos (além de Drake, o Blink 182 também não veio para cá), ela já era aguardada havia algum tempo por aqui. Afinal, este seria seu primeiro concerto no país, já que o anterior fora cancelado por causa da pandemia. Em cima daquele palco enorme, tendo a companhia apenas de seu inseparável irmão e produtor Phinneas e um baterista, ela – com o verde e amarelo predominando no figurino grande e largo sobre a malha preta que lhe escondia o corpo – entregou o que prometia: uma boa coleção de letras intimistas a respeito de observações, sensações e sentimentos de uma garota vivendo os anos finais de sua adolescência. Intimista também foi sua performance: sem muitos pulos, correrias ou coreografias ensaiadas, era quase apenas ela cantando ao microfone. Quer dizer, cantando às vezes. Billie só cantava o necessário e muitas vezes sua voz ecoava pelo autódromo junto com os instrumentos também pré-gravados. O que deixava o show redondo, sem espaço para improvisos ou erros. Só que teve momentos em que os manos abriam mão do playback e se arriscavam em momentos semiacústicos para mostrarem que não são uma fraude ao vivo: foram cerca de meia dúzia de canções com Phinneas dedilhando o violão ou o piano para a irmãzinha soltar o gogó de alcance não muito grande.

Modest Mouse

Quem foi a genial pessoa responsável pela grade de shows que conseguiu jogar o grupo para uma tarde de sexta-feira? Modest Mouse – um dos ícones do indie rock americano dos anos 2000 – não é para a GenZ, é para gente mais velha. Melhor: para quase todo mundo que não tem a) grana disponível de salário ou frilas para pagar o caro ingresso do festival; b) saco ou corpo para aguentar ficar um dia sequer em uma maratona de shows; c) horário disponível para ir assistir a uma banda tocar às quatro da tarde de sexta-feira. Sob um sol escaldante, o vocalista Isaac Brock estava vermelho feito um camarão, à frente de seu quinteto que foge da musicalidade óbvia e mistura lo-fi, folk e psicodelismo em doses nada comerciais. O resultado foi uma banda competentíssima tocando para quase ninguém, sendo a maior parte disso gente que desconhecia por completo o repertório loteado entre sua boa discografia. Hits como “Float On” e  “Dashboard” ficaram desperdiçados  naquela escala gigantesca ao ar livre. De qualquer maneira, quem viu in loco ou pelo streaming foi abençoado pela tardia estreia do Modest Mouse em solo brasileiro. Antes tarde do que muito mais tarde. Antes de tarde durante a semana do que nunca.

Jane’s Addiction

Perry Farrell idealizou o Lollapalooza em 1991 como um festival ambulante, que pudesse rodar algumas grandes cidades norte-americanas com uma escalação de excelentes bandas alternativas como suporte para a turnê de despedida de sua banda. Deu tão certo que o Jane’s Addiction se separou mas o Lolla continou trilhando seu caminho de sucesso durante os meados dos anos 1990. Perry, então, quase sempre vem prestigiar a edição brasileira. Agora trouxe a tiracolo a reformada banda que o revelou para o mundo da música. Integrantes originais… ou quase, já que o guitarrista Dave Navarro (que saiu do JA para tocar no Red Hot Chili Peppers) continua afastado dos palcos para tratar da saúde (covid longa como justificativa oficial, rehab longa como rumor alimentado entre os fãs do grupo). De qualquer forma, seu substituto, o também ex-guitarrista do RHCP Josh Klinghoffer, mostrou ser uma escolha acertada. Enquanto o baterista Stephen Perkins e o baixista Eric Avery (que também costuma ser músico de apoio do Garbage) se entendem perfeitamente em uma cozinha rítmica hipnótica e dançante, Josh jorrava os efeitos de pedais que fazem a sonoridade da banda flutuar entre o hard rock, o psicodelismo e o groove. Para completar, uma trinca de dançarinas comandada pela atual mulher de Farrell faziam pole dances sensuais ao fundo do palco, dando um approach cênico diferente às canções. Em Interlagos, o set list foi reduzido por conta do tempo destinado ao show, socado no meio da programação da tarde do segundo dia. De qualquer forma, ficou bem dividido entre os dois primeiros e incensados discos da banda, concebidos entre 1988 e 1990, antes das brigas internas que levaram à implosão precoce da carreira. De qualquer forma, reunidos já nas casas dos 50 e 60 anos de idade, os músicos mostraram por aqui que estão como vinho: quanto mais velhos, melhor. Maturidade e experiência – e um longo hiato interrompido por outras duas reuniões e discos criados em 2003 e 2011 – fizeram bem. Em um sábado fraco de opções, o Jane’s Addiction chegou quietinho e fez uma puta (e despretensiosa) apresentação. Ainda terminou com uma batucada em homenagem ao amigo Taylor Hawkins, que morria havia exatamente naquela data, no ano anterior… horas antes do show do Foo Fighters na Colômbia e de viajar para tocar no Lollapalooza brasileiro.

