Music

Bruce Dickinson – ao vivo

Vocalista do Iron Maiden inicia turnê brasileira do novo disco solo, The Mandrake Project, fazendo mágica sonora para o público de Curitiba

Texto e foto por Daniela Farah

Hipnose, olhos, gestos das mãos são poderes telepáticos usados pelos melhores mágicos do mundo. Enquanto o público olha para a direita, ele tira um coelho da cartola, na mão esquerda. Sinônimos de ousadia, mestre das fugas, senhor das sombras, mandrake, são vários apelidos dados aos ilusionistas. Ainda que Bruce Dickinson não se aposse desse título, ele veste a carapuça muito bem. Ou melhor, a cartola. E assim o fez na noite de 24 de abril, na Live Curitiba. A estreia da sua Mandrake Project Tour contou com um roteiro estruturado e muitos truques de quem é bem experiente.

A noite começou com a abertura de Clash Bulldog’s, que entregou um show animado, com bastante conexão com o público, que respondeu muito bem as interações. Cabe aqui um adendo em dizer que a primeira atração tem uma missão sempre muito difícil e que pode gerar um desses três sentimentos: deixar o público entediado, desvirtuar as pessoas ou animá-las para a próxima atração. Quem sabe o que está fazendo escolhe as duas últimas opções. A banda de Nova Friburgo (RJ) incluiu em seu repertório de músicas autorais um cover de “Sad But True”, do Metallica. FIzeram todo mundo cantar junto e esquecer a ansiedade.

Já havia passado das 21 horas e o palco ainda estava sendo arrumado para a estrela da noite. Por causa de alguns prováveis problemas de telão, o show atrasou uns 15 minutos. O que não significou absolutamente nada para os fãs, que o receberam com a gritaria habitual e os milhares de celulares apontados para o palco, na intenção de registrar os primeiros momentos do artista em palco brasileiro.

Bruce Dickinson veio ao Brasil acompanhado da House Band Of Hell, formada por Chris Declercq e Philip Näslund (guitarras), Mistheria (teclados) e Dave Moreno na bateria. Mas quem brilharia mesmo no palco seria a baixista Tanya O’Callaghan, que já tocou com Whitesnake, Dee Snider, Orianthi, Steven Adler (Guns N’ Roses), Nuno Bettencourt (Extreme) e mais uma lista enorme de estrelas do rock. Demonstrando muita técnica e carisma, ela vem se destacando lá fora.

Eis que, como um passe de mágica, os olhos dos fãs brilhavam. Então, Dickinson mostrou um cinco de copas numa mão, nada na outra e tirou um coelho brilhante da cartola. Vou explicar.

Bruce entrou direto com a sequência “Accident of Birth”, do álbum de mesmo nome; “Abduction”, de Tyranny Of Souls; “Laughing In The Hiding Bush”, de Balls to Picasso; “Afterglow Of Ragnarok, de The Mandrake Project. Vale lembrar que este foi o primeiro single do novo álbum, lançado no último 30 de novembro, na CCXP23.

Daí o músico cantou uma das favoritas da noite. “Chemical Wedding”, de The Chemical Wedding, foi um dos momentos mais bonitos na interação com o público, que surpreendeu Bruce, cantando mais alto que ele em um coro, não tão afinado mas com o coração cheio. As luzes se acenderam e sua cara de satisfação ficou exposta. Fechava-se assim um belo cinco de copas, conectado direto ao mesmo coração inebriado dos fãs.

“Caros cidadãos de Curitiba! Nós nos divertimos ontem, bebendo cerveja e dirigindo motocicletas e ansiosos para ver você em todos os lugares, motherfucka. Então, vamos lá! Wstamos de volta com essa banda incrível, mostrando para vocês o primeiro show no Brasil. Faremos muitas coisas, todos os tipos de coisas, em todos os lugares”, disse Bruce antes de anunciar “Many Doors To Hell”, que fala sobre uma vampira que cansou de morder pessoas.  Um silêncio reinou durante boa parte da música, até que o artista pediu palmas, e, claro, foi atendido. Estava, então, na hora de tirar o coelho da cartola, correto?

“Este é um momento muito perigoso. Esta [música] não é de The Project Mandrake. Vou deixar para vocês adivinharem”, provocou. Logo os primeiros acordes começaram e o público respondeu emocionado e com o celular em mãos. “Tears Of The Dragon”, um dos hits mais icônicos da carreira solo de Bruce Dickinson. Tinha gente tremendo, chorando, cantando, de olhos fechados e, claro, gravando o momento para rever depois.

