Drama

Traidor

Gerald Thomas e Marco Nanini voltam a trabalhar juntos em espetáculo com jorro intenso de lembranças da vida de um velho e solitário ator

Texto por Abonico Smith (com colaboração de Daniela Farah)

Foto: Annelize Tozetto/Festival de Curitiba/Divulgação

Dentre todas as palavras que cumprem a função de sinônimo para o título deste espetáculo, a que melhor se encaixa é “enganador”. Afinal, não pode haver descrição para o velho ator, que, solitariamente, vê-se envolto em uma névoa mental onde fluxo ininterrupto de pensamentos, vozes, luzes e reflexões passam toda a sua vida a limpo, pessoal e profissionalmente falando. Enquanto tudo isso ocorre, o protagonista também percorre o caminho do engano. A si próprio e também à plateia que está lá diante dele, por conta da mágica da quarta parede quebrada.

Dezoito anos depois, Marco Nanini e Gerald Thomas voltam a trabalhar conjuntamente em uma produção, que ocupou os dias de 29 e 30 de março do Teatro Guaíra e da grade da mostra principal do anual Festival de Curitiba. Ator e dramaturgo, na duração de apenas sessenta minutos, provocam um jorro de considerações a respeito de passado, presente e futuro do personagem, “perdido em uma ilha” de ideias e considerações a respeito de muita coisa. Tal qual a torrente apresentada em um feed de rede social. Seja o Facebook, seja o Instagram, seja o X, seja o TikTok, seja o Kwai. O suporte é o que menos importa, mas sim o bombardeio ininterrupto capaz de provocar vertigem. Ou medo. Ou gozo.

Por falar em gozo, Gerald Thomas permanece sem resistir à tentação de provocar a  plateia, colocando atores renomados pronunciando palavras que fazem uma pretensa elite cultural se retorcer por dentro. Sim, os tais termos de baixo calão e com beliscadas na tangente do sexual. No primeiro Festival de Teatro de Curitiba, lá no já longínquo ano de 1992, barbarizou a plateia “republicana” em The Flash and Crash Days, na qual Fernandona (Montenegro) e Fernandinha (Torres) fizeram metade da plateia sair indignada da Ópera de Arame. Três décadas depois, com bem menos incautos na audiência mas ainda assim com um punhado de gente “de bem” que ainda tem a capacidade de se ofender e se chocar com isso, ele coloca Nanini dizer uma, duas, três vezes “cu” do palco do Teatro Guaíra. E não apenas isso. O mesmo ator (“enganador”) que  ficou no imaginário de milhões de brasileiros na pele do recatado, tímido, discreto e certinho pai de família Lineu, um dos personagens de destaque na série de TV A Grande Família, segura uma linguiça gigante durante uma memória de comercial e passa a disparar considerações sobre como é gostoso sentir a tal linguiça quente entrando (no forno?). É o enfant terrible confrontando de frente e com humor bastante afiado os traidores da pátria e os defensores da moral e dos bons costumes da família verde e amarela.

Também não dá para imaginar Gerald Thomas dirigindo e criando uma narrativa fechadinha, convencional, com começo, meio e fim. O jorro de pensamentos que aflige Nanini (o personagem, batizado com o sobrenome do ator) vem com significados bem abertos, tabelando com o cenário que flerta com o steampunk, o nonsense e o hiperrealismo e o diálogo com uma voz feminina pré-gravada que o alerta de algumas situações. Tudo dura exatamente uma horinha só. Pode até parecer pouco perto da média de duração dos espetáculos teatrais em geral. Mas a intensidade é tamanha que quem se joga e curte a viagem de Nanini de cabo a rabo (ops!) sai recompensado. E nem precisa procurar muito sentido em tudo.

Aliás, quando o assunto é Gerald Thomas, como se brincava na estampa daquela velha camiseta, tudo o que você menos precisa é entender um espetáculo seu. A maioria de quem se propõe a fazer isso, por sinal, levanta a bunda (ops!) da cadeira e sai mais cedo do recinto.

