Music

Lulu Santos – ao vivo

Show realizado no dia do aniversário de 70 anos do artista mostra erros e acertos e dá início à nova turnê Barítono

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Lulu Santos nunca foi um cantor na acepção da palavra. Tem afinação, noção e inteligência vocais mas ele sempre foi mais notável por conta de sua impressionante capacidade de compor canções de sucesso do que por cantá-las. Tudo bem, vários artistas são assim. A gente entende, compreende e aceita. Porém, à medida que o tempo passa, determinadas questões tendem a ganhar mais importância e, no caso de Lulu, passam a atrapalhar. A estreia de seu novo showBarítono, via especial no Multishow e Globoplay, exibida no dia 4 de maio, quando ele completou 70 anos de idade, mostrou que Lulu, infelizmente, tem uma capacidade vocal bastante reduzida hoje em dia. Mesmo mudando o tom de algumas canções, mesmo usando backing vocals, a impressão que se tinha era que ele explodiria as veias do pescoço.

Tudo bem, novamente. A gente sabe, a gente entende. Como disseram nas redes sociais, “Lulu tem 70 anos, isso deve ser levado em conta”. Ora, então o que fazemos com outros artistas que, mesmo depois desta idade: seguem nos palcos com capacidade pra lá de razoável?  Nem precisa ir muito longe: o que dizer de Maria Bethânia ou do próprio Caetano Veloso, que, como Lulu, também nunca teve grande capacidade vocal? Ou Guilherme Arantes, o finado Erasmo Carlos… Enfim, o fato é que o próprio Lulu percebeu e admitiu o fato, como revelou à apresentadora Fátima Bernardes em entrevista prévia: “Algumas canções dos meus primeiros dez anos de carreira ficaram muito complicadas para cantar”.

Lulu se saiu bem em momentos como “Aviso Aos Navegantes” e “Um Pro Outro”, cujos arranjos comportaram melhor seu registro atual, gravíssimo. Aliás, as escolhas no set list comprovaram outro dado crucial sobre sua carreira: sua capacidade de escrever sucessos se esgotou no início dos anos 2000. Nos 20 anos seguintes, sua fonte parece ter secado. Tudo bem que o álbum mais recente, Pra Sempre (2019), tem sonoridade respeitável e, pelo menos, duas belas canções: “Orgulho e Preconceito” (que entrou no set list) e a faixa-título, mas nunca poderiam ser comparadas a sucessos de outros tempos. Sendo assim, a mais recente que surge no roteiro deste show é “Já É”, de 2003, que, para compensar o fato, é uma das mais inspiradas criações da carreira do homem e foi hit enorme.

De resto, as canções com Gabriel O Pensador (“Astronauta” e “Cachimbo da Paz”, cantadas pela dupla nessa noite) e “Janela Indiscreta” (num bom resgate de repertório), todas do Acústico MTV, lançado em 2000, são as mais recentes se não for levada em conta também a inédita “Presente”. O forte se concentrou nos anos dourados da década de 1980, quando Lulu, de fato, foi absoluto. Porém, mesmo com canções do calibre de “Casa”, “Condição”, “Satisfação”, “Tempos Modernos”, “Um Certo Alguém”, “A Cura” e várias outras no bolso do colete, a questão do registro vocal puxou a coisa para baixo. Pelo menos para ouvidos mais exigentes. A banda que o acompanha é competente e enxuta, com destaque para o baixista Jorge Ailton – que também ajuda nos backing vocals – e o baterista Sergio Melo, que segura a onda com firmeza e joga para o time, mas não consegue driblar a limitação vocal. Em tempo: se há algo realmente notável na banda, é o próprio Lulu, que segue como um dos grandes guitarristas da história do pop rock nacional em todos os tempos.

No Teatro Multiplan (RJ) com a plateia com vários globais – que iam de integrantes da Central Globo de Jornalismo a pessoas como o chef Felipe Bronze, o cantor Leo Jaime, o genial comentarista carnavalesco Milton Cunha e uma procissão de rostos novos que me pareceram absolutamente desconhecidos –, o clima do show era de uma grande festa da firma, com um convidado especial, que também é da firma (lembrem-se, desde 2012, Lulu Santos é jurado do The Voice – ironia define).