Se o vocalista já tinha usado seus maiores números antes da metade do show, o que poderíamos esperar para a segunda parte? Experiente como é, ele sabe que nada poderia chegar aos pés dessa emoção para o público. Então, incluiu duas músicas do álbum novo: “Resurrection Men” e “Rain On The Graves”.

Passado o frisson, a instrumental “Frankenstein” (cover do Edgar Winter Group) mostrou um Bruce realizando um sonho de criança, tocando percussão. E não foi só isso: a mensagem na tela, feito grafismo de filme mudo, já avisou: “Oh, Meu Deus! Isso é um teremim!”. E lá foi ele tocar o prosaico instrumento. E toda essa encenação foi durante a execução da música.

E assim, como o experiente ilusionista que é, o vocalista não tardou a desaparecer um pouco tempo depois na cortina de aplausos, deixando os clássicos na memória.

Set list Clash Bulldog’s: “Intro”, “Prophets Of Time”, “Tears Of Blood”, “Take The Liars Down”, “Sharp Teeth”, “Them Bones”, “Sad But True”, “Evil Within” e “Anger Grows”.

Setlist Bruce Dickinson: “Accident Of Birth”, “Abduction, “Laughing In The Hiding Bush”, “Afterglow Of Ragnarok”, “Chemical Wedding”, “Many Doors To Hell”, “Tears Of The Dragon”, “Resurrection Men”, “Rain On The Graves”, “Frankenstein”, “Gods Of War”, “The Alchemist” e “Darkside Of Aquarius”. Bis: “Navigate The Seas Of The Sun”, “Book Of Thel” e “The Tower”.

Movies

Clube Zero

Como um falso guru pode se esconder na pele de uma angelical e atenciosa professora de reeducação alimentar em um colégio para a elite

Texto por Abonico Smith

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Suspense dramático, comédia de desconforto, chame do que você quiser. Não importa a denominação: o negócio da cineasta austríaca Jessica Hausner é segurar você na ponta da poltrona e te desconcertar ao extremo. A cada cinco anos, em média, ela faz isso com um novo lançamento. Desta vez, com Clube Zero (Club Zero, 2023,  Áustria/Reino Unido/Alemanha/França/Dinamarca/Turquia/EUA/Catar/Bósnia e Herzegovina – Pandora Filmes), não é diferente.

 O filme gira em torno da chegada de uma nova professora a um colégio para adolescentes da elite. Ms Novak (Mia Wasikowska) faz sucesso pela internet vendendo chás que promovem uma nutrição mais saudável. Indicada pelo pai de uma aluna à direção, ela passa a ministrar uma disciplina volta a um pequeno grupo inicial de alunos adeptos que leva o nome de seu projeto, Comer Consciente, com o objetido de reeducação alimentar. Com as primeiras aulas, ela tenta fazer com que determinadas práticas e costumes de alimentação sejam adotados ou descartados, para que, inclusive, isso possa vir a trazer benefícios no rendimentos das notas escolares e no desempenho de atividades extras físicas, que vão do balé à ginástica. Respiração, controle da mente, quantidade e qualidade, tudo pode e deve influir para uma maior sensação de bem estar diário.

Com sua voz suave e angelical, a sempre atenciosa Ms Novak faz questão de acompanhar de perto os alunos com quem trabalha em reuniões periódicas no colégio. Sua vida particular, aliás, é um mistério. Ninguém sabe absolutamente nada sobre ela: relacionamentos, vida social, família, atitudes fora do âmbito profissional. Mesmo assim, ela passa a ganhar cada vez a confiança de um grupinho de estudantes, que, por sua vez, passam a seguir à risca suas propostas alimentares, mais radicais até mesmo do que o próprio veganismo. Inclusive em suas casas, para surpresa e contrariedade dos pais.

Aos poucos, entretanto, Hausner vai desenvolvendo uma ambientação que passa da harmonia para o caos. A professorinha querida de alguns alunos começa a despertar desconfiança nos pais, mas a diretora não dá ouvidos e deposita tod aa confiança na recém-contratada até que a pressão aumenta, aumenta… e tudo acaba estourando após um acontecimento extracurricular.

