Jovem legião de fãs se conecta com a artista em uma viagem de 45 músicas que percorre vários sentimentos em comum nessa vida
Texto por Helena Biscaia
Foto: Reprodução
“É você e eu, não tem nada como isso”. Essas palavras ecoam sobre a arena do Palmeiras assim que Taylor sobe ao palco no último dia 25 de novembro, em São Paulo. E não há melhor jeito de descrever a relação que a cantora tem com as garotas dessa geração mais nova do que com dessa maneira.
The Eras Tour é uma viagem que percorre os vários sentimentos da vida. Luto, com a canção “marjorie”. Raiva, com “Look What You Made Me Do”. Perda, com “All Too Well”. A magia de algo novo, com “Fearless”. “The Archer” descrevendo perfeitamente o monólogo interno de pessoas que sofrem de ansiedade. Sem mencionar a sensação de escutar a canção que Taylor escreveu em homenagem aos fãs, “Long Live”, ao vivo.
Devo também confessar que escutar a subida do refrão de “Enchanted” no show é uma das coisas mais mágicas que alguém pode vivenciar. O vestido rodado e brilhante de Taylor voando sobre o palco e a melodia da canção fazem com que a atmosfera se transforme em um verdadeiro conto de fadas.
Resumindo, The Eras Tour é uma experiência única para cada um de seus fãs. Ir ao show dela também pode ser uma maneira de sentir profundamente cada palavra de cada letra genial. E descobrir que, sim, você tem muitas coisas em comum com Taylor Swift.
Set list: “Miss Americana & The Heartbreak Prince”, “Cruel Summer”, “The Man”, “You Need To Calm Down”, “Lover”, “The Archer”, “Fearless”, “You Belong With Me”, “Love Story”, “’tis the damn session”, “willow”, “marjorie”, “champagne problems”, “tolerate it”, “… Ready For It?”, “Delicate”, “Don’t Blame Me”, “Look What You Made Me Do”, “Enchanted”, “Long Live”, “22”, “We Are Never Ever Getting Back Together”, “I Knew You Were Trouble”, “All Too Well”, “the 1”, “betty”, “the last great american dynasty”, “august”, “illicit affairs”, “my tears ricochet”, “cardigan”, “Style”, “Blank Space”, “Shake It Off”, “Wildest Dreams”, “Bad Blood”, “Safe & Sound”, “Untouchable”, “Lavender Haze”, “Anti-Hero”, “Midnight Rain”,”Vigilante Shit”, “Bejeweled”, “Mastermind” e “Karma”.
Longa brasileiro sobre mulher trans que luta por um casamento religioso ganha prêmios mas não deixa de ser desastrado no percurso narrativo
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Pandora Filmes/Divulgação
Na arte contemporânea, assim como no cinema, o século 21 trouxe consigo uma mudança nos paradigmas que definem o que é a ‘boa arte’ e a ‘arte ruim’. Em linhas gerais, a parte relevante ao discurso não é mais a forma com que ele é estabelecido, mas o tema sobre o qual versa. A arte toma seu lugar no mundo não somente como expressão do sujeito, mas sua expressão sobre algo.
No cinema, a situação é a mesma, a se demonstrar pelas recentes polêmicas e mudanças de rumo sobre diversidade e inclusão na indústria. Em um cenário em que a vivência de quem está diante e detrás das câmeras é essencial para a compreensão do filme enquanto obra, a autoficção e o retrato de si vêm ganhando corpo e notoriedade. Sobre o que as vozes que nunca tiveram o direito de portar o megafone das artes falarão senão delas mesmas?
Nesse panorama, Paloma (Brasil/Portugal, 2022 – Pandora Filmes) ganha tração como um dos fortes nomes do cinema nacional. Desde sua estreia no Festival de Munique de 2021, o longa sobre uma mulher trans que luta por um casamento religioso foi exibido ao redor do mundo e comemorou os prêmios de Melhor Filme da mostra competitiva e Melhor Atriz do Festival do Rio 2022 para Kika Senna, que interpreta a personagem-título. O destaque, contudo, é que a situação não é tão autoficcional assim.
