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Meu Anjo

A resiliência emocional de uma garota de onze anos de idade frente ao abandono provocado pelo hedonismo excessivo de sua mãe

gueuledange2018

Texto por Abonico R. Smith

Foto: Imovision/Divulgação

Muita gente pode se pegar, saindo das salas de cinema, após assistir a Meu Anjo (Gueule D’Ange, França, 2018 – Imovision) e se angustiar ao ver como Marlene trata a sua filha de onze anos, perguntando-se como uma mãe pode ser tão displicente, relapsa e egoísta assim. Contudo, o filme assinado pela diretora e roteirista Vanessa Filho toca em algo bem mais profundo e inquietante do que isso.

Meu Anjo trata, com lentes ampliadas em demasia, a dura falta de alternativas de uma menina que, no período final da infância, precisa lidar com os excessos e irresponsabilidades da mãe para lutar pela sobrevivência e achar um lugar emocionalmente seguro no mundo. A pequena Elli (Ayline Aksoy-Etaix, em interpretação brilhante, sobretudo nos olhares de tédio, cinismo e desaprovação em relação às atitudes de Marlene) não pode contar com ninguém. Sua mãe não está nem aí com ela. Interessada mais em seu hedonismo regado a sexo e bebidas, abandona-a por muitas horas e até dias. Nas ruas e no pátio do colégio a menina sofre, sem parar, com o bullying de colegas e vizinhos. Precisa se virar sozinha para fazer sua comida, comprar o que precisa na rua e tentar se amparar em uma racionalidade que possa sustentá-la e evitar que ela entre em parafuso por causa de sua dor, desespero e, sobretudo, pouca experiência de vida.

Com sua câmera inquietada e movimentada, que convida o espectador a se sentir in locoe por isso mesmo acaba acentuando ainda mais a perturbação provocada pela amoralidade de Marlene (Marion Cotillard, em atuação propositalmente discreta), Vanessa Filho retrata a crueldade de uma pré-adolescente desprotegida exposta a um mundo sem filtros, capaz de se identificar rapidamente com o filho do vizinho, um rapaz tão ignorado pelo pai quanto ela pela mãe, ou mesmo tratar a dependência etílica como algo tão natural a ponto de seus bichos de pelúcia também sofrerem com ela. Ok que o roteiro tenha certas inverossimilhanças acentuadas, como o fato da ausência completa de adultos ao redor (nem mesmo a direção da escola) incomodados pelo abandono parental de Elli ou ainda certas atitudes tomadas pela garota a partir da metade final da história.

Mais do que sentir desgosto ou repudiar as atitudes completamente inconsequentes da mãe, o espectador acaba é se identificando com o sentimento de “o que é que eu estou fazendo aqui?” deixado explícito o tempo inteiro pelos olhares da filha. No fundo, ela é mais adulta que sua progenitora ao se deparar com a necessidade de tomar conta dela mesma em um mundo escancaradamente selvagem. O que salva o filme de cair na vala do melodrama é a sua noção de realidade tão precocemente distorcida, deturpada e modificada. E faz você ficar pensando depois não em como podem existir pessoas por aí que agem de maneira tão destrutiva como Marlene, mas sim em almas tão fortes e resilientes como Elli.

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