A questão sobre o comportamento alimentar e transtornos que podem vir a decorrer disso é só um mote para Hausner discutir uma questão bem mais profunda do que aquela que vem da superfície dos pratos. Com a figura central da professora esquisita que chega para abalar algo que, de uma certa forma, já está sólido e seguro esbarra com um problema que sempre existiu na humanidade mas parece ter se intensificado mundialmente após a internet 2.0 e suas redes sociais e plataformas de áudio e vídeo: os falsos profetas. A condição de tratamento de guru dada à professora pelos seus alunos queridos – que passam a segui-la incondicionalmente, não dando ouvidos a nada nem ninguém mais. Os jovens garotos e garotas passam a descartar tudo aquilo que faziam e conhecem, ignoram apelos familiares e se envolvem na crença sempre maior em algo que passaram a conhecer dias atrás, sem muita base teórica ou científica, só porque isso lhes fora apresentado por alguém que transmite sabedoria, confiança e credibilidade, sem a possibilidade de qualquer questionamento.

É nisso que a diretora e roteirista se escora para desestabilizar a audiência. Enquanto você começa a traçar paralelos mentais com pessoas, casos e referências que conhece (sobretudo aqui no Brasil; impossível não conhecer um famoso caso que nos últimos dez anos abalou de modo profundo e irreversível a vida de todo o país), Hausner promove artimanhas visuais para tornar seu filme ainda mais provocador – como o momento em que uma das meninas adeptas das pregações de Ms Novak come o vômito que acabou de provocar intencionalmente no próprio prato, cena que chegou a provocar risos (talvez de nervosismo) em cinemas da Europa. Mia Wasikowska continua escolhendo bem papeis que mostrem personagens bizarras, atípicas, fora dos padrões e, neste caso especialmente, bem amorais. Em Clube Zero é dá o tom necessário a uma protagonista que rouba a cena, tanto em relação aos espectadores como com quem se relaciona na trama. Revela-se o nome ideal para uma bela parceria com Jessica Hausner nos quesitos provocação, incômodo e desconforto. O que torna Clube Zero um filmaço. Para quem tem estômago” para aguentar, claro!

Movies, Music

Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos

Documentário proporciona um olhar carinhoso para vida e obra do baiano que estabeleceu as bases do que se entende por música popular brasileira

Texto por Abonico Smith

Foto: Descoloniza Filmes/Divulgação

O próximo dia 30 de abril marcará os 110 anos de nascimento da pedra fundamental daquilo que todo mundo entende por música popular brasileira. Para celebrar a data, chega aos cinemas nacionais nesta quinta Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos (Brasil, 2020 – Descoloniza Filmes), depois de ter sua première mundial na edição deste ano do festival internacional de documentários É Tudo Verdade.

Sob o comando de Daniela Broitman, que assina roteiro, direção e produção, Um Homem de Afetos é, como seu próprio título já entrega, um olhar carinhoso por todo o universo de vida e obra do cantor e compositor baiano. Disseca passagens curiosas, engraçadas e afetivas do artista, falecidos em 2008 aos 94 anos de idade. Traz depoimentos dos três filhos, pessoas que conviveram com muita proximidade a ele e fãs famosos como Gilberto Gil e Caetano Veloso. Apresenta também depoimentos e antigas gravações de Dorival em vídeo. Não pretende reinventar a roda, muito menos revolucionar narrativas e formatos. É um doc tradicional, mas que prima em pegar os espectadores pela emoção. E consegue, sem deixar aquela temida mácula de chapa-branca que contamina produções deste tipo. Louva o legado inovador e criativo de Caymmi mas também se propõe a apresentar pequenos deslizes comportamentais do homem por trás do ídolo. Detalhe: faz isso com a ajuda de Nana, Dori e Danilo, inclusive. E do próprio Dorival…

Sua intrínseca relação com o mar da Bahia vem desvendada logo no início. A ligação profunda, que marcou a passagem do “compositor por trás da imagem pública de Carmen Miranda em Hollywood” ao Dorival trabalhador boêmio das boates dos anos dourados de um Rio de Janeiro ainda capital federal, pode ser deliciosamente saboreada nas explicações particulares e históricas da vida do músico. Foram as águas do mar que banharam muitas de suas geniais criações lançadas por ele em disco no começo dos anos 1950 e construíram um universo temático tão rico e emocionante descrito em letras inigualáveis. Único também era seu jeito de tocar o violão e interpretar as próprias composições, o que leva a crer que Caymmi, ao menos no Brasil, foi o primeiro grande representante do termo cantautor (o famoso compositor que interpreta as suas canções), que viria a se popularizar décadas depois.

