Movies, Music

Saudosa Maloca

Inspirado na criação das canções (e em parte da vida) do sambista Adoniran Barbosa, longa acerta ao fugir de uma cinebiografia convencional

Texto por Abonico Smith

Foto: Elo Studios/Divulgação

João Rubinato é uma figura ímpar da música brasileira. Filho de imigrantes italianos, falava muita palavra de modo errado perante a norma culta da língua portuguesa. Também não tinha muita instrução formal. Largou a escola cedo, pois não gostava de estudar e ainda precisava trabalhar desde criança para ajudar a complementar a renda de casa. Mesmo assim, com muita perspicácia, criatividade e talento, criou uma série de canções que se tornaram, com o tempo, pérolas icônicas de qualquer roda de samba que se preze, seja na mesa do botequim ou no palco de um pomposo teatro. Entrou para a história da cultura nacional sob o pseudônimo de Adoniran Barbosa. Não exatamente como o cantor que sempre sonhou ser desde jovem. Mas como compositor de fortes melodias aliadas a letras irresistíveis, com muito humor e verve literária do cotidiano ligado às pessoas à sua volta, quase toda vivida na cidade de São Paulo.

O diretor e roteirista Pedro Soffer Serrano é um dos maiores admiradores da obra de Adoniran. Depois de assinar um curta baseado nas principais músicas  (Dá Licença de Contar, de 2015 – clique aqui para assistir à obra) e um documentário sobre o artista (Adoniran: Meu Nome é João Rubinato, de 2018 – clique aqui para ler a resenha do Mondo Bacana), ele agora chega aos cinemas de todo o país com o terceiro produto desta trilogia, um longa-metragem. Saudosa Maloca (Brasil, 2023 – Elo Studios) não é bem uma biografia do ídolo. Em pouco mais de noventa minutos de história, aliás, bem pouco ou quase nada se mostra em cena da vida pessoal de João. Seu dois casamentos, sua família, sua filha, inclusive sua trajetória artística. Esse negócio de “onde nasceu, como viveu, do que se alimentou, do que morreu” pode caber para o Globo Repórter, mas  não aqui. Serrano opta pelo mesmo esquema do curta e costura um Rubinato já na terceira idade contando histórias para um jovem garçom fã de suas canções.

Quase tudo se passa em flashbacks protagonizado pelo trio formado por João, Joca e Mato Grosso. Com calibrada dose de humor no roteiro, detalhes sobre experiências vividas por estes três amigos que se uniram em uma maloca improvisada em um casebre na região central paulistana lá pelos anos 1950, quando a sensação de transformações definitivas vinha com o estabelecimento da indústria cultural forte e o surgimento de arranha-céus no lugar de simples casas. Todos os três já estão bem crescidos, por volta dos 40 anos de idade e com um grande ponto em comum: o amor pela boemia e pela malandragem de uma época ainda de alto grau de inocência cotidiana, sem o menor tino para o trabalho de modo convencional.

É foi justamente este universo ao redor de Adoniran Barbosa o grande trunfo para o surgimento de canções inesquecíveis como “Conselho de Mulher”, “Iracema”, “No Morro da Casa Verde”, “Um Samba no Bixiga” e “Vila Esperança” ou “Samba Italiano” – isso somente listando algumas criações coadjuvantes dos greatest hits (“Samba do Arnesto”, “Trem das Onze”, “Tiro Ao Álvaro” e “Saudosa Maloca”). Por meio de versos e títulos de suas músicas, bairros (mais centrais ou nem tanto assim) como Brás, Bixiga, Jaçanã e Vila Esprança ganharam popularidade extramunicipal na segunda metade do século 20. Este longa destrincha um pouco de como e porquê as famosas obras acabaram circulando, primeiro pela tradição oral e depois sendo eternizadas por gravações lançadas no mercado fonográfico nacional.

Teria tudo o que é mostrado na tela acontecido realmente? Aliás, em um determinado momento o tal jovem garçom lança no ar uma boa pergunta: teriam mesmo existido os tais de Mato Grosso e Joca que estão nas contações e cantações de Rubinato? A resposta acaba vindo nas entrelinhas e de maneira categórica: pouco importa se sim ou se não. O que vale, afinal, é a exímia destreza de Adoniran Barbosa como um observador e cronista social do dia a dia de uma classe trabalhadora e de baixa renda em uma metrópole ainda se desenhando para o agigantamento desenfreado que ainda pode ser presenciado pelo artista no final de sua vida (ele faleceu em novembro de 1982, aos 72 anos).

Saudosa Maloca conta ainda com um elenco afiado. Repetindo os seus papeis no curta-metragem (que ainda tem algumas breves cenas reprisadas no longa), Paulo Miklos (João), Gero Camilo (Mato Grosso) e Gustavo Machado (Joca) estão deliciosamente impagáveis. Uma trinca capaz de arrancar gargalhadas e competir com os Trapalhões no momento áureo do grupo capitaneado por Renato Aragão logo após a estreia do programa na Rede Globo. Sidney Sampaio (o tal jovem garçom de nome Cícero) e Leilah Moreno (a garçonete Iracema, sempre cortejada pelos dois parças de maloca de Adoniran) reforçam a parte mais dramática do roteiro, ao passo que Paulo Tiefenthaler (o rico Pereira, homem da grana, da influência e do contraponto ao trio de zé ninguéns que andam quase sempre duros e sem comida em casa) e Zemanuel Piñero (o chapa Arnesto, aquele que convidou para um samba que não existiu em sua casa) se mostram brilhante como escada. Diversas vezes eles levantam a bola para Gero, Gustavo e Paulo subirem nas alturas e cortarem com tudo a bola rumo ao chão e marcarem diversos pontos.

