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Doutor Estranho no Multiverso da Loucura

Fantasia sombria dirigida por Sam Raimi alcança a proeza de ser uma das raras produções autorais do MCU

Texto por Andrizy Bento

Foto: Disney/Marvel/Divulgação

Certamente um dos personagens mais interessantes dos quadrinhos da Marvel, Doutor Estranho iniciou sua incursão cinematográfica em 2016, como protagonista de um longa eficiente, engenhoso e que, se não alcançava todo o seu potencial no quesito fantasia, pelo menos vislumbrava as instigantes e insanas possibilidades que o personagem poderia vir a explorar em aventuras futuras. Nele, Stephen Strange (Benedict Cumberbatch), um arrogante e milionário cirurgião, sofria um grave acidente de carro e rapidamente ia perdendo tudo o que considerava importante e essencial em sua vida: seu talento, sua profissão, seu dinheiro e seu amor. Recomeçava do zero, abrindo mão do ceticismo para explorar um caminho incerto e no qual jamais acreditaria existir antes de sofrer o acidente: o universo da magia.

Convertido em mago, Strange se reinventou – e não me refiro ao fato de se transformar em super-herói e lutar ao lado dos Vingadores. Reinventou-se como ser humano, conhecendo o valor do altruísmo e tendo ciência de que deveria estar disposto a correr riscos e enfrentar sacrifícios em busca de um bem maior. Tanto é que, em Vingadores: Guerra Infinita, ele é o responsável pela decisão que encerra o filme de maneira agridoce, mas que embasa todo o enredo do filme posterior, o megahit Vingadores: Ultimato.

E concluímos que Strange estava certo. Depois disso, continuando sua bem-sucedida carreira em outras mídias além das HQs, Estranho protagonizou um dos melhores, se não o melhor episódio da série animada What If…?, produção da Marvel Studios para o Disney+. O episódio serviu, dentre outras coisas, para atestar a sua posição em meio ao panteão de heróis que integra. Ele é, de longe, um dos personagens que mais possui conflitos internos, tanto com seu lado humano, quanto com o lado mago. Emblemático para uma companhia como a Marvel, que sempre explorou a dicotomia e os limites entre a humanidade e o super-heroísmo, entre a ciência e a magia.

Seis anos após estrear nas telonas, o Doutor Estranho finalmente ganha um segundo filme solo que não se dedica a ser apenas uma sequência do original ou uma aventura trivial de fim de semana. Mas, sim, um título que vai além da cartilha Marvel seguida por quase todas as outras produções solo do MCU, enveredando por gêneros que ainda não haviam sido trabalhados às obras da casa e apresentando easter eggs que não estão lá por puro fanservice, mas de modo a conectar de maneira orgânica e genuína os diversos elementos e narrativas espalhadas ao longo do universo estendido da Marvel – quecompreende não apenas os longas feitos para o cinema como também as produções televisivas. Isso sem contar as referências aos filmes realizados antes mesmo do início do MCU, levados às telas por outros estúdios e distribuídos por outras companhias, como a Sony e a Fox. Lógico que estou falando de um certo teioso, de uma galera de mutantes e de um grupo que se reúne no edifício Baxter…

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in the Multiverse of Madness, EUA, 2022 – Disney/Marvel) é uma fantasia sombria dirigida por Sam Raimi, o mesmo que marcou a vida de tantos marvetes com os filmes do Homem-Aranha produzidos pela Sony entre os anos de 2002 e 2007 e protagonizados por Tobey Maguire. Nesta trama, Strange acorda de um pesadelo que soa muito real e se prepara para um casamento. Em um incidente durante a cerimônia, descobre que a figura que permeia seu pesadelo existe em sua realidade.