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Três perguntas para Marco Nanini

Com Traidor, Você e Gerald estão retomando uma parceria depois de quase vinte anos. Como foi o processo de criação deste espetáculo?

Nossa relação sempre vai sendo feita aos poucos. Aqui foi se modificando conforme eu também ia sugerindo a ele algumas coisas, intercalando textos irreverentes com outros mais contemplativos. É uma peça cotidiana, sem aquela coisa de coisa, meio e fim, Então o personagem alterna ideias, alucinações. Tudo acontece muito rápido. Gerald é muito bom parceiro mas durante os ensaios, em um estúdio que temos na zona portuária do Rio de Janeiro, o Fernando [Libonati, meu diretor de produção, com quem estou há muitos anos] deu muita opinião por causa do traquejo que ele também tem. É tanta coisa que é dita no palco que eu acabo saindo esgotado mentalmente de cada espetáculo. Nanini é um personagem bastante complicado, custei a encontrar um sentido geral para ele., que fica na solidão, revivendo personagens, como se estivesse perdido em uma ilha. Meio que como o Próspero, de A Tempestade de Shakespeare.

Há um momento durante o espetáculo em que você faz referência a uma velha cafeteira que faz parte do cenário da peça mas não é usada para nada. Para aumentar o nonsense você nunca pensou ou sugeriu trocar a tal cafeteira por uma jarra de plástico em formato de abacaxi tal qual aquela que ficou famosa na mesa da família do Lineu n’A Grande Família?

Graças a Deus, não! Quero continuar me livrando do peso do Lineu. Quando digo peso, claro que isso é algo que existe de melhor para qualquer ator. O reconhecimento, afinal, do trabalho. Mas também ao longo do tempo sempre me pautei pela diversidade na carreira. Sempre foi algo pensado, sabia que não queria ser só ator de chanchada no início. Eu vou fazendo coisas diferentes conforme elas vão aparecendo. Outra coisa que também me afasta bastante do Lineu na peça é a maquiagem do personagem, inspirada numa mistura do maestro russo Shostakovich com o pássaro pardal. Isso me ajuda a pensar ainda mais que não sou eu que estou ali.

Recentemente você teve uma biografia sua lançada, assinada pela jornalista Mariana Filgueiras. O que achou desta experiência?

Rememorar minha vida foi um processo muito agradável. Já fiz tanto e ainda tenho aquela vontade de fazer mais. Gostei muito do jeito que ela escreveu o livro. Mariana é muito cuidadosa e competente. Eu não a conhecia, foi meu editor que sugeriu o nome dela.

Series, TV

A Queda da Casa de Usher

Mike Flanagan transforma em minissérie toda a corrosão moral dos descendentes de um magnata de clássico conto de Edgar Allan Poe

Texto por Tais Zago

Foto: Netflix/Divulgação

No conto The Fall Of The House Of Usher de Edgar Allan Poe, o detetive Auguste Dupin narra o encontro derradeiro que tem com o milionário Roderick Usher, quando descobre alguns segredos da família de magnatas. É um conto trágico sobre loucura, família e isolamento que usa a estrutura de uma casa como metáfora para a destruição e corrosão moral.

Para terminar seu contrato com o streaming Netflix e nos presentear mais uma vez com uma obra assustadora em outubro, Mike Flanagan nos arrasta para a sua bela homenagem a Edgar Allan Poe – o pai do terror, horror, e, sim, também do true crime literário ao nos apresentar  Auguste Dupin, que inspirou Arthur Conan Doyle a criar sua mais famosa figura, o detetive Sherlock Holmes.