Lulu é artista competente e dono de uma carreira com muito mais acertos do que erros. Torço para que sua turnê Barítono o leve para palcos mais diversos e interessantes.

Set list: “Toda Forma de Amor”, “Um Certo Alguém”, “O Último Româmtico”,  “Janela Indiscreta”, “Adivinha o Quê?”, “Tudo Azul”, “Assaltaram a Gramática”, “Cachimbo da Paz”, “Astronauta”, “De Repente”, “Tempos Modernos”, “Tudo Com Você”, “Esse Brilho em Teu Olhar”, “A Cura”, “Apenas Mais Uma de Amor”, “Um Pro Outro”, “Presente”, “Orgulho e Preconceito”, “Satisfação”,  “Condição”, “Aviso Aos Navegantes”, “Já É”,  “Assim Caminha a Humanidade”, “Lua de Mel”, “Sereia”, “De Repente Califórnia” e “Como Uma Onda”. Bis: “Tudo Bem”, “Certas Coisas”, “Tão Bem”, “Lei da Selva” e “Casa”.

Movies

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo

Comédia sci-fi com onze indicações ao Oscar é uma experiência absurdamente psicodélica e reflexiva sobre o sentido da vida

Texto por Taís Zago

Foto: Diamond/Divulgação

Infelizmente não consegui assistir a esta maravilha na grande tela do cinema quando estreou em junho de 2022 no Brasil. Depois demorei até encontrar o filme para assistir em algum canal de streaming e quase por acaso, quando já tinha até esquecido, acabei topando com ele num canal de streaming. Nisso, sem ter planejado, fui sugada com força total para dentro nessa experiência incrivelmente psicodélica e frenética.

Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo (Everything, Everywhere, All At Once, EUA, 2022 – Diamond) tem o enredo mais simples e igualmente mais complexo que existe – relações familiares. O cotidiano dos imigrantes chineses Evelyn (Michelle Yeoh) e Waymond (Ke Huy Quan) – um casal dono de uma lavanderia e com encrencas com o imposto de renda – e da filha deles Joy (Stephanie Hsu) – uma garota lidando com sua identidade sexual e objetivos futuros – acaba virando uma bagunça quando Evelyn começa a ser confrontada com diversas realidades paralelas em distintos universos que, materialmente, representam as inúmeras formas como poderia ter sido sua vida caso tomasse diferentes decisões e atitudes em dados momentos. 

Do nada, um Waymond, como que estranhamente carregado por um comando no corpo de seu marido, aparece de uma outra dessas realidades, a aborda e fala, entre outras coisas, que ela está sendo (ou provavelmente será) perseguida por uma entidade chamada Jobu Tupaki. A partir daí e com instruções no mínimo bizarras dadas pelo seu marido “alternativo”, Evelyn começa a viver em uma espécie de sonho lúcido com flashes de todas as suas personalidades e vidas possíveis dentro de um metaverso interminável e constantemente em movimento que muito se assemelha a um videogame. E nele é possível desbloquear poderes especiais ao resolver tarefas estapafúrdias e irracionais como cortar os próprios dedos com papel ou engolir objetos inanimados. 

A obra escrita e dirigida pela dupla Dan Kwan e Daniel Scheinert é uma viagem quase inexplicável e incompreensível de imagens, referências e estilos de representação visual casando elementos bizarros, assustadores, comoventes e hilários em um quebra-cabeça no qual parecem faltar muitas peças. Os Daniels elevam o gênero sci-fi comedy a um novo nível de criatividade. Somos bombardeados com mais imagens do que nosso cérebro consegue assimilar (mais um motivo para rever o filme várias vezes!) em uma carambolage de eventos e vidas paralelas dos personagens que, a princípio, não faz o menor sentido, mas que com o passar do tempo adquire um sentido profundamente filosófico sobre o significado da vida, sobre o que é importante e sobre a nossa insignificância diante do todo em que estamos inseridos como pequenos personagens de um teatro com milhares de possibilidade de finais distintos.