O período áureo da temática do mar – que antecedeu o estouro bossa nova mas nem por isso deixou de ser celebrado nos Estados Unidos, embora seja bem menos lembrado até hoje no Brasil – rende boa parte do documentário, inclusive com um engraçado trecho em que Caetano tece muitos elogios à maestria de encaixar a prosódia baiana nas melodias e letras. Há também um breve mergulho no Dorival músico e compositor, ainda por trás dos microfones, quando rendeu a Carmen Miranda todo o suporte para a imagem da baiana brasileira que encantou o mundo por meio do filtro do entretenimento estadunidense. Também ocupa parte generosa do roteiro a conturbada relação da esposa Stella Maris (com quem ficou casado por 68 anos, até a morte de ambos separada por questão de dias) com o cara que não conseguia suportar a convivência com barulhos mas não se afastava da fama de mulherengo.

As rápidas mudanças sociais e musicais promovidas no decorrer dos anos 1960 provocaram gradativamente a diminuição dos trabalhos inéditos de Dorival como cantor e compositor. Mas um curioso fato reacendeu a fama da idolatria… fora do país. Mais precisamente na extinta União Soviética, quando uma versão cantada em russo de “Suíte do Pescador” para a exibição do filme The Sandpit Generals (baseado na obra literária Capitães de Areia, de Jorge Amado rodado na Bahia, com produção norte-americana e censurado por aqui pelo regime ditatorial dos militares) tornou-se um hino que acabou por entrar para a posteridade por lá. Prova de que Caymmi pode ser coisa nossa mas o reconhecimento de seu talento ultrapassa barreiras geográficas e idiomáticas.

Difícil acabar de assistir a Um Homem de Afetos e não se afeiçoar ainda mais a Dorival Caymmi, o homem por trás da figura pública da música brasileira – sobretudo na hora em que o caçula Danilo aperta suas bochechas e brinca livremente com o pai coruja, com quem sempre teve muita proximidade de afeto. Para toda uma novíssima geração que acha ser a também baiana Ivete Sangalo o nome-mor da música brasileira (como mostrou-se em uma polêmica envolvendo a performance de Paulo Ricardo no mais recente BBB), pode ser um excelente canal para grandes descobertas e viagens no tempo.

Aliás, é para isso que servem documentários. Mais do que deleitar os iniciados em um assunto o grande papel de uma obra como esta é proporcionar expressões de estupefaciência em quem adora deixar-se surpreender. Certamente este Um Homem de Afetos pode e deve produzir isso em quem nem era nascido (ou ainda era bem pequeno) quando Dorival Caymmi faleceu.

Music

Sepultura – ao vivo

Grandiosidade da turnê de despedida e de comemoração dos 40 anos da mais famosa banda de metal do Brasil deixa Curitiba em êxtase

Texto e fotos por Rodrigo Juste Duarte

O Sepultura tem vários shows históricos em sua trajetória. Só em Curitiba podemos citar quatro ocasiões: o de 1994, na Pedreira Paulo Leminski, com Ramones, Raimundos e Viper; o de 1999, quando a banda lotou o Studio 1250 em uma das primeiras apresentações com Derrick Green nos vocais (muita gente aguardava com curiosidade para conferir a nova formação ao vivo!); e o de 2006, quando trouxe para a capital paranaense seu próprio evento, o Sepulfest (com abertura de Korzus, Massacration, Sad Theory e Children of Flames). Sem contar quando veio tocar na Ópera de Arame, durante a turnê do álbum Quadra em 2023.

A apresentação que rolou na Live Curitiba na noite de 22 de março deste ano também pode muito bem entrar nessa lista. Aliás, todos os shows que o Sepultura realizou e virá a realizar neste ano e no seguinte são históricos, em qualquer lugar do mundo. Eles fazem parte da tour Celebrating Life Through Death, que comemora os 40 anos de banda ao mesmo tempo que é a despedida do grupo dos palcos. Depois de sete datas iniciais pelo Brasil em março de 2024, a banda seguiu excursionando neste mês de abril por oito países das Américas Central e do Sul. Em setembro, será a vez de São Paulo, com três noites (duas delas já com ingressos esgotados!). Entre outubro e novembro serão 22 na Europa. E ainda vem muito mais por aí!