Quem já é iniciado no fantástico mundo dos versos escritos por Adoniran Barbosa vai se deliciar com este longa-metragem repleto de inesquecíveis frases acidamente filosóficas pronunciadas pelo protagonista. Quem ainda não conhece ou pouco sabe de João Rubinato tem a grande chance de se apaixonar e virar fã de vez dele.

Music

Men At Work

Oito motivos para não perder o show do grupo que ajudou a colocar o rock australiano no mapa-múndi durante o início dos anos 1980


Texto por Janaina Monteiro

Foto: Divulgação

O que a Austrália tem? Canguru, bumerangue, didgeridoo, kiwi, coala, Crocodilo Dundee e… Men At Work. Sim! A banda que aterrissa novamente no Brasil neste mês de fevereiro é como se fosse uma entidade no país “continental”. Tal qual outras bandas que nasceram em terreno australiano como INXS, Midnight Oil, Bee Gees, Crowded House, Nick Cave & The Bad Seeds, Hoodoo Gurus… E o AC/DC, claro!

Com influências de reggae e sobretudo do pós-punk, o MAW atraiu a atenção do mundo e se tornou um verdadeiro fenômeno na primeira metade dos anos 1980, tendo alcançado mais de 30 milhões de discos vendidos e levado o Grammy de melhor artista novo de 1983. Entre os hits que marcam a história da banda estão “Down Under”, “Overkill”, “Who Can It Be Now?” e “Its a Mistake”. Seus clipes criativos, irreverentes e bem-humorados, fizeram muito sucesso nos anos iniciais da MTV americana.

Apesar de alcançar grande fama mundial, o MAW se separou em 1985. Colin Hay, que era o vocalista e também compositor, guitarrista e baixista, decidiu seguir carreira solo. Em 1996, a banda, como uma dupla, voltou à ativa (sem lançar material inédito), até se separar de novo seis anos depois. Greg Ham (teclados e sopros) morreu em 2012, após perder uma disputa judicial por conta de plágio. Ele fora acusado de ter se apropriado de uma canção folclórica australiana para criar o riff de “Down Under”. Portanto, da formação original sobrou apenas Hay, dono de um timbre inigualável e que agora chega em uma pequena turnê brasileira (Rio de Janeiro, Curitiba, São Paulo) com uma banda de apoio herdada de sua carreira solo – mais informações sobre datas, locais e ingressos você encontra clicando aqui.

Para quem pretende fazer essa viagem ao suprassumo do rock radiofônico daquele começo dos anos 1980, o Mondo Bacana lista oito motivos para não perder o show desses homens (e também duas mulheres) que estão a serviço da boa música pop.                               

Cria dos musicais da TV

Já parou para pensar em quantas bandas você costuma escutar e que vieram daAustrália? Pois é, esse país formado sobre uma gigantesca ilha na Oceania tem uma grande tradição pop, muito por conta de programas televisivos populares no estilo do Top Of The Pops, que faziam sucesso local entre os anos 1970 e 1980. Os adolescentes australianos que viveram essa época curtiam, sobretudo, as bandas britânicas – muitas delas, inclusive, chegavam a gravar vídeos exclusivos para se apresentar nesses programas. Colin Hay e Greg Ham, os cabeças do Men At Work, eram dois destes “discípulos” criados pela TV.

Pós-punk australiano 

O MAW faz parte de uma geração de bandas australianas que surgiram bebendo da fonte do punk e pós-punk norte-americano e britânico daquele finalzinho dos anos 1970. Contudo, deram uma pitada de criatividade aussie, experimentando novos sons à influência “estrangeira”. Muitas bandas da época, como Choirboys, Midnight Oil, Divinyls, Spy Vs Spy e Hoodoo Gurus foram influenciadas por grupos como Cure, Blondie, Television, Talking Heads e Joy Division. O que explica terem produzido discos de alta qualidade no decorrer dos 1980s.

Sucesso no Brasil

O MAW começou a fazer sucesso por aqui no início dos anos 1980, muito por conta dos programas esportivos da TV. E é por causa disso que o som desses grupos australianos foi classificado pelas bandas de cá como surf music. Nessa época, a TV aberta tinha uma tradição de exibir programas de esportes radicais. E, para cobrir as imagens dos surfistas e skatistas, os editores incluíam músicas de artistas australianos que estavam no topo das paradas. Só que o MAW fez tanto sucesso, mas tanto sucesso, que ainda segue aparecendo diariamente na programação de rádios de classic rock de várias capitais brasileiras

Empurrãozinho da Fluminense FM

Por falar em rádios nacionais, o Men at Work estourou no Brasil justamente por causa da Fluminense FM, que foi a grande responsável por impulsionar a carreira de nomes que desenharam o cenário rock dos anos 80 (Blitz, Kid Abelha, Paralamas do Sucesso, Lulu Santos, Ultraje a Rigor). A emissora carioca gostava de arriscar e adotava aqueles artistas que eram uma espécie de prediletos da casa. Por isso, no dial, os ouvintes jovens podiam curtir “novidades” como Police, Dire Straits e MAW, por exemplo.  