Michelle e Stephanie fazem um trabalho fenomenal ao destrincharem suas diferenças em esferas muito superiores à realidade material. E mesmo assim, no final da jornada, elas são uma mãe e uma filha, no centro de tudo, convergindo a um ponto comum está o amor que elas nutrem uma pela outra. Amor esse que por vezes machuca, gera desconforto, raiva, ressentimento, mas que também é calcado em uma inabalável força que as atrai, uma em direção à outra, como um imenso imã existencial. Para completar o deleite no elenco, ainda temos Jamie Lee Curtis no papel da Deirdre, a vilã/funcionária pública/parceira de Evelyn. Os constantes encontros entre as duas são deliciosos e hilários, Michelle e Jamie mostram toda a sua versatilidade.

A beleza estética e o apuro técnico de Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo são absurdos. Dan e Daniel dominam, de uma forma espetacular, a transposição das suas visões em imagens. Um trabalho minucioso, rebuscado e quase obcecado que chega aos mínimos detalhes. A obra, produzida pelo estúdio A24, famoso pelos seus filmes art house, combina cenas de stop motion e animação digital com entregas viscerais dos atores. No turbilhão das cenas pensei em milhares de coisas, pensei em séries psicodélicas como Legion The Umbrella Academy da mesma forma que senti o romantismo desiludido de um filme de Wong Kar-Wai.

Mas entre todas as reflexões que essa obra que abocanhou onze indicações para o Oscar 2023 me causou teve uma, a mais forte e que talvez não seja tão clara à primeira vista: ela me fez pensar no conceito de que podemos (e vivemos) diversas vidas onde os mesmos personagens estão presentes e atuantes em papéis diferentes, em diferentes universos ou, para os mais iluminados, épocas. Um tom de espiritualidade transcendental, digital ou de alteração da consciência, como uma cereja nesse bolo deliciosamente multicolorido.

Movies

Jean-Luc Godard

Oito filmes do ou sobre o cineasta que se tornou sinônimo de excelência no cinema e um dos ícones da nouvelle vague francesa

Textos por Marden Machado (Cinemarden)

Fotos: Divulgação

Na manhã desta terça-feira, 13 de setembro, o mundo acordou com a notícia da morte de Jean-Luc Godard, um dos nomes que fizeram a nouvelle vague, movimento cinematográfico francês. Roteirista, diretor, editor, também foi critico de cinema antes de iniciar a carreira produzindo a sétima arte. Do lado de trás das câmeras produziu clássicos e se tornou sinônimo de excelência para os cinéfilos de todo o mundo.

Godard não estava doente, mas optou pelo suicídio assistido, prática legal na Suíça, país do qual era descendente, e realizada pela própria pessoa, com assistência de terceiros. Ele tinha 91 anos de idade e, segundo declaração de uma pessoa da família ao jornal francês Libération, encontrava-se muito exausto.

Para homenagear este ícone das telas, o Mondo Bacana seleciona oito filmes importantes. Não são todos assinados por Godard: dois são sobre ele, sua vida e carreira. Desta maneira, pode-se ter um bom panorama de quem foi este gênio do cinema, nem sempre perfeito em sua trajetória pessoal mas com certeza direto e certeiro em sua fase de maior e melhor produção, os anos 1960.

Acossado (1960)

Os franceses Claude Chabrol, Éric Rohmer, François Truffaut, Jacques Rivette e Jean-Luc Godard, antes de se tornarem cineastas, escreviam crítica cinematográfica na revista Cahiers du Cinéma. A transição do “falar sobre” para o “fazer” cinema surgiu de um desafio proposto pelo editor do periódico André Bazin. Já que sabiam tanto de cinema e não estavam satisfeitos com as produções francesas da época, eles deveriam então realizar seus próprios filmes. Todos aceitaram o desafio e nascia aí a nouvelle vague, a “nova onda”, movimento que revolucionou a maneira de contar histórias em imagens e marcou toda uma geração de novos cineastas pelo mundo. Truffaut havia realizado em 1959 seu título de estréia, Os Incompreendidos. No ano seguinte foi a vez de Godard, que dirigiu Acossado a partir de uma idéia sua que Truffaut roteirizou. A trama acompanha a personagem de Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), um ladrão parisiense fã de Humphrey Bogart. Ele se envolve com uma jovem americana, Patricia (Jean Seberg), que vende jornais na rua. Michel é procurado pela polícia e Patricia o ajuda na fuga. Acossado é um filme difícil de ser classificado. Ele é tão diferente de tudo que era feito na época que pegou a todos de surpresa. Godard procurou “quebrar” as regras estabelecidas e realizou um filme que esbanja criatividade, inovação e originalidade. Um verdadeiro marco na história do cinema mundial.