Em sua adaptação de A Queda da Casa de Usher (2023) para uma minissérie, Flanagan nos apresenta o clã dos Usher, uma linha de descendentes de Roderick Usher, o patriarca que construiu toda sua fortuna em cima da dor humana com a indústria farmacêutica. O grupo de seus filhos é formado por personalidades distintas mas que possuem em comum a ganância, a luxúria, a arrogância, a falta de talentos reais e a frieza daqueles endinheirados que há tempos perderam o contato com o mundo real e desaprenderam o código de normas éticas e morais humanas. Os semideuses construídos na base de grandes fortunas a la Elon Musk. Os donos do mundo que destroem o mundo.

Confesso que fui assistir com um pé atrás. Poucos conseguiram, até hoje, trazer Poe para as telas sem destruir o conteúdo. Algo meio parecido ao que ocorre com Stephen King. Mas Flanagan já provou seu talento em misturar terror, drama e suspense em obras-primas como A Maldição da Residência Hill (2018), baseado no romance de Shirley Jackson; A Maldição da Mansão Bly (2020), que, por sua vez, se inspirou no livro The Turn Of The Screw de Henry James. Ou com o complexo e ao mesmo tempo intrigante Missa da Meia-Noite (2021). Todos especialmente criados para a Netflix.

Flanagan é um artista multifacetado: cria, roteiriza, dirige, produz e até mesmo edita algumas de suas obras. Ele nos apresentou a uma forma de sentir medo confusa – a que nos assusta e também traz lágrimas de melancolia. Por vezes somos aliados de seus monstros e fantasmas. Por outras, roemos as unhas e levamos sustos de voar do sofá. Esse coquetel de sentimentos torna o trabalho de Mike um tanto inesquecível. As obras ficam conosco por alguns dias, meses ou até mesmo, anos gravadas em nossa memória.

Já Edgar Allan Poe dispensa apresentações. Quem, em algum momento da vida, interessou-se por literatura de terror, conhece bem o nome, sabe sua trágica história e entende algumas referências às suas mais famosas obras como The Raven, The Tell Tale Heart ou The Black Cat. Poe é a referência número um do terror gótico e vitoriano. É quem nos plantou na cabeça o medo de sermos enterrados vivos ou assombrados e levados à loucura pela nossa consciência.

Com respeito e reverência ao mestre do horror, Flanagan nos apresenta em oito episódios a série que tem o nome de um dos contos mais famosos de Poe. Só que A Queda da Casa de Usher, no final, é uma imensa homenagem a todo o corpo de trabalho do escritor, com capítulos cravejados de pequenas surpresas para os fãs. Vemos na tela seus poemas, seus temas, os nomes de seus personagens e todo clima gótico e depressivo-melancólico que envolve seus contos. Mergulhamos nas suas palavras que volta e meia nos tomam de assalto no meio dos roteiros de Flanagan. Como não poderia deixar de ser, os episódios levam também os nomes de obras de Poe.

Assim como outros mestres do horror, Mike tem suas musas, seu atores que aparecem em diversas obras em papeis diferentes. Sempre presente estão Kate Siegel (Camille), a esposa de Flanagan, e a atriz Carla Gugino (Verna). Mas temos também surpresas no cast como Mark Hamill (Arthur Pym) e Henry Thomas (Frederick), além de um elenco mais etnicamente diverso com Rahul Kohli (Napoleon), Sauriyan Sapkota (Prospero) e a encantadora Kyliegh Curran (Lenore). Uma agradável surpresa em relação a um dos pontos críticos que era identificado em suas obras. Contudo, confesso que senti bastante a falta de Victoria Pedretti, que junto com Kate Siegal são a marca registrada do horror de Flanagan, assim como Sarah Paulson e Jessica Lange estão para a obra de Ryan Murphy (American Horror Story).

Como nada é perfeito, também há pontos de crítica aqui. Algumas interpretações são engessadas, principalmente as de Hamill e de Mary McDonnell (Madeline); alguns CGIs deixaram a desejar; e alguns diálogos se tornaram longos demais. Às vezes é mais efetivo apresentar em seis episódios uma serie mais coesa e interessante do que estender por oito longas horas e arriscar a monotonia.