“Down Under”

Do seu álbum de estreia (Business as Usual, lançado em 1981 na Austrália), o MAW emplacou nas paradas os singles “Who Can It Be Now?” e “Be Good Johnny”. Mas foi “Down Under” que colocou os aussies de vez na boca da galera. O disco é considerado um dos mais bem-sucedidos do rock de lá, tendo vendido mais de 6 milhões de cópias apenas nos Estados Unidos, onde ficou por 15 semanas no topo da Billboard. A expressão down under é um apelido carinhoso dado à Austrália e se tornou uma espécie de hino extraoficial do país, ao refletir o estilo de vida dos jovens locais. Só que, além do sucesso, A canção trouxe uma dor de cabeça enorme, especialmente para Greg Ham, que chegou a ser processado por ter supostamente plagiado o riff de saxofone. O caso afetou demais a banda e o próprio Ham. Ele acabou perdendo o caso na justiça, passou a ter crises severas de depressão e ansiedade e morreu logo em seguida, vítima de um infarto.  

Sensação no US Festival

Tendo como um dos produtores o próprio Stevie Wozniak, cofundador da Apple, o US Festival, organizado em setembro de 1982 em San Bernardino (Califórnia, EUA), trouxe o Men at Work como uma das atrações principais, que proporcionaram um desfile de sensações do “novo rock”da época (Clash, B-52s, Gang Of Four, Talking Heads, Police, Cars, Oingo Boingo, Ramones). A apresentação de Colin Hay (guitarra e vocais), Ron Strykert (baixo), Jerry Speiser (bateria), Greg Ham (flauta, saxofone e teclados) e John Rees (baixo e violão) foi um marco para a banda e é relembrada na série documental This is Pop, da Netflix. O US Festival trouxe o crème de la crème das bandas de new wave que estavam estouradas nas rádios americanas naquela época. O evento abriu caminho para outros festivais ao redor do mundo. Entre eles, o nosso Rock in Rio, cuja primeira edição seria realizada em janeiro de 1985. 

Estreia brasileira no Rock in Rio

Único sobrevivente da banda, Colin Hay tocou pela primeira vez no Brasil na segunda edição do Rock in Rio. Ele estava em carreira solo e, logo no primeiro dia do festival, enfrentou uma multidão de fãs no Maracanã, que também assistiram naquele 18 de janeiro de 1991 a artistas como Jimmy Cliff, Joe Cocker e o headliner Prince. Para muitos, esta foi a melhor escalação de todos os tempos do RiR. Além de Prince, vieram muitos artistas internacionais que faziam enorme sucesso na época, tanto nas rádios como na recém-inaugurada versão tupiniquim da MTV. Entre estes nomes estavam INXS, A-ha, Faith No More, George Michael, Deee-Lite, Run DMC, Billy Idol, New Kids On The Block, Happy Mondays, Information Society… e o Guns´n Roses, com Axl e Slash debutando em terras brasileiras.  Ê tempo bom de nomes chamados para esse festival

Retomada pós-pandemia

Desde que parou com o Men At Work, Hay seguiu solo e até chegou a integrar por um tempo a All Starr Band, de Ringo Starr. Até que, em 2019, às vésperas da pandemia, decidiu retomar o repertório clássico do MAW com um time de músicos de acompanhamento de palcos e estúdios de Los Angeles, bem ao esquema do que fazem muitas outras bandas famosas por aí. Agora, entre 17 e 21 de fevereiro, eles aterrissam em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba trazendo a nostalgia daquela veia pop dos anos 1980 de um aussie rock cheio de criatividade e irreverência.

Books, Movies

Pobres Criaturas

Cineasta grego Yorgos Lanthimos retoma as provocações com uma espécie de Frankenstein feminista e Emma Stone em atuação magistral

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Se alguém ainda poderia ter dúvidas sobre esse cineasta nos últimos anos, Pobres Criaturas (Poor Things, Irlanda/Reino Unido/EUA, 2023 – Fox/Disney) chega hoje aos cinemas brasileiros confirmando o que muita gente já tinha como certeza: Yorgos Lanthimos saiu da Grécia para chegar em Hollywood para perverter e perturbar. Depois de bem-sucedidos balões de ensaio, adorados pelos fãs de um circuito mais alternativo (Dente Canino, O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado, obras lançadas entre 2009 e 2017), ele foi alçado simultaneamente à condição de cult e pop com A Favorita, em 2018. Beliscou várias indicações durante as premiações principais da temporada e levou alguns Baftas para casa. Sua protagonista, Olivia Colman, arrebanhou não só o troféu britânico como também o Globo de Ouro e o Oscar de atriz principal.

Agora ele mete de vez o pé na porta com essa adaptação do romance de Alasdair Gray como ainda vem para bagunçar mais o coreto. A obra literária do controvertido escocês já é um primor ao recriar (ou melhor, perverter) o clássico gótico Frankenstein. Trazida para as telas, então, reforça ainda mais o caráter provocativo da trama acrescentando ritmo e imagens ainda mais perturbadores.

Um renomado cientista, cheio de si e nem aí para a ética em nome de pesquisas que podem mudar o curso da humanidade, decide reviver uma jovem grávida que acabara de se matar pulando no rio Tâmisa, em Londres. Sem perder muito tempo, ele tira o cérebro do bebê que ainda estava na barriga e o implanta na moça, a quem passa a chamar de Bella e tratar como filha. Em um corpo de adulto, ela passa a viver novamente mas tendo reações tipicamente infantis. Aos poucos ela precisa reaprender tudo: falar, comer, interagir com as outras pessoas. Tudo de acordo com o que manda a sociedade vitoriana do começo do século 20, com todos os seus absurdos patriarcais e machistas.