Inspirado em uma notícia de jornal que dá a premissa já citada, Paloma se constrói narrativamente como uma ficção atenta à realidade, tecendo em si mesmo um comentário sobre o mundo sem fazer do concreto seu objeto de análise. A protagonista é mãe da pequena Jenifer (Anita de Souza Macedo) e vive junto de Zé (Ridson Reis), um pedreiro que não parece embarcar no sonho do casamento com véu e grinalda. Trabalha no campo, tem amigas por lá e mantém forte contato com a comunidade trans de Saloá, cidade no Pernambuco onde vive. Ao apresentar Paloma com profundidade e complexidade, o longa-metragem não comete o erro de simplificar sua protagonista e, com isso, prejudicar a narrativa.
Paloma ama, trabalha, cuida. Mas também erra, e tais erros dão o andar da carruagem à história do filme. Marcelo Gomes, que dirigiu Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), é diretor e corroteirista deste longa (junto de Gustavo Campos e Armando Praça) e aqui opta por meandros entre a narrativa convencional e o estudo de personagem contemporâneo (aquele em que o tema é a lente focal ao mesmo tempo que seu próprio objeto). A decupagem é simplista e as sequências são conduzidas com um ou dois planos e pouco dinamismo clássico, como o jogo de campo/contracampo e planos de contexto (os planos gerais que nos apresentam o espaço da cena). Isso confere à ação um tom muito mais teatral, e ao ritmo do longa um senso de lentidão – embora o marasmo pareça buscar uma atmosfera que incita a reflexão.
Ainda, na medida em que as cenas se iniciam e terminam no decorrer dos diálogos – o que nos dá a sensação de estarmos sempre atrasados ou saindo muito depressa –, a presença da câmera no espaço é berrante: estamos conscientemente adotando a perspectiva da câmera, o olhar da lente sobre a história. Sua imobilidade faz de si um corpo existente no espaço; a montagem é também realizada nos planos, ações e reações que essa inércia nos tira.
A forma do filme, então, suscita reflexão e, embora apresente problemáticas, não deixa de se fazer parte integral do discurso e demarcar muito bem a autoralidade de Marcelo Gomes, cuja carreira desponta como uma das mais sólidas desses 20 anos. Por outro lado, a narrativa solta do longa-metragem traz consigo outra série de complicações à estrutura do filme.
A partir daqui me debruço sobre a história retratada e, ainda que busque evitar spoilers, a oclusão de seus elementos impossibilitaria a clareza do meu argumento. Então, prossiga com certa atenção se prefere, assim como eu, saber o mínimo possível de um filme antes de vê-lo.
Paloma é um filme desastrado. Seu percurso narrativo é dissonante; ou seja, há relações esparsas entre uma determinada cena e a cena seguinte de modo que, se já empacamos na narrativa por estar sempre fora do tempo (sempre atrasados ou adiantados), a situação piora pela falta de continuidade que aqui se instaura. E embora exista uma preocupação com a premissa (mulher trans deseja casar na igreja), esse não é o principal vetor da história contada.
Destaco alguns exemplos. Logo no começo da trama, quando Paloma verbaliza pela primeira vez para Zé seu desejo de casar-se de véu e grinalda, cita a conexão especial que teve com o padre no casamento de uma amiga. “Olhava para mim, parecia que falava diretamente para mim”. No entanto, há pouco vimos a cerimônia, e o que se filma é a manifestação visual do desejo que viria a se concretizar na fala – Paloma fita o vestido que ajudou a ajustar e transborda em expectativa.
Ainda, conflitos são estabelecidos ao léu e jamais tensionados. Desde o início, Zé deixa clara sua indisposição em seguir com o casamento. Prefere gastar o dinheiro com uma moto nova e se refere ao casório como “coisa tua”. Em outras palavras, durante todo o filme, Zé não parece querer estar lá. Contudo, o embate desenhado no decorrer do longa só é concretizado no clímax da narrativa; e tão logo se coloca e já é resolvido.
Por fim, ocorre uma importante morte no andar da trama, mas sua repercussão é displicente e não condiz com os laços construídos pela história. O impacto parece, no fim das contas, nulo. E houve claras oportunidades de referenciá-la, o que tornaria um comentário “por fazer” em uma sólida e forte demonstração da barbárie à qual é submetida a comunidade trans no Brasil, o país que mais mata pessoas transexuais há 13 anos. O exemplo final é uma confusão de intenções, uma traição que se inicia com a tensão de um assédio e termina sem conclusão, um conflito irresolvido para sempre.