Apesar disso, A Queda da Casa de Usher deve empolgar bastante os fãs de Edgar Allan Poe. Principalmente aqueles que devoraram toda a sua produção e que são capazes de captar referência sutis, como o nome do arquiinimigo da vida real de Poe, Rufus Griswold, que empresta o nome a uma das figuras antagônicas da trama.

Music

Ira!

Oito motivos para não perder o show que recria na íntegra as oito faixas de Psicoacústica, o disco mais conceitual e cultuado do quarteto

Texto por Abonico Smith (com colaboração de Filipe Silva)

Foto: Ana Karina Zaratin/Divulgação

Deus escreve certo por linhas tortas, já dizia aquele velho provérbio. A frase parece se encaixar bem quando o assunto é Psicoacústica, o terceiro álbum da carreira do Ira!. Lançado em maio de 1988, o trabalho foi precedido por uma grande expectativa. O quarteto paulistano vinha de dois primeiros discos muito badalados por crítica e público, tendo o segundo, de dois anos antes, ultrapassado a marca das 250 mil cópias vendidas. Pegou o tempo das vacas gordas do Plano Cruzado e impulsionou a carreira, ainda curta, de uma banda que apresentava aos jovens brasileiros a sonoridade dos mods britânicos da década de 1960. De quebra, jogou o grupo, já bastante conhecido do circuito underground, ao estrelato nacional, chegando a garantir uma escalação para a primeira edição do megafestival internacional Hollywood Rock, surgido na cola do Rock In Rio.

Com a moral alta dentro da gravadora, ficaram livres para fazer o que quiseram durante a concepção e gravação do álbum, inclusive tendo orçamento generoso e tendo o privilégio de poder produzir a própria obra. Contudo, o resultado flopou. Pelo menos comercialmente falando. Oito faixas longas no vinil, arranjos extensos e nada radiofônicos. Não havia quase refrão e a viagem sonora levou Nasi (voz), Edgard Scandurra (guitarras), Gaspa (baixo) e André Jung (bateria) a explorarem sonoridades e ritmos que ainda não cabiam direito nos ouvidos da multidão que consumia aquele “novo” nicho fonográfico brasileiro chamado rock. Resultado, o disco não ganhou videoclipe para a divulgação na TV aberta e tocou bem pouco nas emissoras que abriam (muito) espaço em sua programação a outros colegas de gênero. A chegada a “apenas” 50 mil exemplares adquiridos nas lojas foi considerada decepcionante.

Psicoacústica foi uma espécie de rebeldia do Ira! frente ao pertencimento ao mundo da fama e do mainstream. A banda renegou o modus operandi de fazer playback em programas de auditório. O dinheiro torrado pela gravadora meio que queimou o filme dentro da própria casa – outros três álbuns chegaram a ser lançados pela Warner (então WEA), mas nem a atenção da gravadora nem as vendas conseguiram voltar aos velhos tempos – tanto que o lançamento em CD levou anos e anos e anos para acontecer, mesmo com a explosão do consumo do formato nos anos seguintes ao Plano Real, em meados dos 1990s. Só que, por outro lado, do fracasso nasceu o culto: muitos fãs fiéis amaram o disco e fizeram com que ali nascesse uma das fases mais queridas da banda. Não à toa, listas de melhores elaboradas pelas revistas Rolling Stone e Billboard já neste século 21 consideram o conjunto destas oito faixas “estranhas e esquisitas” um dos cem melhores trabalhos da música brasileira de todos os tempos.