Como nada em Lanthimos é comum, ainda mais quando apoiada na fina ironia de Gray, o público pode esperar muitas quebras de paradigmas nesta relação entre Bella (Emma Stone) e o “pai” Godwin Baxter (Willem Dafoe). Para começar, a estética humana é justamente o oposto do que todo mundo aprende ainda criança sobre Frankenstein. A criatura representa a beldade enquanto o horror físico sobra para o criador (a quem ela chamada carinhosamente pelo apelido God – “Deus” em inglês), cujo rosto é todo marcado por grandes cicatrizes. Depois, a inteligência da jovem passa não só a se desenvolver de maneira rápida, como ainda questiona de modo pontiagudo comportamentos e dogmas sociais como também age quase instantaneamente para modificar o status quo do conformismo, da manutenção das elites e da submissão feminina.

Bella volta a se tornar “jovem”, já com desejos sexuais (mas que não cabem muito bem no papel social que todo mundo espera que ela passe a representar) e o desejo de conquistar o mundo para crescer ainda mais por dentro. Ela se casa com um nojento aristocrata (o advogado Duncan Wedderburn, interpretado por Mark Ruffalo) e parte em uma longa viagem de navio ao redor do Mediterrâneo. Começa por Lisboa, passa pelo norte africano e acaba em Paris, onde se livra do encosto marital para provocar uma fugaz revolução trabalhando como prostituta e mandando ver em discursos feministas e políticos.

O ritmo rápido e envolvente dado pela montagem e pelo roteiro divertem o público, que se rende ao encanto e talento de Emma Stone em sua atuação durante as várias etapas e facetas de Bella. Não à toa, a atriz é considerada a favorita para levar o Oscar em sua categoria e o filme somou ao todo 11 indicações para a estatueta mais comentada da indústria do cinema, perdendo em número apenas as 13 de Oppenheimer.

Independentemente do que o filme levar para casa ou perder para a concorrência, uma coisa é certa. Seguindo o fluxo da comédia farsesca impresso de modo mais amplo em um filme seu desde A Favorita, Lanthimos se consolida de vez como um dos nomes a serem seguidos de perto pelos próximos anos. Já com o apoio e o reconhecimento de Hollywood e com apenas 50 anos de idade, ele ainda tem muita coisa para trazer às telas. E com certeza trazendo na esteira com muitas provocações, burburinhos e aplausos.

Movies, Music

Priscilla

Cinebiografia assinada por Sofia Coppola mostra como, longe dos holofotes, o idolatrado Rei do Rock prendia a esposa em uma gaiola

Textos por Janaina Monteiro e Abonico Smith

Fotos: O2/Mubi/Divulgação

As lágrimas custam a cair dos belos olhos azuis de Priscilla Beaulieu. Aos 27 anos, em 1972, a jovem texana simetricamente perfeita está diante de um Elvis Presley milimetricamente sugado pela exaustão da fama e já em processo de deterioração. Ela, finalmente, consegue dizer “não”.

Cilla, como era carinhosamente chamada pelo eterno Rei do Rock, sai de cena antes de assistir à derrocada de um dos principais artistas de todos os tempos, ídolo de uma geração. Um astro de tamanha magnitude, cujo brilho, aos poucos, ia sendo ofuscado pelos excessos. 

“O casamento transforma muitas loucuras curtas em uma longa estupidez”, escreveu o alemão Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra, obra que inspirou o também alemão Richard Strauss a compor seu poema sinfônico de mesmo nome (Also Sprach Zarathustra). A música foi tema do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço e serviu de introdução para a turnê de Elvis nos anos 1970, em arranjo assinado e gravado pelo brasileiro Eumir Deodato. 

No semblante de Priscilla, interpretada gloriosamente por Cailee Spaeny no filme homônimo da diretora Sofia Coppola, o espectador acompanha a odisseia da ex-mulher do astro. É o desgaste de um relacionamento que começou em um terreno puro e cristalino e culminou em um árido deserto chamado ofuscamento e solidão. 

O que vemos em Priscilla (EUA, 2023 – O2/Mubi) é um blend de emoções: a triste decepção do não finalmente dito se une ao alívio de um sim. Um sim diferente daquele que simbolizava a autorização dos pais de Priscilla em consentir o relacionamento amoroso entre uma adolescente de 14 anos e um dos rapazes mais cobiçados do mundo, que na época tinha 24. 

Era um sim diferente daquele proclamado seis anos antes, quando Elvis pediu o amor da sua vida em casamento. Trata-se do sim à liberdade, do sim à busca pelo sua verdadeira identidade. Uma resposta que exigiu muita força e coragem para ser verbalizada.

Como num soneto de Vinícius de Moraes, o conto de fadas que havia começado em 1959, chegava ao fim. Mas, nesse caso, é Dolly Parton quem entrega a trilha sonora do desfecho de uma das histórias de amor mais icônicas do mundo, “I Will Always Love You”, canção composta por uma das mais representativas cantoras da country music e que, inclusive, Elvis tentou gravar mas não conseguiu. 

Nesse coming of age, Sofia Coppola acrescenta mais uma mulher forte e solitária à sua lista de protagonistas e se torna especialista em levar relacionamentos tóxicos às telas. Como no caso de Encontros e Desencontros, que, aliás, trata do próprio divórcio de Sofia com o diretor de cinema Spike Jonze. 