Paloma é um lançamento interessante deste ano, com fortes atuações e um esmero formal que se desgarra do panorama contemporâneo sem desgarrar-se completamente. Um mérito, por assim dizer. No entanto, o trato hesitante e embargado de sua história deixa evidente uma tentativa de desgarrar-se da narrativa convencional, novamente, sem fazê-lo completamente. Uma mácula, infelizmente.
“Tudo que tem um começo também tem um fim”. Assim disse Gilberto Gil um pouco depois de iniciado seu segundo concerto em Curitiba, onde esteve tocando nos últimos dias 27 e 28 de outubro. Logo depois, regeu o primeiro de quatro coros com o nome de Lula entoados pela plateia. Não era mais preciso muita coisa para se ter uma certeza naquela noite: o cantor e compositor baiano é o artista certo e na hora certa, o principal nome da música brasileira para representar e personificar, através de palavras, letras, melodias e harmonias o momento extremamente delicado que o país viveu nestes últimos dias de outubro.
Gil completou oito décadas de idade em 26 de julho. Está em plena vitalidade fisica, cantando (mesmo estando com a voz um tanto rouca desse dia na capital paranaense) e dançando com plena desenvoltura, empunhando e tocando sua guitarra no palco do Teatro Positivo. Tanto que nos últimos meses fez uma turnê de quinze datas por cidades europeias e ainda se apresentou em três conceituados festivais nacionais (Coala, MITA, Rock in Rio). Em todos os shows trazendo alguns familiares (filhos, netos) para integrar a sua banda de apoio. Também veio à capital paranaense para iniciar uma série de apresentações por cidades nacionais com a turnê Gil 80 Anos. Sorte nossa, sorte de quem estava na plateia – inclusive trinta convidados que representavam o MST em cada noite. Como visto recentemente no reality show Em Casa com os Gil, disponível para streaming na Amazon Prime, Gil é aquele avô carinhoso, amável, que desperta não só encantamento em quem está por perto com ainda provoca aquela sensação de calma e bem-estar em decorrência de seus conselhos, comentários e tudo aquilo que diz de maneira curta e rápida.
Foi assim no Positivo durante cerca de uma hora e meia de apresentação. Volta e meia, fosse no intervalo entre as canções ou mesmo durante elas (através de versos certeiros). Começou com as estrofes e refrão de “Tempo Rei”: “Água mole, pedra dura/ Tanto bate que não restará nem pensamento/ Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei/ Transformai as velhas formas do viver/ […] Mães zelosas, pais corujas/ Vejam como as águas de repente ficam sujas/ Não se iludam, não me iludo/ Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”. Na terceira música, unindo sua versão em português e o original em inglês de Bob Marley, decretou em “Não Chores Mais” que “Se Deus quiser/ Tudo, tudo, tudo vai dar pé”.
Mais pro miolo do set iniciou uma série de canções mais lentas. Menos dançantes e um pouco mais reflexivas. “Mais suaves”, como declarou ao microfone. Contudo, a suavidade também desconcerta. Mesmo passados quarenta anos é impossível não se emocionar com “Drão” (“O amor da gente é como um grão/ Uma semente de ilusão/ Tem que morrer pra germinar/ Plantar em algum lugar/ Ressuscitar no chão nossa semeadura”). Para Gil, esta é “uma canção da crença e da fé absoluta no amor eterno”. OK, ela foi composta em um momento de bastante intimidade, o da separação do cantor e da sua então esposa Sandra Gadelha (mãe de Preta, Maria e o falecido Pedro). Contudo, pode servir também em um espectro mais abrangente, com uma leitura mais pro macro voltada ao nosso tão sofrido dia a dia do país, repleto de imoralidades e absurdos que serviram como morte para o nosso amor e a nossa fé.
Antes de iniciar “A Paz”, Gil prossegue com seus ensinamentos: “ela fala sobre a revitalização da vida que se contrapõe a tudo o que tenta destruí-la. “Já para anunciar “Estrela”, recorre a lembranças pessoais e confidencia ao público ter composto os versos inspirado por “uma menina” da cidade que “viu” nascer. No caso, Estrela, a filha mais nova de seu amigo Paulo Leminski. “Éramos jovens e andávamos de noite pelas ruas de Curitiba eu, Paulo e Helinho [Pimentel, fundador da mítica rádio Estação Primeira e hoje administrador do complexo que envolve os palcos e as áreas para entretenimento da Ópera de Arame e da Pedreira… Paulo Leminski!]. Eu vi esta menina nascer e então esta música tem uma semente curitibana”.