America Chavez (Xochitl Gomez) é uma adolescente que possui a estranha habilidade de viajar por multiversos, acessando diferentes realidades por meio de portais. Contudo, o poder somente se manifesta quando America se vê em uma situação de risco iminente, como se o medo fosse o catalisador para o despertar de sua habilidade. Strange decide procurar a ajuda de alguém que entende de multiversos para auxiliar a garota, a reclusa Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen), que ainda não se curou completamente do luto após a perda de sua família. O que Strange nem poderia desconfiar é que a grande antagonista de seu pesadelo é a própria Wanda, que pretende roubar os poderes de America a fim de recuperar o que a sua realidade lhe roubou, acessando um universo em que ela vive feliz ao lado de seus filhos.

Como uma fã que aprecia os filmes do MCU e se diverte assistindo a eles no cinema (e ao mesmo tempo reclama e sente falta de um diretor que imprima seu estilo e assinatura nas produções), digo que o Estranho não podia estar em melhores mãos. Raimi faz um trabalho bem satisfatório, flerta com elementos de terror – lembrando que o cineasta tem uma vasta e excelente experiência com produções do gênero, coroadas com aquela deliciosa aura de filmes B – e compõe sequências de ação vertiginosas amparadas por um CGI respeitável e eficiente. O resultado é um filme tão deslumbrante quanto aterrorizante, que sabe dosar de maneira genuína humor, drama, ação e suspense. Óbvio que aqui e ali a gente consegue enxergar as impressões digitais de produtor Kevin Feige, presidente da Marvel Studios, mas não dá para remover a autoridade de um cineasta tão criativo e dono de suas narrativas como Raimi.

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura se destaca como um dos raros filmes autorais do Universo Cinematográfico da Marvel. Ok, talvez, a colocação seja um pouco exagerada. Entretanto, é, de fato, um sopro de alívio ver um filme da casa onde a assinatura do diretor fica tão evidente, distanciando completamente o longa daquilo que chamamos de “filme de produtor” e que é um termo tão comum quando se trata de Marvel Studios. Dá para curtir a história  sem ter assistido a todas as produções que os fãs, energicamente, se dispuseram a elencar em fóruns e redes sociais, alegando ser imperativo conferir todas elas antes de se aventurar pelo Multiverso da Loucura? Lógico que dá. O longa funciona independente disso. Claro que se você ao menos conhecer previamente alguns dos elementos abordados aqui, a sessão será mais divertida. E se você tiver, de fato, assistido às outras produções, a experiência se torna ainda mais rica e gratificante – pois é uma delícia pescar as referências quando elas fazem sentido no todo, não tendo sido incluídas no roteiro apenas para agradar aos fãs. Porém, não se preocupe. Há diálogos e cenas expositivas o suficiente que elucidam o que é, por exemplo, o Darkhold e quais são as motivações de Wanda Maximoff, aqui definitivamente uma Feiticeira Escarlate.

Em um clímax quase constante, contando com participações especialíssimas capazes de deixar os fãs do Universo Marvel agitados e mal se contendo na poltrona do cinema (mais a trilha sonora deliciosa de Danny Elfman), Doutor Estranho no Multiverso da Loucura ainda apresenta montagem assertiva, efeitos exuberantes e uma maquiagem digna de nota. Conta com momentos assustadores, mas ainda assim é indicado para todos os públicos. Eis o toque de gênio de Sam Raimi, que incorporou ao longa do Estranho toda a sua expertise em cinema de terror e suspense, além da experiência acumulada na direção de filmes de super-heróis de teor mais familiar e emblemáticos de uma geração.

Cenas bizarras dividem espaço na tela com arcos de redenção típicos de cinema de entretenimento. Sequências de ação pirotécnicas são inseridas em uma narrativa que foca especialmente na evolução dos personagens, por quem diretor e o roteirista, Michael Waldron, parecem nutrir um imenso carinho. Raimi, aqui, é o verdadeiro mago. Sem subestimar a inteligência do público, contando uma boa história, dispondo de toda a galeria de recursos que o gigante estúdio generosamente oferece, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é uma produção deliciosa que respeita os marvetes e os fãs de entretenimento cinematográfico de qualidade.

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