Paralamas do Sucesso

Ter 40 anos de carreira fonográfica não é para qualquer um. Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone sabem disso e utilizam um arsenal de clássicos colecionados em sua extensa discografia para disparar um show magnífico. É hit atrás de hit  quase sem intervalo para respirar. Foi assim neste Lollapalloza, na tarde de sol de um domingo para uma maioria de plateia formada por GenZ e millennials. O repertório começou com canções mais representativas da faceta ska (“Vital e Sua Moto”, “Patrulha Noturna”, “Ska”, “Loirinha Bombril”) e passeou por toda a galeria das duas primeiras décadas de carreira, misturando reggaedubafrobeat, rock, citações (Tim Maia, Titãs, Raul Seixas) e muita injeção rítmica contínua para não deixar ninguém totalmente parado – pelo menos um dos pezinhos não teve como resistir. Herbert começou enfrentando problemas técnicos, contornados sabiamente com conversas fora do microfone com um roadie enquanto não parava de cantar as letras para a plateia. Tirando este pequeno detalhe, que não chegou a comprometer a apresentação aliás, os Paralamas mostraram toda a sua realeza na música pop nacional. Não precisa de firulas, telões, coreografias, trocas de roupa, andar para lá e para cá no palco ou ao redor dele. Só precisa de música. E muito boa música. Referências para se criar música de qualidade eles sempre tiveram também. São uma banda pós-punk brasilis roots (a sonoridade two-tone em verde e amarelo, inclusive com versos politizados e críticos transformados para a nossa realidade!) e isso ainda faz toda a diferença. Mesmo diante de uma molecada que não chegou a viver os tempos dos vinis e CDs lançados com essas músicas.

Aurora

É só começar a ouvir a sua extensão vocal de soprano que não tem como não embarcar junto nesta fantasia musical que é seu show. Ela mesma parece uma pequena e adorável duende, sempre a saltitar feliz e travessa pelos vastos campos verdes. Seu look também ajuda: vestes claras e em tonalidades pasteis, pés descalços, pele alva e um cabelinho curto e de um chanel tão branco quanto sua melanina norueguesa. Muita gente que estava ali na plateia sabia de cor e salteado as letras, cantava junto e se emocionava por estar na frente de Aurora Asknes. Pudera. A artista faz da voz um belo poder instrumental, além de ser hábil nas palavras para demonstrar seus mais profundos sentimentos acerca da vida e da natureza. Mas também não precisa ser expert na obra dela para se render ao poder desta guria escandinava, solta, espontânea, natural e sem qualquer maquiagem, capaz de provocar um midsommar tão contagiante aqui no hemisfério sul e em pleno cair da tarde de um domingo quente brasileiro.