Só que Gil impacta ainda por aquilo que não diz, mas também pelo que está implícito em suas músicas. Na primeira parte do concerto, por exemplo, lançou mão de uma sequência de poderosas canções nordestinas. A intenção ali não era apenas saudar a rica cultura musical da região brasileira da qual veio e relembrar um pouco de gêneros que lhe exerceram fascínio e influência desde cedo, como o xote, o baião e o forró. Também era um recado sobre a fortaleza daquele povo um tanto sofrido mas que não só nunca se entrega como também faz valer a sua voz e a sua (força de) vontade. Que elege um presidente que o representa e diz um sonoro não a outro que o despreza. Como dizia Luiz Gonzaga, a ordem agora é “já ir” respeitando os oito baixos!
Ainda tendo como referência seu DNA nordestino, neste show ele voltou a lembrar os tempos de Tropicália e promover assombrosas fusões musicais com gêneros de além-fronteira. No trecho com “Esperando na Janela”, “respeita Januário”, “O Xote das Meninas” e “Eu Só Quero um Xodó” os clássicos surgem emendados por um mesmo padrão de percussão eletrônica. Mestrinho, sanfoneiro e backing de sua banda, abrilhanta os arranjos de reggae de “Não Chores Mais”/“No Woman No Cry” e “Esotérico” com um refinado lamento extraído de seu acordeon. “Realce” e “Palco”, quase meio século depois, ainda arrastam todo mundo para dançar fora de suas cadeiras com a batida disco mesclada à fusão entre rock, jazz e sintetizadores). Por falar em rock, na hora de relembrar com muito peso “Get Back” (devidamente colada à versão em português “De Leve”, assinada e gravada em disco ao vivo de 1977 por Gil e Rita Lee, durante provocativa turnê conjunta para “relançar” ambas as carreiras meses depois de ambos serem detidos por porte de drogas) mostrou o quanto os Beatles foram decisivos na sua carreira.
À parte final do repertório não foram reservados apenas alguns clássicos infalíveis como “Aquele Abraço” (alô, torcida do tricampeão Flamengo!), “Andar com Fé” e “Toda Menina Baiana”. Teve espaço também mais reflexões provocativas de Gil. “Nos Barracos da Cidade” discute sem papas na língua a hipocrisia e a estupidez dos políticos governantes de nosso país (e que em certos casos chegam a “confundir”, na maldade, moradores da favela com ladrões). “Punk da Periferia” é uma ode a tudo aquilo que, embora considerado nojento e fora dos padrões do centrão, confronta o status quo das elites de nossa sociedade. Não à toa, naquela sexta-feira, um monte de gente curitibana, de bem e bem vestida, reagiu com indignação à execução da mesma se levantando das cadeiras e se dirigindo para fora do teatro mesmo antes do fim do espetáculo.
Gil também retomou nesta parte o mode on sabedoria infinita do alto de seus 80 anos de vida. Repetiu várias vezes que devemos “andar com fé porque a fé não costuma falhar”. A poucas horas da eleição mais importante, versos como estes mostraram-se mais do que reconfortantes para quem nunca deixou de crer que o amanhã será um lindo dia da mais louca alegria.
Por fim deu ainda para incendiar mais um pouco a plateia terminados os acordes e batidas na derradeira canção do set list. O eterno doce bárbaro desejou a todos de Curitiba, terra da lava jato e com altíssima adesão bolsonarista, uma “explosiva eleição”. E saiu do palco fazendo com as mãos o sinal do L. Nem foi preciso ter bis do artista mais do que necessário para este nosso conturbado ano de 2022. O concerto todo, extenso, com 21 canções e muitos códigos cifrados em discursos cantados, falados e mostrados, deixou toda aquela noite, às vésperas de toda a tensão no ar da semana anterior ao domingo de votação do segundo turno da mais importante eleição presidencial da História do Brasil, nada mais do que histórica. E confortável.
Set list: “Tempo Rei”, “A Novidade”, “Não Chores Mais”/”No Woman No Cry”, “Vamos Fugir”, “Esperando na Janela”, “Respeita Januário”, “O Xote das Meninas”, “Eu Só Quero um Xodó”, “Drão”, “A Paz”, “Estrela”, “Esotérico”, “Palco”, “Aquele Abraço”, “Andar Com Fé”, “De Leve”/”Get Back”, “Nos Barracos da Cidade”, “Realce” “Punk da Periferia”, “Maracatu Atômico” e “Toda Menina Baiana”.