O Desprezo (1963)

É difícil escrever sobre este filme feito em 1963 por Jean-Luc Godard. Há um pouco de tudo nessa obra marcante. Mas o principal é a declaração de amor ao cinema proposta pelo diretor. De forte teor metalinguístico porém sem se esgotar nessa característica, estamos diante de um filme que discute a criação cinematográfica e a construção da imagem e seus símbolos. Baseado no romance de Alberto Moravia, acompanhamos a crise de um casal em viagem pela Itália. Camille (Brigitte Bardot) é casada com Paul (Michel Piccoli) e acredita que ele não a ama mais. Para resolver a crise e tranquilizá-la, ele, que trabalha como roteirista, aceita uma encomenda para escrever uma nova adaptação de A Odisseia, de Homero. Ao longo da trama, muitas situações e sentimentos vão se misturando. Paralelamente a isso, existem questões relativas à produção do filme dentro do filme. Godard se permite homenagear um de seus diretores favoritos, o alemão Fritz Lang, que participa no papel dele mesmo (e, na tietagem das tietagens, o próprio Godard aparece em cena como assistente de Lang!). Mais fácil do que escrever sobre O Desprezo, é vê-lo e revê-lo diversas vezes. Afinal, trata-se de uma obra ímpar e de uma riqueza narrativa e simbólica que nunca acaba. Pelo contrário, torna-se melhor a cada nova visita.

Bando à Parte (1964)

Este foi o sétimo longa-metragem dirigido pelo francês Jean-Luc Godard. Isso em um intervalo de apenas cinco anos. O que equivale a uma média de mais de um filme por ano, sem incluir aí os curtas e segmentos que ele dirigiu neste período. Muitos dizem ser este seu trabalho mais acessível. Mesmo que te sugiram ir a uma lanchonete, talvez você prefira ver um filme de Godard. O roteiro, escrito por Dolores Hitchens, tem base o romance Fool’s Gold, de sua própria autoria. A história nos apresenta dois amigos, Arthur (Claude Brasseur) e Franz (Sami Frey), que vivem de trapaças. Eles convencem uma estudante, Odile (Anna Karina, musa do diretor na época), a ajudá-los em um roubo. Godard, que ao lado de François Truffaut, escreveu na revista Cahiers du Cinéma e ajudou a criar o movimento da nouvelle vague, homenageia aqui a produção hollywoodiana de baixo orçamento. Bando à Parte foi rodado em apenas 25 dias e sem grandes pretensões. É visível a leveza e alegria do elenco, em especial a da bela Anna Karina, em estado de graça. Godard parecia querer apenas se divertir e nos diverte também. Em tempo: Tarantino é tão fã deste filme que batizou sua produtora com o nome de A Band Apart.

O Demônio das Onze Horas (1965)

Se considerarmos seus primeiros curtas, feitos a partir de 1955, passando por sua estreia em longas cinco anos depois com Acossado, Godard fecha sua primeira década de carreira com uma bem sólida filmografia composta por 13 curtas (incluindo aí os segmentos que dirigiu) e dez longas, sendo este o décimo deles. Diz a lenda que Godard iniciou as filmagens sem roteiro algum e convenceu o produtor Georges de Beauregard a bancar a produção por causa do par central à frente do elenco: Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, ambos muito queridos e populares. A base é o romance Obsession, de Lionel White, roteirizado pelo próprio diretor junto com Rémo Forlani. Tudo começa com a apresentação de Ferdinand Griffon (Belmondo), casado com uma mulher rica e vivendo confortavelmente em Paris. Apesar disso, ele se sente bastante entediado e certa noite, durante uma festa, termina saindo mais cedo e ao chegar em casa reencontra Marianne Renoir (Karina), babá de seus filhos e antiga paixão sua. Ferdinand, que ela insiste em chamar pelo nome de Pierrot, foge com Marianne e ambos passam a ser perseguidos por mafiosos que traficam armas. Em sua essência, O Demônio das Onze Horas é um road movie, um filme de estrada, no melhor estilo Bonnie e Clyde. Mas, em se tratando de Godard, é também muito mais do que isso. O cineasta sempre buscou quebrar regras narrativas em suas obras e não é diferente aqui. Mas dessa vez ele o faz em CinemaScope homenageando seus ídolos, misturando gêneros cinematográficos, quebrando a quarta parede (quando alguém olha direto para a câmera) e brincando com metalinguagem (ao utilizar a arte para falar da feitura dela). A química entre Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, então casada com o diretor, é perfeita e esbanja carisma. Em tempo: preste atenção na participação especial do cineasta americano Samuel Fuller, que responde à pergunta “o que é cinema?”, e no figurino de Marianne.

Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela (1967)

Existe o cinema como conhecemos e existe o cinema de Jean-Luc Godard. Um dos fundadores da “nova onda francesa”, Godard desenvolveu um estilo narrativo próprio já a partir de 1960, com Acossado, seu longa de estreia. Ao longo dos sete anos seguintes, ele dirigiu doze longas e alguns curtas. Uma grande e incomum produção, se levarmos em conta a quantidade e qualidade em tão pouco tempo. Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela é de um dos períodos mais criativos de sua carreira. O “dela” do título é a cidade de Paris, que tem participação ativa no desenvolvimento da história. O cineasta fala de mulheres que se prostituem para satisfazer suas necessidades consumistas. Uma sociedade perdida no culto ao supérfluo. O filme é narrado pelo próprio diretor, que aproveita para instigar o espectador, de maneira a fazê-lo pensar sobre aquilo que está sendo mostrado. Sem exagero algum, a extensa obra de Godard poderia resumida com esta frase: “duas ou três coisas que eu sei sobre cinema”.

The Rolling Stones: Sympathy For The Devil (1968)

No auge da contracultura, Jean-Luc Godard já era um nome importante do cinema mundial. Naquele ano de 1968, ele fora convidado a ir a Londres para dirigir um documentário sobre a luta pela liberação do aborto. Como houve um relaxamento na legislação britânica, o trabalho terminou sendo cancelado e Godard permaneceu na cidade por mais um tempo. Ele queria dirigir um filme sobre os Beatles ou os Rolling Stones. O quarteto de Liverpool não aceitou. Mick Jagger e Keith Richards, fãs declarados do franco-suíço, adoraram a proposta e o resultado é este The Rolling Stones: Sympathy For The Devil. Temos aqui a banda no processo de gravação do disco Beggar’s Banquet – em especial, da faixa de abertura do LP e que dá nome ao filme. Por se tratar de um filme de Godard, a já esperada desconstrução da narrativa, típico do cineasta, faz-se presente. Ao mesmo tempo, há um interessante debate sobre o papel da mídia, as bandas que influenciaram os Stones, além de uma série de temas que um artista inquieto e provocador como o diretor jamais deixaria de fora. No entanto, apesar do apoio dos líderes da banda, a produção não foi tranquila, uma vez que existiram muitos atritos com o produtor, Iain Quarrier, que alterou o final do documentário sem que Godard soubesse e este, quando descobriu a mudança na sessão de estreia, simplesmente deu-lhe um soco na boca. The Rolling Stones: Sympathy For The Devil também é um registro de inestimável valor histórico. Seja por seu diretor, pela banda em questão ou por sua abordagem. Em tempo: Godard faz uma ponta levando cigarros e bebidas para os músicos.

Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague (2009)

Dois dos maiores nomes do cinema francês nasceram quase no mesmo ano e se conheceram com vinte e poucos escrevendo críticas de filmes na redação da revista Cahiers du Cinéma. Jean-Luc Godard e François Truffaut revolucionaram, primeiro com seus textos, a maneira de se ver os filmes. Depois, ao se tornarem cineastas, a própria maneira de se fazer filmes. O documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague, escrito por Antoine de Baecque, biógrafo de ambos, e dirigido por Emmanuel Laurent, traça um painel da importância dada nouvelle vaguea partir das obras de seus dois realizadores mais destacados. O filme celebra os 50 anos de lançamento de Os Incompreendidos, estreia de Truffaut na direção e apontado por muitos estudiosos como marco zero do movimento cinematográfico. Mostra também a repercussão de Acossado, primeiro longa de Godard, que teve o roteiro escrito por Truffaut. O cinema os tornou amigos e a visão de cada um sobre o cinema terminou por afastá-los. Laurent utiliza vasto material de arquivo para contar sua história e nos faz viajar por um mundo cheio de novas ideias e novos olhares. Godard e Truffaut foram os principais artífices de um novo jeito de fazer cinema e influenciaram todos os cineastas que surgiram a partir dos anos 1960. Isso não é pouco.