Por isso, Psicoacústica é considerado hoje um dos grandes ativos dentro da trajetória do Ira!. Hoje com a formação modificada (Evaristo Pádua na bateria e Johnny Boy Chaves no baixo, ambos com passagens pela banda solo de Nasi), o grupo resolveu celebrar os 35 anos de Psicoacústica levando-o na íntegra aos palcos. O show leva, no decorrer deste ano, aos espectadores de algumas grandes cidades brasileiras a mesma ordem original das faixas. A estreia ocorreu em primeiro de abril em São Paulo. Ontem foi a vez de Porto Alegre. Hoje (7 de outubro), quem recebe o espetáculo é Curitiba (clique aqui para mais informações sobre horário, local e ingressos).

Mondo Bacana destaca abaixo oito motivos para você não perder esta apresentação especialíssima de poucas datas espalhadas pelo calendário de 2023.

Fartos do rock’n’roll

Com moral dentro da gravadora, o Ira! conseguiu fazer com que um barracão no bairro paulistano da Barra Funda com a instalação até de uma estrutura de palco vinda do Radar Tantã (danceteria paulistana que ficava no lugar depois consagrado pela marca AeroAnta). Assim, os quatro tiveram liberdade de tempo e pressão para criar, através de jam sessions, algumas faixas que viriam a ser gravadas em Psicoacústica. A ideia, entretanto, era fugir do esquema de banda mod que predominara nos dois álbuns anteriores. Então surgiram arranjos mais longos e pesados, novas timbragens, canções sem aquele esquema tradicional de estrofe e refrão intercalados e flertes com outros ritmos e gêneros, como o psicodelismo, o hard rock, o reggae, a embolada e o hip hop. Edgard compôs uma canção, com muito humor, chamada “Farto do Rock’n’Roll”, que foi incluída no lado B do vinil, só que (ironia das ironias!) o arranjo é capitaneado por uma guitarra bem pesada e que dobra o riff de baixo criado por Gaspa. Depois um longo tempo trabalhando em estúdio (fazendo prés em Sampa, gravando oficialmente no Rio) possibilitou mais experimentos que rompessem com o padrão do rock básico do power trio com guitarra, baixo e bateria. Edgard explica. “Todos os trabalhos do Ira! sempre foram conceituais. Não digo discutidos anteriormente, pensados, mas às vezes intuitivamente acabaram criando um caminho a se trilhar, de sonoridade, de conceito, de paisagem musical. E assim foi com o Psicoacústica. A gente mudou um pouco os timbres, os efeitos, usando mais tecnologia. Acho que no princípio o Ira!, de criação, era muito inspirado nos nossos ídolos, e os ídolos como os Beatles. Vamos dizer que não seja a maior influência da gente, mas tem um Sgt Pepper’s na sua carreira. Assim como Clash tem o Sandinista, o Who tem o Quadrophenia. E outros artistas têm um disco especialmente conceitual. Acho que o Ira! tem esse objetivo de fazer discos diferentes que deixem marcas mesmo e o Psicoacústica foi feito pra não ser uma continuidade, teve um rompimento ao mesmo tempo que expunha o melhor de todos nós.”

Flerte com o hip hop

Lançada no mesmo ano de Psicoacústica, a coletânea Hip Hop Cultura de Rua significou o marco zero do rappaulistano no mercado fonográfico. O álbum reúne os grupos e pessoas que costumavam se encontrar na estação de metrô do Largo de São Bento para dançar break, falar sobre grafite, trocar informações sobre o efervescente gênero que vinha dos guetos negros dos grandes centros americanos e ainda compor as primeiras letras. Nasi e André foram dois dos produtores destas gravações. O diálogo constante com essa turma toda se refletiu no disco do Ira!. Em “Farto do Rock’n’Roll”, o vocalista usa e abusa dos scratches. Já o canto falado em cima do ritmo aparece em “Advogado do Diabo”. E o sampler copia trechos incisivos do filme O Bandido da Luz Vermelha em “Rubro Zorro”.