Personagem do Universo Marvel com mais de uma personalidade ganha série com sensacional interpretação de Oscar Isaac
Texto por Tais Zago
Foto: Disney+/Divulgação
O Cavaleiro da Lua apareceu pela primeira vez em HQs da Marvel em 1975, criado por Doug Moench e o artista Don Perlin. Na época, Marc Spector era o filho de um rabino e ex–marine americano que trabalhava como mercenário. Em um ataque que resulta na morte do arqueólogo Dr. Alraune na frente de sua filha e também arqueóloga Marlene, Marc é traído e gravemente ferido pelo seu companheiro Raoul Bushman. Abandonado para morrer no deserto, ele adentra a tumba do deus egípcio Khonshu, onde acaba morrendo. Khonshu resolve ressuscitá-lo com a promessa de Spector de passar a defender e vingar apenas os inocentes. Spector se torna assim “o punho de Khonshu”, servindo às vontades e aos interesses da divindade vestindo sua armadura lunar.
É a partir desse momento Marc assume a pecha de Moon Knight (seu nome na HQ original) e recebe uma armadura que dá a ele poderes e força extraordinários. Com o passar dos anos e de suas aparições nos comics, Marc foi assumindo outras personalidades (uma delas é o nerd Steven Grant) até ser oficialmente diagnosticado com transtorno dissociativo de identidade – o outrora chamado transtorno de múltiplas identidades. No universo Marvel, o Cavaleiro da Lua sempre foi um personagem secundário, aparecendo apenas eventualmente, algumas vezes como vilão e outras como mocinho. Essa contradição faz com que ele seja uma figura pouco conhecida, porém bastante interessante. Marc/Steven não sabe quem de fato é. Orbita entre múltiplas realidades (e localidades), assim como na dimensão dos deuses egípcios. A lua é seu símbolo e sua força. Assim como essa muda de fases, o cavaleiro muda de poderes e atitudes.
Com esse material em mãos, chegamos à versão da Disney + em mais uma empreitada do MCU. Quando achamos que o estoque de super (anti-)heróis se esgotou eis que tiram mais uma carta da manga – ou melhor, um underdog do arquivo de personagens. A primeira temporada de The Moon Knight (EUA, 2022) tem no total seis horas de duração. Pessoalmente, achei pouco. Fazia bastante tempo que um personagem não me empolgava tanto e arrancava boas risadas. Jeremy Slater (também da série The Umbrella Academy) foi escolhido como o showrunner e chamou para a direção dos episódios o egípcio Mohamed Diab e a dupla de cineastas de terror Justin Benson e Aaron Moorhead. Para o papel de Marc/Steven, foi chamado o ator Oscar Isaac, que entrega um cavaleiro impecável. Isaac parece claramente estar se divertindo muito com a dualidade do papel. Ele acerta em cheio o tom no peso e na violência do americano Marc e na leveza e no humor do inglês Steven. Um festival de sotaques de um grande ator para um papel complexo.
O primeiro capítulo já inicia nos jogando na centrífuga – ora Steven se encontra no trabalho, no souvenir shop de um museu, ora acorda todo ensanguentado no interior da Alemanha sendo perseguido por um grupo de seguidores de Arthur Harrow (Ethan Hawke). Nós nos sentimos tão perdidos quanto o personagem de Steven que, acreditando sofrer de sonambulismo, dorme acorrentado à sua cama; que marca encontros e não se lembra com quem; que recebe ligações de pessoas que não lembra conhecer e encontra coisas escondidas em seu apartamento que não lhe pertencem. Para alguns, a série pode tropeçar aqui no absoluto nonsense, mas para quem já conhece o trabalho de Jeremy Slater a certeza é que, em algum momento, (quase) tudo terá uma explicação plausível dentro da ficção.
Acompanhando o tema do personagem – a Lua – os cenários são sombrios, o tênue azul do luar é a luz quase constante, assim como a areia tem protagonismo. Visualmente pensamos em A Múmia ou os filmes de Indiana Jones. Para os fãs (aos quais pertenço), finalmente chegou a hora de juntar superpoderes, arqueologia, deuses e seres fantásticos da mitologia egípcia em uma única série. E o resultado é muito satisfatório. Mas o que seria de qualquer produção do MCU sem um(a) mocinho (a) como interesse romântico do herói? É aqui que entra a arqueóloga Layla (May Calamawy). Para salvar Steven e ser salva por Marc.