Coppola, com a montagem frenética e elipses temporais que já se tornaram sua marca registrada, consegue condensar esse romance supostamente improvável diante das inúmeras assimetrias da vida. Mas nem a diferença de idade (10 anos) e nem a diferença de altura (Priscilla tem 1,63; Elvis, 1,82) serviram de obstáculo para o casal. Priscilla estava no lugar certo, na hora certa.  

Inspirado na biografia Elvis e Eu, lançada em 1985 e assinada por Priscilla Presley e Sandra Harmon, o filme chega aos cinemas brasileiros no ano seguinte ao lançamento de Elvis, de Baz Luhrmann, em que todos os holofotes se voltavam ao grande ídolo pop do século 20 e sua relação turbulenta com o pai e o empresário salafrário. Contudo, agora, pela primeira vez, Elvis é o coadjuvante da história retratada a partir da versão de sua ex-mulher.

Coppola nos faz mergulhar de cabeça entre os anos de 1959 e 1973. Para isso, utiliza outra caraterística de sua cinematografia: uma trilha sonora impecável, que traz hits daquela época, alguns em versões mais recentes como “Baby I Love You”, de Ramones. As músicas que eram sucesso na voz de Elvis e não foram autorizadas para o filme definitivamente não fizeram falta.

De início, já somos fisgados pelo ar angelical da protagonista, que era fã de Elvis (afinal, quem não era?). Da fase idílica do relacionamento até a separação, imergimos no mundo de Priscilla, solitário e puro, que transparece na paleta de cores usada pelo diretor de fotografia Philippe Le Sourd (que trabalhara com a cineasta em O Estranho que Nós Amamos). 

Interpretado por Jacob Elordi (mais conhecido por aqui pelo trabalho no filme A Barraca do Beijo), o furacão Elvis é visto aqui em sua intimidade, com seus caprichos, manias e vícios. Com seu jeito sedutor de falar, suas pernas inquietas, seu gosto por decoração esdrúxula. Mas longe do spotlight e do frenesi ao redor, existia um drama particular: as dores de Priscilla ao se tornar a senhora Presley. 

Sofia permanece fiel ao início da biografia e nos introduz à protagonista ao som dos acordes oníricos de “Venus”, de Frankie Avalon, na fase em que ela está na Alemanha. No livro, Priscilla conta que, como seu pai era oficial do exército, as mudanças eram constantes em sua vida, o que dificultava manter laços de amizade. Portanto, quando ela é abordada por um amigo de Elvis, que a convida para ir à casa do cantor, o tédio de seus olhos se transforma em esperança.

No primeiro ato, acompanhamos o encontro de dois corações solitários. A adolescente tímida, que ainda não usava as maquiagens e roupas cheias de glamour, e um astro da música e do cinema, que havia recém perdido a mãe. Depois do primeiro encontro, a adolescente passa a viver nas nuvens e numa constante espera por alçar voo. Se uma garota já perde o chão por um simples mortal, imagina quando esse namorado se trata de Elvis Presley. 

Apesar da diferença de idade, Priscilla acreditava que Elvis havia encontrado nela uma confidente, alguém para conversar. Aos poucos, entretanto, o filme nos mostra como ela era moldada conforme a vontade do rei. Trata de como o rei a prendeu numa gaiola.

Quando é convidada a se mudar para Graceland, em Memphis, Priscilla passa por uma transformação aquém da sua vontade. É Elvis quem dita como ela deve se vestir (“listras não valorizam o seu corpo”), como se maquiar (devia usar o delineador mais marcado para valorizar os traços) e até a cor do cabelo. Elvis também lhe oferece pílulas para dormir (que são uma constante no filme!) e a introduz no mundo psicodélico do LSD. E assim segue a viagem pelos anos 1960, com olhos delineados de gatinho, sapatos de salto alto adornados com margaridas e laquê. Muito laquê.

Priscilla vira uma espécie de bibelô de Elvis. Uma boneca de porcelana intocável e munida de uma resiliência impressionante. Tanto é que seu relacionamento leva anos para ser consumado. Não por sua vontade, mas por capricho e prudência de Elvis. O romance permanece limitado a beijinhos e abraços, tanto é que muitas das cenas são rodadas com o casal na cama, como num namoro adolescente. Cristão devoto, Elvis pedia para que ela esperasse o momento certo. 

Enquanto o marido viajava para gravar seus filmes, Priscilla passava seus dias em Graceland acompanhando as mesmas revistas de fofoca que agora estampavam os supostos affairs dele. Numa certa altura do filme, a angústia chega a tomar conta. Será que ela vai suportar tudo isso sem se rebelar? Sem gritar? Sem se descabelar? 

Até que, afinal, chega o momento do confronto. E a resposta de Elvis é direta: quero uma mulher que seja capaz de entender e suportar essa situação. Nesse ponto, Cailee mostra porque foi indicada ao Globo de Ouro. Sua fisionomia expressa a dualidade de sentimentos: o olhar frustrado e amargurado diante dos rumores rapidamente se transforma numa postura de conformismo. Priscilla é a oficial e conseguiu cumprir o pacto das vistas grossas que tantos casais famosos acabam assumindo. 

Por outro lado, o roteiro de Sofia mostra um Elvis que também buscava transcender, seja com LSD ou com suas leituras sobre espiritualidade, como o livro Autobiografia de um Iogue, que ele queima depois na fogueira. Infelizmente, Elvis não teve um coach ou um empresário à altura.