Prévia do manguebit

Chico Science gostava tanto de “Advogado do Diabo” que às vezes incluía a música no set list de seus shows. Tudo porque, alguns anos antes do manguebit surgir em Recife para ser exportado para o resto do país e o mundo, o Ira! já conectava o regionalismo musical brasileira (no caso, a percussão nos pandeiros da embolada nordestina) com o que as antenas captavam de sonoridade vinda do exterior (no caso, o hip hop nova-iorquino). Sem falar no teor extremamente crítico da letra, que também já antecipava toda a esculhambação que temos visto ultimamente nos meios da politica e da justiça neste país. No disco, a faixa ainda acaba com o sample de discurso de uma conhecida celebridade que transita entre o religioso e a caridade, mandando ver na conjunção entre o fascismo e o neoliberalismo nas ondas de uma emissora AM: “Não adianta, tem que haver rico, tem que haver pobre; tem que haver negro, tem que haver branco; tem que haver patrão, tem que haver empregado; por que o povo quer assim!”.

Verão da lata

Era uma vez um navio de bandeira panamenha chamado Solana Star, que partiu da Tailândia rumo aos Estados Unidos no segundo semestre de 1987. Além de pescados, a tripulação também traficava 22 toneladas de maconha acondicionadas em 15 mil latas. Contudo, a agência americana de combate às drogas descobriu o plano e avisou a polícia federal brasileira porque a embarcação precisaria aportar em nosso país para fazer alguns reparos. Com a delação do chefe do bando, o Solana Star precisou se livrar do material ilícito e a solução foi jogar tudo em águas internacionais antes de chegar por aqui. Resultado: o verão tupiniquim, da Bahia ao Rio Grande do Sul, foi infestado a partir de dezembro por estas latas trazidas pelas ondas até as praias. Quem provou da erva atestou que nunca existiu (e nem deverá existir) qualquer outra coisa parecida ou melhor no ramo. Foi tanto fuzuê que a PF paralisou todas as outras atividades naquele momento e se concentrou somente neste caso. Enquanto isso, muita gente aproveitou a remessa gigante para ganhar dinheiro com vendas posteriores ou então viajar bastante com o consumo. E o Ira!, enquanto gravava o disco, ficou fã. O que acentuou ainda mais o psicodelismo de Psicoacústica. Sobretudo na última faixa do lado B, “Mesmo Distante”. Nela, Edgar sobrepõe camadas e texturas de craviola, violão e guitarras cheias de efeito. Tem até loop do instrumento tocando ao contrário. Para Scandurra, a época do fumo da lata foi importante. “A gente já estava querendo alguma coisa que transpusesse a coisa do experimentalismo técnico, de ficar experimentando ritmos musicais como se fosse um trabalho acadêmico. A gente buscava uma essência que talvez a lata tenha nos ajudado a atingir. Principalmente quando você fica mais de um mês dentro do estúdio gravando. Era um disco de oito músicas, não um disco de muitas faixas. Um disco de oito músicas densas, grandes, longas. Acho que a lata foi importante para a coisa recreativa, da diversão, que a cannabis produz, provoca na pessoa, e na inspiração mesmo, relaxamento.”

O terceiro mundo vai explodir!

Nasi dá seu atestado sobre o período de concepção de Psicoacústica: “vivíamos um período muito conturbado do Brasil, prestes a ter sua primeira eleição a presidente [o que aconteceu em 1989], saindo de uma ditadura, crise econômica séria, vindo do final de um governo corrupto e inadequado como foi o Sarney, um vice [presidente] incompetente e cheio de oligarquias ao seu lado. Acho que tudo isso, assim como os dois primeiros discos do Ira! refletem uma fase mais solar, digamos, mais esperançosa do pais, 1985, 1986, esse momento do país refletiu muito nesse ar sombrio do disco, nessa atmosfera carregada dele, em letras por vezes pessimistas ou então questionadoras, como ‘Pegue Essa Arma’. Por isso que o Psicoacústica é muito diferente em atmosfera e em letra dos dois primeiros”. Na citada “Pegue Essa Arma”, que também antevia o Brasil desses últimos anos de (des)governo violento e superarmamentista, o vocalista ainda encaixou um sample com duas frases extraídas do filme O Bandido da Luz Vermelha: “O terceiro mundo vai explodir! E quem tiver de sapato não sobra!”. 