Dados todos esses elementos, não tem como dar errado, certo? Talvez não para todo mundo. Por vezes a narrativa se arrasta além do necessário: algumas cenas ficaram confusas e o Arthur de Ethan Hawke é bastante canastrão. Mas Oscar Isaac está sensacional e carrega a obra nas costas, fazendo valer o nosso tempo. O show é todo dele. Assim como a armadura do cavaleiro, Isaac modela a forma do personagem de acordo com a personalidade assumida. Marc? Steven? Mais alguém? Saberemos isso na segunda temporada…
Um final de semana com grandes shows mais organização e estrutura invejáveis ao sul da ilha da capital catarinense
Texto: Luciano Vitor
Fotos: Frederico Di Lullo
Nos últimos dois anos, todo o país ficou órfão de todos os tipos de eventos culturais possíveis. Por causa da pandemia da covid-19, shows, peças de teatro, saraus, cinemas e outros programas artísticos foram proibidos. Com a retomada gradual dos eventos por todo país, os concertos foram retornando ao cenário em Santa Catarina. Um dos mais aguardados, O Arvo Festival, após cinco edições, trouxe de volta um calendário de com 26 atrações reunidas entre os dias 15 e 16 de abril. Puderam apreciar grandes shows e encontros em uma estrutura invejável e enxuta em Florianópolis.
Antes de qualquer menção aos shows, algumas linhas são necessárias para descrever o local, limpeza, organização, presteza, tratamento humano e principalmente o respeito à natureza. O local, o Sítio das Águias, fica no bairro do Campeche, sul da ilha da capital catarinense. O bairro é conhecido não apenas pela extensa comunidade de músicos, surfistas e pessoas que buscam uma qualidade de vida melhor que nos bairros mais centrais de Florianópolis. Não à toa, Campeche é local das melhores praias e pistas de skate da cidade.
Com essas referências, o local mesclou respeito a natureza, organização e muito artesanato presente. Com uma área respeitável de estacionamento (um pouco salgado, mas terceirizado, nada módicos R$ 40), o acesso aos shows era bastante fácil, logo ao lado do estacionamento. Utilizando materiais recicláveis em sua estrutura, bituqueiras artesanais espalhadas por todo o local. Nenhum estande vendia latas ou garrafas de bebidas alcoólicas: eram chopes outros tipos de bebidas e todas em copos retornáveis, também com opção de compra do próprio copo.
A organização do festival era tanta, que até espectador que não tinha como adquirir comida dentro do local e levou sua própria marmita, teve sua condição avaliada pela produção e, em questão de minutos, teve um voucher disponibilizado para se alimentar. O público trans e especial teve ingressos gratuitos disponibilizados antes dos concertos através das redes sociais, transformando o evento em uma verdadeira democracia de acessibilidade e acolhimento. Poucas vezes em mais de vinte anos de cobertura cultural, vi engrenagens humanas funcionarem tão bem e tão rapidamente para deixarem tudo dentro dos conformes. Dito isso, vamos a um resumo do que foram os dois dias.
O que chama a atenção, não apenas no Arvo mas em outros eventos de médio a grande porte, é a conexão do público mais jovem com veteranos da música brasileira. Dois deles eu não consegui ver, infelizmente. Uma foi Dona Onete, a “diva do carimbó chamegado”, que aterrissou direto de Belém, com sua malemolência, carisma e talento. O outro, o Bixiga 70, uma verdadeira instituição, veio com uma série de elogiados trabalhos com sua mistura de afrobeat, música latina e brasileira. Tocou faixas de álbuns como Ocupai, Quebra Cabeça e o homônimo Bixiga 70, que estão entre os mais representativos da música instrumental e são alvo da cobiça dos colecionadores de vinis.
Misturando rap, pop e tecnobrega, Potyguara Bardo trouxe seu disco Simulacre, para os palcos catarinenses. A múltipla artista de Natal detonou uma mistura de ritmos tipicamente brasileiros, letras escrachadas e uma estrutura minimalista, com mais guitarrista e DJ. Com figurinos roxos e fluorescentes, o trio atraiu basicamente, todos que ainda chegavam no local por volta das 18h do primeiro dia. Com pegada, histórias e conversas, a cantora cativou o público. Mostrou carisma, intimidade e deu muitas risadas. É um nome para ficar de olho na nova safra da música brasileira. Me lembrou muito o escracho de uma das bandas mais controversas da década de 1990, o Textículos de Mary, de Recife.