O Formidável (2017)

A atriz, diretora e escritora francesa Anne Wiazemsky teve uma carreira curta atuando e dirigindo. Sua produção artística é literária. Ela nasceu na Alemanha, mas se criou e se estabeleceu na França. Casada por 12 anos com Jean-Luc Godard, chegou a participar de dois filmes do cineasta e em 2015 publicou o livro autobiográfico Um Ano Depois, que tratava de seu encontro e envolvimento com Godard quando este iniciou as filmagens de A Chinesa, em 1967. E esse livro serviu de inspiração para o francês Michel Hazanavicius escrever o roteiro e dirigir O Formidável. À frente do elenco, Louis Garrel e Stacy Martin dão vida ao casal apaixonado Jean-Luc e Anne. O pano de fundo é a conturbada situação político-social que o mundo em geral (e a França em particular) enfrentava na segunda metade dos anos 1960. Acompanhamos aqui uma espécie de comédia romântica tendo como personagem principal um dos mais radicais cineastas da história do cinema. Quem conhece a filmografia, o gênio e a fama de Godard é capaz de pensar se tratar de algo, no mínimo, anacrônico. Mas funciona melhor, por exemplo, que O Artista, grande sucesso anterior de Hazanavicius. Em tempo: Godard disse que O Formidável era uma “estúpida, estúpida ideia”. O produtor, com senso de humor e de oportunidade, utilizou a frase nos cartazes do filme.

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King Richard: Criando Campeãs

Como o pai que sonhou em transformar as filhas Venus e Serena Williams em supercampeãs do tênis, Will Smith brilha em outro “filme de Will Smith”

Texto por Taís Zago

Foto: Warner/Divulgação

Richard Williams (Will Smith) não é mundialmente famoso pelos seus feitos ou talentos. Ele é famoso por ser o pai de Venus (Saniyya Sidney) e Serena Williams (Demi Singleton), as duas tenistas mais famosas e entre as mais espetaculares da história do tênis feminino. E este filme é quase que totalmente sobre ele – como o título King Richard: Criando Campeãs (King Richard, EUA, 2021 – Warner) não deixa duvida.

Richard também nunca foi atleta, ele trabalhava de guarda-noturno em um mall. Apesar do seu anunciado amor pelo tênis, segundo consta em sua própria biografia, ele decidiu treinar suas filhas no esporte após ver uma reportagem na TV sobre atletas femininas que ganhavam prêmios de até 40 mil dólares por torneios de “apenas” quatro dias. A decisão havia sido tomada e antes mesmo delas nascerem ele já tinha elaborado um plano de 78 páginas de como faria isso se tornar realidade. Oracene “Brandy” (Aunjanue Ellis), sua segunda esposa e mãe de Venus e Serena, acompanhou-o em seus sonhos e, apesar de ter outra profissão e muitas vezes ter que trabalhar sozinha para sustentar a família de sete pessoas, aprendeu a jogar tênis somente para ajudar no treino das meninas.

O casal, principalmente Richard, vislumbrou para as jovens tenistas um futuro de sucesso e dinheiro. E o peso dessa decisão nós sentimos na pressão enorme dele sobre as filhas, algo que fica claro em cada minuto filmado. Richard é turrão, teimoso e exige que elas treinem sem parar, faça sol ou chuva, frio ou calor. Ainda sobra tempo para ele adicionar ao pacote lições sobre humildade (as quais nem sempre segue em seu próprio comportamento). Já Brandy acalentava as meninas e fazia o que podia para garantir que elas tivessem uma vida normal de adolescentes apesar da rigidez do pai.

Para nós, que assistimos aos devaneios megalomaníacos de Richard, eles acabam por fazer sentido pois já conhecemos o desfecho dessa história. Sabemos tudo o que Venus e Serena fizeram pelo tênis norte-americano, pela visibilidade das mulheres pretas nos esportes antes somente guardados para as brancas. Sabemos da importância e do significado de suas vitórias, como esportistas e como exemplos de emancipação e independência feminina. Vimos o racismo que suportaram em episódios não muito bem encobertos pela mídia. Acompanhamos as barreiras e os recordes que quebraram. Mas, infelizmente, esses fatos não fazem parte do filme dirigido por Reinaldo Marcus Green. O foco aqui são os primeiros anos das duas atletas no esporte mais a figura central (e polarizante) de seu pai.