O horário marcado para começar na Live Curitiba era o das 21 horas, mas o show só teve início cerca de uma hora depois – provavelmente para dar tempo de todo o público entrar na casa, que recebeu mais de 3 mil pessoas naquela noite. A fila praticamente dava a volta na quadra. Enquanto se aguardava o momento de adentrar no recinto, era possível contabilizar mais de uma centena de estampas diferentes do Sepultura nas camisetas usadas pelos fãs: tinha de praticamente todos os álbuns, nas mais diversas fases do grupo (seja no thrash, death ou groove metal), incluindo as opções oficiais comemorativas de 20 e 40 anos de banda, inspiradas nos uniformes da seleção brasileira de futebol, atiçando boas lembranças de quem viveu estes mais diversos momentos. Claro que tinha quem vestisse camisetas de outros inúmeros artistas do rock e do metal, inclusive dos irmãos Cavalera e do Slipknot (seria uma provocação?). Havia até fã com camiseta do Sonic Youth. Mas isso é perfeitamente condizente (continue lendo e você saberá o porquê).

Já dentro da casa, o público aguardava ansiosamente pela subida ao palco de Andreas Kisser (guitarra), Derrick Green (vocais), Paulo Xisto (baixo) e do novo integrante Greyson Nekrutman (bateria), chamado para substituir Eloy Casagrande às pressas, poucos dias antes do início da turnê (leia mais sobre isso aqui). Estavam presentes de bangers de carteirinha a famílias inteiras. De roqueiros veteranos com cabelos ou barbas grisalhas (isso quanto aos que ainda têm cabelo), até jovens de vinte e poucos anos, entre homens e mulheres, de pele clara ou escura, que compunham uma diversidade bonita de se ver, mostrando uma plateia fiel há décadas mas que também passou por renovações. No som mecânico, clássicos do metal animavam o público até a hora de entrar “Polícia”, dos Titãs, em volume mais alto, anunciando que o show começaria. Essa música, que já foi regravada pelo Sepultura, antecede suas apresentações há pelo menos meia década. 

Em seguida veio uma intro com um mix de vários samples usados em músicas de toda a trajetória do Sepultura, até chegar no som da batida de coração de Zyon (filho de Max Cavalera) ainda no ventre materno, que anunciava “Refuse/Resist”, música de abertura que incendiou o público e deu o pontapé inicial em um espetáculo grandioso, Não só pela seleção sonora, mas pelo impacto visual: havia enormes paineis verticais de led (deviam ter 6 metros de altura) de cada lado do palco, além de cubos de led de cerca de 2 metros sobre o palco e outros telões acima e abaixo da bateria (que ficava elevada a uma altura considerável) exibindo imagens criadas para acompanhar cada música, intercaladas com cenas captadas ao vivo lá no show. Uma produção de grande magnitude, digna de uma banda com o cacife do Sepultura.

O repertório seguiu com mais duas de Chaos A.D., um dos álbuns de maior sucesso da banda: “Territory” e “Slave New World”, que mantiveram a adrenalina em alta na plateia. “Phanton Self”, do disco Machine Messiah veio em seguida, comprovando que as músicas mais novas não devem nada às lançadas em seus primeiros anos, quando Max Cavalera estava no grupo. O show foi se alternando entre clássicos e faixas mais recentes. Vieram na sequência: “Dusted”, “Attitude” e “Kairos”. A oitava, “Means To An End”, foi uma das provas de fogo para Greyson Nekrutman, pois se trata de uma música de Quadra, que possui linhas de bateria complexas, compostas por muitas partes. O garoto mandou bem, não somente nesta, mas em todas as demais do repertório.

“Cut-Throat” foi uma das cinco selecionadas do disco Roots, o voo mais alto que o Sepultura já teve em sua carreira. “Guardians Of Earth” veio logo depois, trazendo no telão imagens de povos indígenas brasileiros e de paisagens de seus habitats, tal como no belo videoclipe dirigido pelo curitibano Raul Machado, um dos maiores e mais produtivos “clipmakers” do Brasil. Em “Mind War” (do injustiçado trabalho Roorback) os telões traziam grafismos hipnóticos para acompanhar a música (assim como em “Kairos”, que também ganhou um acompanhamento visual chapante). 