E quando os dois finalmente se casam, Coppola opta pela elipse: Priscilla ressurge grávida de Lisa Marie, que, por sinal, não aprovou o roteiro da cinebiografia. À imprensa internacional, disse que pai fora retratado como um sujeito predador e manipulador. 

Nas cenas pós-créditos da vida real, Priscilla conhece um novo amor: o brasileiro Marco Antônio Garibaldi, de Curitiba, com quem teve um filho, o músico Navarone Garibaldi (Garcia), e de quem também se separou. Esta é a prova de que o mundo dá voltas. É a prova que nossas escolhas definem o nosso destino. (JM)

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Priscilla (EUA, 2023 – O2/Mubi) é, como entrega seu título, sobre Priscilla Presley, por mais que Elvis apareça em cena como um belo coadjuvante da história (e, detalhe, quase nunca em ação em palcos e estúdios). Só que justamente por retratar a intimidade da esposa do astro e sua conturbada relação conjugal que se arrastou por mais de uma década do lado de dentro dos suntuosos portões de Graceland que é perfeitamente possível dar uma de Gay Talese (que em 1965 cunhou um marco do New Journalism fazendo uma extensa reportagem-perfil sobre Frank Sinatra apenas entrevistando mais de uma centena de pessoas que gravitavam ao redor dele e sem trocar uma palavra com o astro) e perceber, no decorrer das cenas dirigidas e roteirizadas por Sofia Coppola, uma “cinebiografia paralela” do Rei do Rock.

Ok, você pode até argumentar que Baz Luhrmann já havia feito isso ano passado, com louvor e inclusive recebendo prêmios e indicações ao Oscar. Só que o objetivo de seu filme era justamente revelar como determindas particularidades da vida pessoal do cantor transformaram-no na persona pública que conquistou o mundo. O longa de Sofia, que faz da ancoragem da perspectiva feminina a principal marca em toda a sua trajetória de cineasta, revela justamente o inverso: como o maior astro do rock’n’roll interferiu no cotidiano de quem mais tempo esteve ao seu lado sem ter  vínculos familiares.

Por meio de aparições do Elvis ídolo pode-se ver como tudo isso o tornou em opressor, agressor, vilão. Claro que a intenção de Coppola passa longe do maniqueísmo, por mais que a filha Lisa-Marie, nos meses que antecederam a precoce morte, tenha chiado publicamente com a diretora e roteirista a respeito do modo como seu pai fora retratado por ela. Também não há a intenção de embate com a extensa legião de fãs do artista. Pelo contrário: entendendo como Elvis interagia com o mundo dá para entender como isto prejudicou (e bastante) a intimidade com a companheira, dez anos mais nova. Vale a pena ressaltar também que o filme é adaptado das memórias escritas por Priscilla e que a própria é diretora executiva da empreitada. Portanto, a fidelidade aqui é alta e sem passar pano para a imagem construída pela indústria do entretenimento.

Aqui estão oito passagens de Priscilla que servem também como testemunho de quem viveu de perto um pouco da História do rock.

A invenção da adolescência

Foi tudo culpa do cinema de Hollywood e seu amálgama com o efervescente rhythm’n’blues que saiu dos guetos noturnos negros para dominar rádios e lojas de discos com o novo batismo de rock’n’roll. No decorrer da primeira metade dos anos 1950 os mais jovens começaram a se sentir representados nas grandes telas. Seus problemas, suas angústias, seus comportamentos muitas vezes erráticos diante de uma sociedade repressora e, sobretudo, o fato de querer gritar ao mundo que, mesmo deixando de usar calças curtas e serem tratados como crianças, eles eram bem diferente do mundo chato de seus pais, tios e avós. O rock fez a função de trilha sonora de toda essa rebeldia que, de fato, já andava sendo reproduzida havia alguns anos nas ruas dos grandes centros urbanos estadunidenses. Os filmes representaram a mola propulsora para amplificar essa nova voz. Elvis era um apaixonado pela sétima arte. Decorava inúmeras falas de longas que via repetidas vezes e seu sonho era atuar em Hollywood, tal qual seus principais ídolos, James Dean e Marlon Brando – inclusive passando um período estudando no Actors Studo, em Nova York. Por sua vez, Priscilla era uma garota que, entre muitos nomes do rock, curtia ouvir… Elvis Presley.

Saudades da mãe na Alemanha

Em razão da carreira do padrasto nas Forças Armadas dos EUA, Priscilla morou em várias cidades e também outros países durante a infância e começo da adolescência. Por isso, sua maior dificuldade era fazer amizades por onde passava. Durante a passagem por Wiesbaden, na Alemanha, acabou conhecendo Elvis Presley por intermédio de um convite de um amigo dele, que a vira numa lanchonete bastante frequentada por jovens na região. Ela tinha apenas 14 anos e ainda estava no colégio. Ele, aos 24, já um astro do rock consolidado e dera uma pausa na carreira musical para, durante 18 meses, prestar o serviço militar em base estadunidense fixada por lá. O cantor estava abalado com a perda precoce da mãe Gladys, com quem possuía uma forte ligação sentimental. Foi justamente na ingenuidade dos 14 anos de Priscilla que Elvis afirmava ter reconhecido a pureza que enxergava na mãe, que falecera aos 46 durante o período vivido em solo germânico. Foi de presente para mãe que Elvis comprou a mansão chamada Graceland, onde morou ao voltar aos EUA e ficou até a sua morte. Foi para Graceland que Elvis levou Priscilla em definitivo, em 1962, depois da garota terminar suas obrigações escolares na Alemanha. Só que, em nome da manutenção de sua imagem pública de sex symbol e a garantia da alta popularidade, o artista se negava a se expor em fotos e aparições junto com a namorada.