O aumento de músicos no palco, principalmente pela presença da sanfona, já chamava a atenção logo depois. Exatamente às 19h, a paulistana Mariana Aydar, pisou no palco. Com um figurino verde-amarelo, dentro de um vestido tubo, a cantora conquistou de cara o público. Com um set list calcado em Veia Nordestina, disco de 2019, o show foi ganho nos primeiros minutos. Com triângulo nas mãos, a cantora dominou a turba, trazendo de pleno abril um verdadeiro São João. Mas qual o problema se o carnaval deste ano foi realizado nesse mesmo abril? O repertório é conhecido do público, porém (e sempre existe o porém) a cantora ao abraçar um repertório mais popular corre o risco de encontrar a vala comum do dial das FMs atuais. É ruim? Depende do público que Mariana quer atingir. É o nicho onde tão bem trafega Seu Jorge, onde o mesmo consegue manter-se entre o cult e o popular? Ou onde se misturam Luan Santana e Anitta nas FMs? O limite é ínfimo e Mariana Aydar, que além de cantora é produtora e compositora, sabe bem onde quer chegar.
Uma preparação que estressa quem não conhece um artista é o início do show que leva mais tempo do que a plateia deseja. Mas quando são vistas nove pessoas no palco entende-se o porquê da demora. Foi assim no concerto seguinte. Daí veio uma mistura de Carnavais passados, música cubana, música indie, sopros de metais e o que tinha mais pela frente: Novos Baianos, Clube da Esquina e uma profusão de sons e ritmos em uma ebulição louca. Daí você se dá conta do porquê do nome da banda, porque a loucura é tanta e porque o show é catártico. Esta é uma banda pronta, que traz das suas referências uma atualização para os novos anos 2020. Ao beberem em fontes que envolvem Azymuth, Caetano Veloso, Chico Buarque, jazz brasileiro, Marcos Valle, esse pessoal consegue transmutar uma sonoridade para o século 21, tornando-se outra banda e, ao mesmo tempo, soar como algo inteiramente novo.
Julio Sechin, do Rio de Janeiro, é diretor de vídeoclipes de várias bandas e artistas. Tanto envolvimento trouxe naturalmente Julio para a ribalta. Ele faz pop, rap e funk para não iniciados. E encantou desde o primeiro momento no palco, com muita simpatia já se apresentando no sábado. Malemolência carioca à toda prova. E uma rara oportunidade de ver uma vertente atual que já fizera muito sucesso na década de 1990.
Depois veio Jean Tassy, de Brasília. Utilizando as bases do hip hop old school, ele consegue com um belíssimo background, trazendo suas letras para a atualidade. O problema é que as batidas soam muito repetitivas. Mesmo as letras sendo bem escritas, com conteúdo, esbarram no lugar-comum. Também notei a falta que uma backing vocal feminina fez ao show do rapper. Isso faria uma enorme diferença…
Quando a Aláfia subiu ao palco, passando um pouco das 20h, as estruturas mudaram! O caldeirão musical envolto em três belíssimos trabalhos lançados colocou fogo no parquinho. A mistura de afrobeat, soul, jazz e hip hop, tudo com muita negritude, não apenas eleva a sonoridade da big band paulistana. Transmuta o som a outro nível. Não foi apenas um show: foi O SHOW. Uma porrada que chegava como uma avalanche de cores, ritmos e aquela funkeada de primeira! O set list se dividu em três partes, tendo deixado a cereja do bolo para o meio. Com alguns ensaios ainda em São Paulo, Di Melo adentrou ao palco, colocando todo mundo para dançar ao som de “Kilariô” e “A Vida Em Seus Métodos Diz Calma”. Findando a participação especial do pernambucano mais manezinho que a cidade conhece, o som da Aláfia continuou reverberando no sul da cidade, trazendo não apenas os caminhos abertos, axé e muita luz no palco. Enquanto isso, um pé torcido me tirava do jogo bem mais cedo do que eu queria…
Agora que venha o próximo Arvo, já prometido para o mês de outubro!