Will Smith interpreta em King Richard uma espécie de versão madura dos papéis que lhe deram prêmios e indicações – como Ali e Em Busca da Felicidade. Mesmo assim não consigo evitar a sensação de que, em papéis dramáticos, o ator é um one trick pony, tem um talento restrito a poucas nuances. Mas ainda é o Will Smith, o Fresh Prince Of Bel-Air, o Man In Black, um comediante nato. Portanto, com uma expressão aqui, um trejeito ali, discretamente, ele empresta um certa simpatia para o senhor ranzinza do título. 

O filme foi feito baseado nas biografias do próprio Richard (Black & White – The Way I See It) e de Serena (My Life – Queen Of The Court), Venus e Serena foram consultadas, acompanharam as filmagens e autorizaram a versão que foi editada. Zach Baylin assina o roteiro que passou pelo crivo da irmã Isha Price (que é citada nos créditos como produtora executiva) e por Oracene.

Ficam bastante claros os esforços que foram feitos para Richard navegar entre mocinho e vilão, mas sem nunca adentrar algum dos extremos, o que torna o filme uma homenagem que em alguns momentos costeia a hagiografia. A intenção das irmãs Price e Williams foi uma correção da imagem do pai, que não raramente, era representado como superprotetor, e exagerado. Elas queriam dar a ele o reconhecimento pelo amor, engajamento e determinação que investiu em suas carreiras. Porém, nem toda a doçura e cuidado tira o gosto amargo de King Richard ser mais um one man show do Will Smith. A câmera está sempre nele, sendo que as reais queens aqui deveriam ser Serena e Venus. Por mais que Richard mereça reconhecimento, o seu papel não renderia um filme sem o brilho das estrelas das filhas.

As atrizes Saniyya Sidney (Venus), Demi Singleton (Serena) e Aunjanue Ellis (Brandy) fazem maravilhas com o pouco de material que tiveram em mãos. Mesmo sem poderem aprofundar seus conflitos e sentimentos, elas impressionam. As meninas que tiveram de aprender a jogar tênis para seus papéis, e foram além: elas aprenderam as técnicas das irmãs Williams. O grande amor e a amizade entre as irmãs, que são cinco no total, também fica bastante evidente. O laço entre elas é bonito e comovente.

E aqui, se me permitem a sinceridade, era esse o filme que eu realmente gostaria de ver. Bem feito, com todo o esmero de produção, com Richard direitinho no seu papel, mas com o foco em Serena e Venus. Como essas duas mulheres espetaculares enxergam seu começo de carreira? Quais foram suas dificuldades? Quais suas pequenas/grandes vitórias pessoais? Os troféus nós conhecemos. Quais seus medos? Suas inseguranças? Elas, sim, somente elas são a razão dessa caminhada existir. Independentemente da dureza com que foram treinadas, do que foram privadas e do que abdicaram, essas duas mulheres são um grande exemplo de talento e perseverança. Criar um filme em torno do pai delas me parece ignorar seus protagonismos na história. Nos deixa a sensação de talentos moldados pelas mãos dos homens, quer seja Richard ou os treinadores Paul Cohen e Rick Macci.

Do ponto de vista da execução se trata de uma sport bio feita com todo o esmero. Aliás, acima da média, tanto que está merecidamente concorrendo em cinco categorias ao Oscar – filme, edição, ator, atriz coadjuvante, roteiro original. Então, vale bastante a pena assistir a ela.

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Licorice Pizza

Paul Thomas Anderson faz poesia apaixonada para a sua infância californiana em filme sobre crescer e se apaixonar

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Um filme não precisa de trama. Isso não quer dizer que o melhor cinema é a pura experimentação formal, mas que a significação proporcionada pela linguagem fílmica está para muito além dos limites de atos, antagonistas e um roteiro livre de “furos”. Tudo depende, claro, do que se quer expressar em cena. No caso de Licorice Pizza (Canadá/EUA, 2021 – Universal Pictures), a resposta é bem mais pessoal que em alguns dos projetos mais ambiciosos de seu diretor, o aclamado Paul Thomas Anderson.