Máfia de Memphis

Graceland era enorme. Não servia apenas como residência de Elvis. Era também seu escritório de trabalho, com direito a duas secretárias para fazer tudo o que o astro, seu pai Vernon e seu empresário Coronel Tom Parker solicitavam. Mas também o local era repleto de seus amigos inseparáveis. Uma turma de machos que ganhou a singela alcunha de Máfia de Memphis. Andavam sempre a tiracolo, parasitando a boa vida que ele levava na condição de artista multimilionário, Rei do Rock e, a partir de então, ator que carregava multidão de fãs ao cinema para ver seus filmes. Elvis carregava o pessoal para cima e para baixo, para suas viagens a Los Angeles e aos sets de filmagem. Com eles fazia tudo o que homens jovens foram acostumados a fazer em uma sociedade machista e patriarcal: se divertir em conjunto, deixando as mulheres de lado e em muitos casos menosprezando-as a maltratando-as verbal, física e psicologicamente. Com Priscilla “trancada” em Graceland, muito de seu cotidiano era acompanhar as travessuras pós-adolescentes do menino Elvis por meio de notas e matérias publicadas pela imprensa.

Viva Las Vegas

Umas das muitas decepções de Priscilla com o comportamento de Elvis ocorreu durante as filmagens de Viva Las Vegas (de 1964, que no Brasil ganhou o título de Amor a Toda Velocidade). Ignorando total e completamente a existência dela Graceland, o astro se apaixonou pela colega de elenco Ann Margret e nem sequer se importou em tomar cuidados para não tornar a relação pública. Só que o caso não durou muito tempo. Foi árduo durante as filmagens, mas, depois que a imprensa descobriu e passou a noticiar o tórrido romance (chegou a se falar até sobre noivado que nunca existiu!), a atriz sueca confrontou o parceiro e Elvis deu para trás no período da divulgação do filme por causa de Priscilla. O astro, também, sequer foi à pré-estreia em Londres porque Tom Parker não tinha passaporte não poderia sair do território estadunidense. Em Viva Las Vegas, Presley interpretava um obcecado piloto de corridas que quer participar de uma disputa na cidade dos cassinos mas é obrigado a enfrentar o revés de perder o dinheiro que usaria para comprar um motor possante. Como solução, passa a trabalhar de garçom. É aí que ele conhece uma bela professora de natação (Margret). Contudo, a relação não engrena por dois motivos: ela se sente incomodada com os riscos à vida que a velocidade do automobilismo pode trazer e ainda fica dividida ao ser cortejada por um nobre italiano que, ao contrário do protagonista, alardeia que largaria a paixão por carros caso encontrasse um grande amor.

Mão de ferro

Tom Parker sempre foi o grande manda-chuva da carreira de Elvis. Muito pela ingenuidade e credulidade do jovem, que deixava todas as questões “burocráticas” na mão do empresário para ficar livre para se divertir e performar. Isto deixou Parker com poderes totais para negociar e decidir tudo o que envolvia os bastidores da marca Elvis Presley. Se com o tempo este fator foi deixando-o com ares de vilão, trouxe também benefícios à então estrela em ascensão meteórica: o velho coronel soube trabalhar como ninguém a imagem do galã em seus primeiros anos de carreira. O licenciamento de Elvis foi vinculado a diversos tipos de produtos do dia a dia e impulsionou ainda mais a conquista da horda de fãs, primeiro nos Estados Unidos e depois mundo afora.

Frustração com o cinema

Se para o jovem Elvis Presley o cinema era uma grande paixão, ao longo de sua pausa na carreira musical tornou-se também sua grande frustração. Longe de ser aclamado publicamente pela imprensa especializada como um grande ator, passou a culpar os papeis, personagens e roteiros escolhidos por Tom Parker pelo “fracasso” na investida. Os milhões de dólares feitos pela sucessão de longas-metragens não faziam seus olhos brilharem. Ele estava cada vez mais inclinado a retomar de vez o caminho da música.

Retorno aos palcos

De saco cheio com os filmes “vazios” que estrelava para Hollywood, Elvis começou a forçar a barra com Tom Parker para retornar ao seu “habitat natural”: os palcos. Depois de quase uma década de ausência, acertou seu retorno em um especial para a TV no fim de ano. Já estava mais do que atrasado para isso. Afinal, o posto de Rei do Rock já estava mais do que perdido para os Beatles, que havia quase meia década mandavam e desmandavam nas paradas, vendagens e histeria da juventude. As filmagens ocorreram em meados de 1968 e o que seria inicialmente um programa voltado ao Natal transformou-se em um furioso retorno de um Elvis, agora bem mais velho e seguro de si, vestindo preto e voltando a flertar com a música negra, sobretudo o furioso soul de um EUA embalado pela luta por direitos raciais, civis e femininos. No dia 3 de dezembro, a NBC levou ao ar em rede nacional o programa. A melhor parte foi a seção intimista, com o astro ladeado pelos músicos de sua banda e em um palquinho cercado pelo público.