Logo após ouviram-se as sirenes que pareciam ser da música “Born Stuborn”, de Roots, mas na verdade eram de “False”, de Dante XXI, álbum conceitual inspirado na obra literária A Divina Comédia, de Dante Alighieri. “Choke” trouxe lembranças do início da fase Derrick, sendo o primeiro hit de Against, de 1998. A nostalgia foi mais fundo com “Escape To The Void”, única de Schizophrenia, o segundo rebento da banda, que marcou a estreia de Andreas Kisser na formação mineira. 

De repente, os telões exibiam imagens de 1995, do Sepultura gravando com uma tribo xavante. Era o prenúncio de “Kaiowas”, primeira composição com temática indígena da banda. Nesta ocasião, dois sortudos subiram ao palco para tocar percussão e violão em uma verdadeira jam session tribal. Eles foram escolhidos entre o público pela equipe do canal Do Lado Direito do Palco, que acompanhou todos os shows desta primeira perna da turnê. Com certeza foi muito empolgante aos convidados que tiveram essa oportunidade, mas eu destacaria a fã que tocou no show de Porto Alegre (procure pelo vídeo dela no perfil do Instagram do canal, pois sua reação é digna de ilustrar a palavra “emoção” no dicionário).

Algumas pérolas que nem sempre são lembradas ganharam destaque no set, como o hino “Sepulnation”, a hardcore “Biotech Is Godzilla” e a contemplativa “Agony Of Defeat”, que deu um respiro antes dos cinco megaclássicos guardados para o final. “Troops Of Doom”, do álbum de estreia, proporcionou rodas de pogo na pista. O agito continuou intenso com “Inner Self” (introduzida no repertório, corrigindo uma ausência sentida nos primeiros shows da turnê), seguida da brutal “Arise”, um dos melhores exemplos do thrash metal de todos os tempos.

A banda saiu do palco, deu tchau para o público, mas todos sabiam que haveria um bis. Só que em Curitiba já sabemos do comportamento das pessoas em shows, que demoram pra pedir pra banda voltar, ficam moscando por dois ou três minutos… Até que alguém começou a puxar o grito com o nome da banda. Então, o Sepultura retornou para as duas músicas finais, ambas do consagrado Roots. A primeira foi “Ratamahatta”, que colocou todos para pular com palavras em português, como biboca, garagem, e favela, e exaltando nomes como Zé do Caixão, Zumbi e Lampião. 

Por fim, a apresentação encerrou-se magistralmente com “Roots Bloody Roots”, primeiro hit de uma obra revolucionária, que levou uma banda de metal vinda do Brasil a fazer enorme sucesso em todo o planeta, mostrando suas raízes e identidade nacional para o mundo e arriscando sonoridades até então nunca praticada no gênero. Um exemplo são os solos de guitarra justamente desta música “Roots Bloody Roots”, com apenas duas notas e com muita microfonia, deixando clara uma influência da clássica banda indie Sonic Youth, declarada em entrevistas – além de outras referências a artistas dos mais variados estilos, dos quais os músicos do grupo mineiro beberam e absorveram sonoridades diversas de forma rica e criativa. O Sepultura era uma banda que não se prendia às amarras e dogmas do metal, inovou o estilo e continuou muito influente. 

Após o fim da apresentação, a sensação era de êxtase e de satisfação do público presente. Alguns tentavam pegar baquetas, palhetas e set lists distribuídos pela banda e pela equipe de palco. Assim como havia uma música dos Titãs em som mecânico antecedendo os shows dessa turnê, também há uma canção oficial pós-show: “Easy Lover”, de Phill Collins, algo um tanto inesperado para uma banda de metal, mas adequado quando esta banda é o Sepultura, que tem integrantes com gostos bem ecléticos. Assim encerrou-se este que pode ter sido o último (e não menos histórico) concerto do Sepultura em Curitiba.

Set list:  “Refuse/Resist”, “Territory”, “Slave New World”, “Phantom Self”, “Dusted”, “Attitude”, “Kairos”, “Means To An End”, “Cut-Throat”, “Guardians Of Earth”, “Mind War”, “False”, “Choke”, “Escape To The Void”, “Kaiowas”, “Sepulnation”, “Biotech Is Godzilla”, “Agony Of Defeat”, “Troops of Doom”, “Inner Self” e “Arise”. Bis: “Ratamahatta” e “Roots Bloody Roots”.