Anderson (ou simplesmente PTA) escreveu e dirigiu seu nono longa-metragem com um olhar intimista e bastante derivado de sua infância californiana. Não à toa, Licorice Pizza retrata a Califórnia dos anos 1970 impressa nos encontros de dois amigos e um romance almejado: Alana (a cantora e guitarrista Alana Haim) e Gary Valentine (Cooper Hoffman). Enquanto Alana tem pouco mais de 25 anos, Gary é um ambicioso adolescente de meros 15. Contudo, seus comportamentos dão um nó na expectativa que temos de suas personalidades, suposições ancoradas, claro, no choque etário. 

Gary é um jovem ator que toca uma empresa de relações públicas com a mãe e é respeitado por onde vai, tal qual um adulto. Em paralelo, Alana presta minuciosas contas do que faz ao pai e tem constantes rusgas com as irmãs ainda mais velhas, todas sob o mesmo teto, tal qual uma adolescente. O longa de PTA, então, é muito mais que um romance – é uma crônica do envelhecer, um coming of age que opera pelas perspectivas do adolescente “adultizado” e da adulta infantilizada.

Anderson representa esses polos performáticos por meio da amizade que floresce, inicialmente um avanço de Gary para conquistar Alana, e acaba por mostrá-la o novo e excitante mundo do cinema e do business. Ao mesmo tempo que as personagens se aproximam, elas se afastam – afinal, a idade não deixa de impor um empecilho em suas interações. 

Estas, justamente, são o foco do filme, que se distancia do enredo tradicional para aproximar-se do livre jogo de pequenas trocas e conversas entre Alana, Gary e seus amigos no entorno. Se Era Uma Vez Em Holywood, de Tarantino, é uma carta de amor aos anos 1960 e à indústria cinematográfica da época, Paul Thomas Anderson escreve sua poesia apaixonada pela Califórnia de sua infância por entre versos sobre o crescer e o apaixonar-se.

Afinal, a relação com o outro não existe sem o olhar para si, que inevitavelmente traz à tona conflitos pessoais. Não há momento mais propício para esses debates internos que esse limbo entre a adolescência e a vida adulta no qual convivem a infantilização e a exponencial responsabilização. De modos distintos, tanto Gary quanto Alana estão presos nesse jogo, e cada vez que um vai para o lado, o outro reage pulando para o outro.

Os afetos são construídos sem pressa, de modo que cada ato significa mais no campo não verbal e dos simbolismos que na literalidade do texto – uma decisão que PTA evidencia quando, no momento climático do filme, entrecorta entre Alana e Gary correndo em separado com momentos anteriores em que fizeram o mesmo para ajudar um ao outro. 

Esse apreço pelo simbólico, entretanto, não poderia existir senão pela atenção do diretor à técnica do cinema. Em seu segundo longa acumulando as cadeiras de direção e fotografia, o preciosismo do cineasta com lentes, luzes, ângulos e enquadramentos se torna ainda mais central, num movimento bastante claro de sua filmografia. Por meio de seu estilo já conhecido de takes dinâmicos, tracking shots que acompanham as personagens e mise-en-scènes ora requintadas, ora simples e diretas, Anderson traz à vida sua Califórnia que respira e se move no frescor da infantilidade de Alana e Gary. 

Não ao acaso, a trilha sonora escolhida para o filme é a imagem dos anos 1970 em sua face mais animada e pulsante. A faixa que leva o nome do filme, composta por Jonny Greenwood (integrante do Radiohead e já com diversas colaborações com as obras de Anderson), é a representação musical da leve brisa que entremeia Licorice Pizza.

Em uma análise comparativa da trajetória de Anderson, Licorice Pizza talvez não seja o mais “profundo” de seus filmes. Passa longe de ser o mais sério. Mas é, sem dúvidas, um dos melhores, capturando muito do que há de bom espalhado entre Vício InerenteMagnólia e até Trama Fantasma (meu confesso favorito) para, longe de qualquer pretensão moral ou sequer de enredo, presentear o espectador com duas horinhas de um olhar apaixonado pelo processo, como já mencionei antes, de crescer consigo mesmo ao apaixonar-se pelo outro.