Paul Thomas Anderson faz poesia apaixonada para a sua infância californiana em filme sobre crescer e se apaixonar

Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Universal Pictures/Divulgação
Um filme não precisa de trama. Isso não quer dizer que o melhor cinema é a pura experimentação formal, mas que a significação proporcionada pela linguagem fílmica está para muito além dos limites de atos, antagonistas e um roteiro livre de “furos”. Tudo depende, claro, do que se quer expressar em cena. No caso de Licorice Pizza (Canadá/EUA, 2021 – Universal Pictures), a resposta é bem mais pessoal que em alguns dos projetos mais ambiciosos de seu diretor, o aclamado Paul Thomas Anderson.
Anderson (ou simplesmente PTA) escreveu e dirigiu seu nono longa-metragem com um olhar intimista e bastante derivado de sua infância californiana. Não à toa, Licorice Pizza retrata a Califórnia dos anos 1970 impressa nos encontros de dois amigos e um romance almejado: Alana (a cantora e guitarrista Alana Haim) e Gary Valentine (Cooper Hoffman). Enquanto Alana tem pouco mais de 25 anos, Gary é um ambicioso adolescente de meros 15. Contudo, seus comportamentos dão um nó na expectativa que temos de suas personalidades, suposições ancoradas, claro, no choque etário.
Gary é um jovem ator que toca uma empresa de relações públicas com a mãe e é respeitado por onde vai, tal qual um adulto. Em paralelo, Alana presta minuciosas contas do que faz ao pai e tem constantes rusgas com as irmãs ainda mais velhas, todas sob o mesmo teto, tal qual uma adolescente. O longa de PTA, então, é muito mais que um romance – é uma crônica do envelhecer, um coming of age que opera pelas perspectivas do adolescente “adultizado” e da adulta infantilizada.
Anderson representa esses polos performáticos por meio da amizade que floresce, inicialmente um avanço de Gary para conquistar Alana, e acaba por mostrá-la o novo e excitante mundo do cinema e do business. Ao mesmo tempo que as personagens se aproximam, elas se afastam – afinal, a idade não deixa de impor um empecilho em suas interações.
Estas, justamente, são o foco do filme, que se distancia do enredo tradicional para aproximar-se do livre jogo de pequenas trocas e conversas entre Alana, Gary e seus amigos no entorno. Se Era Uma Vez Em Holywood, de Tarantino, é uma carta de amor aos anos 1960 e à indústria cinematográfica da época, Paul Thomas Anderson escreve sua poesia apaixonada pela Califórnia de sua infância por entre versos sobre o crescer e o apaixonar-se.
Afinal, a relação com o outro não existe sem o olhar para si, que inevitavelmente traz à tona conflitos pessoais. Não há momento mais propício para esses debates internos que esse limbo entre a adolescência e a vida adulta no qual convivem a infantilização e a exponencial responsabilização. De modos distintos, tanto Gary quanto Alana estão presos nesse jogo, e cada vez que um vai para o lado, o outro reage pulando para o outro.
Os afetos são construídos sem pressa, de modo que cada ato significa mais no campo não verbal e dos simbolismos que na literalidade do texto – uma decisão que PTA evidencia quando, no momento climático do filme, entrecorta entre Alana e Gary correndo em separado com momentos anteriores em que fizeram o mesmo para ajudar um ao outro.
Esse apreço pelo simbólico, entretanto, não poderia existir senão pela atenção do diretor à técnica do cinema. Em seu segundo longa acumulando as cadeiras de direção e fotografia, o preciosismo do cineasta com lentes, luzes, ângulos e enquadramentos se torna ainda mais central, num movimento bastante claro de sua filmografia. Por meio de seu estilo já conhecido de takes dinâmicos, tracking shots que acompanham as personagens e mise-en-scènes ora requintadas, ora simples e diretas, Anderson traz à vida sua Califórnia que respira e se move no frescor da infantilidade de Alana e Gary.
Não ao acaso, a trilha sonora escolhida para o filme é a imagem dos anos 1970 em sua face mais animada e pulsante. A faixa que leva o nome do filme, composta por Jonny Greenwood (integrante do Radiohead e já com diversas colaborações com as obras de Anderson), é a representação musical da leve brisa que entremeia Licorice Pizza.
Em uma análise comparativa da trajetória de Anderson, Licorice Pizza talvez não seja o mais “profundo” de seus filmes. Passa longe de ser o mais sério. Mas é, sem dúvidas, um dos melhores, capturando muito do que há de bom espalhado entre Vício Inerente, Magnólia e até Trama Fantasma (meu confesso favorito) para, longe de qualquer pretensão moral ou sequer de enredo, presentear o espectador com duas horinhas de um olhar apaixonado pelo processo, como já mencionei antes, de crescer consigo mesmo ao apaixonar-se pelo outro.