Bandido da Luz Vermelha

João Acácio Pereira da Costa aterrorizou São Paulo praticando crimes pela madrugada durante cinco anos na década de 1960. Estupros, roubos, assaltos e assassinatos foram atribuídos pela polícia a ele, que para suas atividades ilícitas se utilizava de quatro personalidades diferentes. Uma delas era o Bandido da Luz Vermelha. O fato de carregar uma lanterna com lente vermelha chamou a atenção da imprensa que o popularizou com este apelido. O cineasta Rogerio Sganzerla pegou a história de João Acácio como base e fez em 1968 um filme de mesmo nome, com o ator Rogério Villaça como o protagonista. Muita gente acha que este longa-metragem foi a inspiração para a faixa de abertura de Psicoacústica. Afinal, “Rubro Zorro” já começa com o slogan “Trata-se de um faroeste sobre o terceiro mundo”, extraído de lá. Só que o que quase ninguém sabe é que a inspiração de João Acácio veio dos Estados Unidos. Caryl Chessman foi condenado à morte em 1948 pela mesma série de crimes ocorridos nas redondezas de Los Angeles, também sob a pecha de utilizar uma lanterna de luz avermelhada. Depois de ser preso, nos anos 1950, tornou-se popular mundo afora por ter estudado Direito, ter sido o próprio advogado e escrito um romance e três livros autobiográficos que despertavam sentimentos extremos e difusos, de compaixão a raiva. Caryl foi executado na câmara de gás em 1960 e vários versos escritos por Nasi para esta canção fazem referência a ele. Depois da morte de Sganzerla, a viúva do cineasta colocou vários trabalhos inéditos feitos por ele, inclusive um clipe como cenas de seu longa-metragem para esta faixa do Ira!. Na época, Nasi o convencera de dirigir o vídeo de “Pegue Essa Arma”, mas a gravadora deu para trás e nada rolou.

Poema português

Quando serviu o exército, Scandurra conheceu outro soldado, de sobrenome Esteves, que lhe deu um poema escrito num papel. Este poema acabou virando uma música. “Receita Para Se Fazer Um Herói” já estava no repertório do Ira! havia algum tempo mas só foi gravada em Psicoacústica e virou a única faixa a emplacar execuções radiofônicas. Só que algum tempo depois a banda descobriu que, na verdade, o poema – bastante sarcástico, por sinal – era de Reinaldo Ferreira, um dos maiores poetas da História portuguesa, com especialistas comparando-o a Fernando Pessoa.

Complemento do set list

Nasi brinca que o show não duraria nem 40 minutos se a banda tocasse somente as oito faixas de Psicoacústica. Então, acabada a reedição mas uso poucoo mas uso poucoo ao vivo deste cultuado álbum, entra uma segunda parte do concerto, que privilegia várias de suas principais músicas espalhadas pela extensa discografia. Vai ter também grandes hits, como “Núcleo Base”, “Dias de Luta”, “Flores em Você” e “Envelheço na Cidade”? Óbvio. Vai ter pequenas pérolas vindas de álbuns nem tão conhecidos, como “Tarde Vazia”, “Eu Quero Sempre Mais” e “O Girassol”? Sim. Vai ter canção da safra mais nova, do disco criado e concebido depois do hiato de alguns anos? Também e ela se chama “O Amor Também Faz Errar”. Agora o mais surpreendente é que o Ira! também tocará três covers escolhidas a dedo de clássicos do rock anglo-americano (bom… se contar os nomes das músicas ou os artistas aí vira spoiler!).