Baco Exu do Blues

Ele entrou na grade do Lolla como uma rápida solução caseira para suprir o cancelamento quase em cima da hora de Willow, filha do astro Will Smith. E ainda entregou uma das mais emocionantes performances em língua brasileira deste Lollapalooza. Generoso, o baiano de quatro discos lançados nos últimos seis anos fez questão de não brilhar sozinho. No telão, prestou reverência a personalidades negras já falecidas como Marielle Franco, Elza Soares, Muhammad Ali, 2Pac Shakur e Nelson Mandela. E no meio do repertório montado com alguns de seus grandes sucessos ainda cedeu espaço lá na frente para cada uma de suas backings (Aísha, Alma Thomas e Mirella Costa) dividirem as atenções, o microfone e o gogó poderoso. Mirella, por sua vez, protagonizou uma emocionante homenagem à também soteropolitana Gal Costa, ao mandar, a capella, um trecho de “Força Estranha”. Mancando e dando passos lentos, Baco fez o que pode, cenicamente, para superar o estiramento na panturrilha sofrido poucos dias antes. E ainda mandou a letra para espinafrar o grande ausente da noite, Drake, sendo complementado por xingamentos dirigidos pelo público ao astro chiliquento canadense. Mostrou, como Kevin Parker (Tame Impala) na noite anterior, que nem sérias limitações físicas para a locomoção não podem servir como desculpa para não cantar aos fãs.

Tove Lo e Pabllo Vittar

Tove Lo

Outra atração nórdica dominical, a sueca mostrou que um show de música pop pode muito bem ser construído em cima de… música pop. Nada pode tirar o primeiro plano. Pelo contrário. Figurinos podem ser um bom complemento (no caso, uma roupa colante em tons verdes que lhe permitiu fazer o manjado gesto de mostrar os seios à plateia). Coreografias também. Mas um palco deve ser povoado por musicistas tocando seus instrumentos, cantora realmente cantando e dispensando playbacks descarados e a ausência de um time de bailarinos indo para lá e para cá, chamando mais a atenção dos olhos do que os ouvidos. Tove Lo é muito mais discípula de Madonna do que muita gente pode pensar. Ela canta, dança, brinca com a sexualidade diante de uma multidão e mostra ser uma artista de força suficiente para ter um longo futuro pela frente. E olha que ela já tem cinco álbuns feitos de 2014 para cá.

Cigarettes After Sex

Todo ilusionista sabe muito bem que o segredo do sucesso de sua performance está na habilidade de deslocar a atenção do público para um local diferente daquele onde realmente “acontece” o truque. A derradeira das três noites do Lolla, de fato, foi equivalente a um show de ilusionismo. Todo mundo esperando o headliner Drake e depois todo mundo desapontado e xingando o arredio Drake por nem ter viajado ao Brasil. Muita gente comentando o fato de que o DJ e produtor de IDM Skrillex havia sido escalado de improviso para ocupar o horário e o palco anteriormente destinado ao fujão. Muita gente indo embora ao cair da noite, já desesperançoso de que ali em Interlagos acontecesse mais alguma coisa estupenda no autódromo. Espertos, porém, foram aqueles que não arredaram o pé e ficaram no local (ou sintonizados no streaming) até as nove da noite, de olhos bem atentos a um dos palcos secundários. Ali, já aos 45 minutos do segundo tempo do festival, os acréscimos permitiram uma magnífica performance de um singelo trio norte-americano que, por meio da internet, tornou-se objeto de culto nos últimos anos por um pessoal mais antenado. O Cigarettes After Sex veio para impactar com todo o seu minimalismo. Cênico, com seus integrantes tocando quase sempre parados no palco, dispostos geometricamente lado a lado. Sonoro, com somente um vocal (de seu líder e criador Greg Gonzalez) e a mínima movimentação possível de baixo, guitarra e bateria. Havia uma textura de teclados pré-gravados disparada como pano de fundo para a maioria das canções. Mas isso só reforçou a atmosfera etérea e hipnótica do concerto. Fotógrafos não foram permitidos no pit à frente do palco. Quem ficou em casa assistiu a uma transmissão noir, que impôs a ausência de captação de qualquer cor pelas câmeras que não fossem o preto e o branco. Com ares de cabaré decadente, algo tipicamente David Lynch, o CAS fechou as cortinas da décima edição premiando poucos felizardos com algo meio difícil de acontecer em um grande festival. Truque de mestre.