Animação baseada na vida e obra da cartunista Laerte Coutinho estreia nas telas depois de 25 anos com muitos percalços
Texto por Janaina Monteiro
Foto: Lança Filmes/Divulgação
Durante os 25 anos em que o diretor de animação Otto Guerra manteve a ideia de levar para as telas de cinema a versão dos quadrinhos de Piratas do Tietê, a vida real – como ele mesmo disse quando esteve em Curitiba no último dia 27 de outubro, para lançar o filme – atropelou o projeto original diversas vezes. Ele, a cartunista Laerte Coutinho, o país e o mundo não são mais os mesmos. Otto descobriu um câncer metastático e por um triz não deixou o projeto órfão. Já Laerte, como todo mundo sabe e está cansado de saber, assumiu sua transexualidade e de seus colegas cartunistas do passado – a tríade Adão (Rocky & Hudson), Angeli (Wood & Stock) e Glauco (Geraldão, Rê Bordosa) – o último foi assassinado, o do meio anda recluso (com depressão, segundo Otto) e o primeiro se debandou para a Argentina. Ou seja, tudo virou de cabeça para baixo.
O mundo também parece estar em derrocada, com a ascensão da extrema direita fascistoide e o Brasil liderado por um presidente que incentiva o uso de armas de fogo e sempre manteve o discurso homofóbico. Por isso, não há arma melhor do que o humor irônico dos quadrinhos de Laerte para combater esse caos todo. Com um diretor de sobrenome Guerra, melhor ainda.
Cidade dos Piratas (Brasil, 2019 – Lança Filmes), a primeira animação proibida para menores, retrata exatamente esta confusão, sendo a obra em si totalmente caótica, mas com caráter extremamente filosófico e histórico. Depois de oito roteiros e muitas reviravoltas como o fato de quase morrer, Otto insistiu como todo brasileiro e, finalmente, conseguiu lançar a animação com storyboard de Laerte – que é corroteirista, ao lado dos sobreviventes Rodrigo John e Thomas Créus. O resultado foi um trabalho duplamente autobiográfico, que retrata tanto os percalços sofridos pelo diretor gaúcho, como a doença e a demissão da produtora executiva do projeto, e principalmente a mudança de identidade sexual da cartunista criadora dos piratas, um marco da contracultura nacional dos anos 80. Nesse caso, a criadora se tornou tão revolucionária quanto a criatura e sua transgeneridade deu novo rumo à história. Por isso o subtexto do filme é “livremente inspirado na vida e obra de Laerte Coutinho”.
Assim como Laerte, a animação também se metamorfoseou diante de todas essas situações sui generis e se transformou num filme fora da reta, com recortes, alegorias e metalinguagem, mas que, ainda assim, faz todo o sentido se juntarmos todos os caquinhos. Principalmente quem já têm um conhecimento prévio sobre a obra da cartunista. Caso contrário, sem este background, fica um tanto difícil entender alguns detalhes do humor refinado.
Diante de todo o cenário mutante, Otto definiu a animação como um “bicho de quatro cabeças”. “A produtora Marta Machado abandonou o projeto na metade. O roteiro mudou oito vezes. A sorte é que eu tive um câncer com metástase. Depois disso eu decidi: agora eu faço o filme que eu quero”, brincou Otto, diante da própria tragédia. Ao lado de Benett, representante da nova geração de cartunistas, o gaúcho conversou com a plateia curitibana, após a primeira exibição comercial do filme no país, no Cine Passeio. “Vou aproveitar que é aniversário do Lula e vou visitá-lo”, ainda disse o diretor na ocasião.
Otto revelou ainda que a linguagem dos quadrinhos tem um universo parecido com a animação. “Mas a estrutura é muito difícil. Me perdi completamente”, confessa. E por se desviar do tradicional, existe a dificuldade em definir a animação, principalmente fora do Brasil, onde é considerado um filme “exótico”.
Da história original foi mantido o confronto entre os bandeirantes e os índios escravos, que pegam em armas de fogo com a música de fundo de Raulzito Seixas, a superplausível “Aluga-se”. São Paulo cortada pelo seu rio marginalmente poluído representa toda a sujeira do Brasil. A animação é costurada com aparições de personagens da cartunista, hoje com 67 anos, cujo traço é indefectível. Estão lá o político homofóbico e enrustido Azevedo, como se fosse uma previsão de Bolsonaro em quadrinhos, dublado por Marco Ricca. Hugo e seu alterego Muriel, que é travesti, surgem na voz de Matheus Nachtergaele. Também há trechos de depoimentos da Laerte para a imprensa, com uma montagem bem irônica. O próprio Otto também estrela o filme, narrando numa subtrama o ocorrido durante o tempo de filmagem. Aliás, um dos culpados pelos seu câncer aparece numa das cenas de bar: o conhaque da propaganda maliciosa cujo slogan era “Deu duro? Tome um Dreher!”.
No final, Otto vence a doença e ganha elogios de Laerte. “Ela me deu um beijo na boca”, confidenciou. Por sua vez, a cartunista segue combatendo o preconceito com seu nanquim. Já São Paulo continua à mercê dos piratas, sendo cenário do apocalipse. Resta, agora, esperar como será a recepção da patrulha ideológica a esta animação.