Movies

Toda Noite Estarei Lá

Documentário revela a luta de uma mulher trans pelo seu direito de frequentar a igreja evangélica que a expulsou à força

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Divulgação

No Brasil, o direito ao culto é uma garantia de todo e qualquer cidadão. Em 2020, cerca de 80% do povo brasileiro, se não mais, considerava-se cristão (entre católicos e evangélicos), e as últimas décadas foram marcadas pelo aumento exponencial de igrejas e templos ao redor do país. Em um deles, contudo, Mel Rosário foi impedida de entrar.

Em Toda Noite Estarei Lá (Brasil, 2023) documentário que compõe a mostra Competitiva Brasileira do 12° Olhar de Cinema, as diretoras Tati Franklin e Suellen Vasconcelos acompanham a disputa judicial de Mel, uma mulher transexual que foi expulsa à força pela equipe da Igreja que costumava frequentar. Sua batalha termina em vitória no papel, mas o preconceito e a exclusão sistemática de pessoas LGBTQIA+ do meio evangélico permaneceram.

Passamos o longa todo com Mel. Se a montagem inicial nos apresenta a um filme fortemente combativo cujo objeto é a luta política de uma mulher trans por seu direito ao culto, logo entendemos que a câmera de Franklin está apontada para toda a vida dessa mulher, que é permeada e atravessada pela religião de modo avassalador. Em seu discurso, é evidente a crença em um “castigo divino” aos que lhe fizeram mal e na inabalável suposição de que todo sofrimento tem um propósito. Uma transexual em um ambiente LGBTfóbico ao extremo, Mel não questiona as instituições que perpetuam o preconceito contra si, imputando as agressões à individualidade do pastor ou no plano de Deus por sua fé.

Sendo assim, a figura de Mel, personagem-objeto do filme, está fundamentada numa contradição profunda entre modo de vida e modo de crença, aquele em constante desafio à normatividade conservadora enquanto este ancorado nessa mesma filosofia que a martiriza e hostiliza. Essa operação contraditória se cristaliza à medida que o filme se desenvolve, pois nem a protagonista nem as autoras do documentário têm interesse em questionar essa distensão profunda. O filme chega a fazer piada da falta de resposta à pergunta “mas por que você não vai pra outro lugar que te aceite?”. Será que ela deveria ir ou continuar insistindo? O culto a Deus tem local e hora para acontecer?

A forma com que o espectador responde esses questionamentos altera profundamente o modo com que enxerga o filme. É uma experiência, assim como a religiosa, profundamente calcada na subjetividade moral de cada um de nós. E a determinação de não tocar nesse vespeiro, mas deixá-lo ali, sempre presente, sempre crescendo, faz o longa-metragem se equilibrar num muro de palha. Ao invés mergulhar no conflito que dá nome ao filme, o enfrentamento de Mel contra aquela igreja, o caminho dessa narrativa é o de exaltar sua fé privada, suas boas ações e pequenas vitórias. 

Em certo momento, a obra deixa de lado o conflito religioso para enaltecer a posição política de Mel contra a prisão de Lula e na campanha de Haddad na eleição presidencial de 2018, que termina na eleição de Jair Bolsonaro. Ele já escancarava suas posições fascistas e profundamente LGBTQIAfóbicas e seu reduto eleitoral, pode-se dizer, fora a Igreja Evangélica. Ainda assim, o documentário não se interessa em tocar a contradição ético-política que grita em seu âmago, implorando para ser trabalhada.Toda Noite Estarei Lá nos apresenta uma premissa envolvente e desafiadora, inicia nossa jornada com todos os sinais de um forte filme político e decide nos deixar à espera. Seu foco é manobrado para uma exaltação das virtudes de Mel, uma protagonista que, mesmo com um carisma inigualável, não sustenta uma projeção que levanta tantas perguntas sem o interesse de respondê-las.