Residência em Las Vegas

Tom Parker não podia sair do território americano: ele não tinha passaporte por ser imigrante ilegal nos EUA. Então, a saída foi armar uma residência triunfal de Elvis em Las Vegas, terra da gastança de dinheiro em hotéis luxuosos e cassinos. A ideia deu tão certo que, entre 1969 até a morte do cantor em 1977, foram realizados 636 concertos, sempre com plateia lotada e o recebimento de todos os convidados VIP no camarim logo após. Durante  cada período de shows, eram realizados dois deles por noite. Portanto, esta intensidade provocou um turbilhão movido a drogas na vida de Elvis, cada vez mais, deixando o cotidiano com Priscilla completamente de lado até o envolvimento dela com o professor de artes marciais e as consequentes separação e “fuga” de Graceland. (AS)

Movies

Nosso Amigo Extraordinário

Misteriosa criatura que literalmente cai do céu transforma o dia a dia de um idoso rabugento em tocante drama de premissa sci-fi

Texto: Abonico Smith

Foto: Synapse/Divulgação

Na língua inglesa, o termo stranger designa tanto “estranha/o”ou “estrangeira/o”. Pode ser algo ou alguém que chega de outro lugar ou mesmo da própria região mas que não seja codificável de alguma forma para a gente. E é justamente esta ambiguidade de significados que faz esta palavra ser a grande norteadora de um filme como Nosso Amigo Extraordinário (Jules, EUA, 2023 – Synapse), que estreou nesta quinta-feira nos cinemas brasileiros.

Primeiro conhecemos Milton Robinson (Ben Kingsley), que representa o estranho. Aos 78 anos, ele vive sozinho em uma pequena cidade do oeste do estado da Pensilvânia. Viúvo, ele não fala com o filho por causa de divergências parentais do passado. A filha Denise, veterinária, é o seu único elo familiar, embora as conversas sejam poucas, praticamente por telefone e à base de algumas turras. A idade avançada ainda dá indícios de que desenvolve sinais de Alzheimer, como uma constante apresentação de repetições e esquecimentos. Sua vida consiste basicamente em ficar em casa assistindo a alguns programas de televisão e se reunir periodicamente com outros moradores da região em uma assembleia pública para sugestão de ideias que possam vir a causar algum tipo de benfeitoria para o município. Contudo, ninguém parece levá-lo muito a sério, sobretudo quando abre a boca para dizer alguma coisa.

O cotidiano de Milton começa a ganhar um novo sentido quando em uma noite, de uma hora para a outra, desaba um OVNI no quintal de sua casa e uma criatura alienígena se vê presa e perdida na Terra, sem poder fazer muito para voltar logo para casa. De aparência humanoide, cor cinzenta e temperamento pacífico e amigável, ela não emite qualquer som. Apenas se comunica com Robinson por meio de olhares expressivos e poucas movimentações corporais. Também não existe nela indicação de gênero sexual. Por isso, o batismo de Jules – dado por uma amiga de Milton que acaba descobrindo a/o “hóspede secreto” – lhe cai bem. Afinal, este nome de origem francesa é neutro, serve tanto para o masculino quanto o feminino.

Jules comanda uma revolução na vida do aposentado. Aos poucos, sua rabugice, em muito provocada pelo sentimento de solidão, transforma-se em amizade. Quem também experimenta a mesma sensação são duas amigas de mesma faixa etária (porém de pensamentos, progressista e conservador, completamente em oposição uma da outra).Elas não só descobrem o grande segredo do protagonista como também passam a dividir confidências de vida e nutrir amor pela criatura que literalmente caiu do céu. O ser alienígena passa a atuar como uma espécie de psiquiatra: dá ouvidos para as confissões e lembranças dos terráqueos e, assim, faz com que eles se sintam melhor ao passar a limpo tudo o que sentem com as pessoas e as coisas ao redor deles. Tudo porque agora já possuem uma companhia para conversar e que lhes dê a devida atenção.

Mais conhecido em Hollywood por outra função nos bastidores de Hollywood, a de produtor (no seu currículo estão longas como Pequena Miss Sunshine, Uma Vida Iluminada e o recente Um Lindo Dia na Vizinhança), o diretor Marc Turtletaub esbarra na tangente da ficção científica para conceber um bom drama sobre o comportamento humano. O roteiro dá umas capengadas, ainda mais na fase em que o governo americano, que procura esconder dos cidadãos a existência do disco-voador visto no céu da cidade, manda os policias locais investigarem (e depois invadirem) a casa de Milton. A trilha sonora assinada pelo alemão Volker Bertelmann, vencedor do último oscar da categoria por Nada de Novo no Front, também exagera nas pontuações do stacatto em demasia para demonstrar toda a tensão vivia pelos quatro personagens principais do ato final.

Uma coisa, porém, é inegável: a grande atuação de Jade Quon como Jules. Debaixo de uma caprichada maquiagem de rosto e corpo (que levava horas e horas para acabar e precisou ser feita trinta vezes no total durante as filmagens), a atriz, de traços e ascendência asiática, um metro e meio de altura e que também é mais conhecida em Hollywood por outra função, a de dublê, se mostra soberba nos olhares e nos gestos econômicos, sutis. Somando-se à experiência e ao talento de Kingsley, provoca uma bela química na tela e mostra que nem sempre o uso de CGI é tão necessário assim para um filme de premissa sci-fi.

Nosso Amigo Extraordinário é obra pequena no orçamento e nas pretensões, mas grande no resultado e nas emoções despertadas em quem a assiste. Pena que o título em português soe tão deslocado (e óbvio demais) ao perder a ambiguidade e o mistério do nome original. Certas vezes, para o bem desta obra, torna-se recomendável manter os trunfos de um idioma estrangeiro e achar estranho que o público brasileiro possa vir a entender.