Movies

Mark Cousins

Cultuado crítico e documentarista britânico tem dois novos títulos sobre cinema exibidos no Brasil pelo festival É Tudo Verdade

A História do Cinema: Uma Nova Geração

Texto por Abonico Smith

Fotos: É Tudo Verdade/Divulgação

Chamar alguém de enciclopédia é algo que nas últimas décadas vem caindo bastante em desuso. Primeiro porque com o fato da internet ocupar um lugar central em nossa vida cotidiana, quase ninguém mais se preocupa em gastar HD cerebral guardando fatos e informações que podem ser facilmente acessadas em alguns cliques. E também porque, com o desenvolvimento da internet 2.0, as enciclopédias acabaram sendo absorvidas por sites de construção colaborativa e fazendo com que aquela coleção extensa de livros físicos de capa dura deixasse de habitar as prateleiras ao redor do planeta inteiro. E também porque as gerações mais novas, que nasceram e cresceram com mouses, tablets e telefones celulares na mão, nem devem mais saber direito a utilidade que um dia tudo isso já teve na vida de quem já foi apenas analógico – sobretudo nos anos de formação escolar.

Mark Cousins é uma enciclopédia ambulante. O crítico e documentarista norte-irlandês radicado na Escócia sabe muito sobre cinema e de tão apaixonado que é acaba estendendo isso às produções que assina. Volta e meia ele se lança em alguma empreitada que tenha como tema central a sétima arte. Seu trabalho mais famoso data de 2011. A História do Cinema: Uma Odisseia é um doc com 930 minutos, dividido em quinze episódios e exibido na íntegra em festivais como Toronto e Istambul, museus (MoMA, em Nova York) e canais de televisão (BBC 4, Turner Classic Movies). Analisando obras todas as décadas do século 20, de pioneiros como Louis Lumière e Georges Méliès à revolução digital, linguagens distintas como as implantadas pelo Russo Eisenstein e o norte-americano DW Griffith, o encanto tanto das histórias mudas quanto aquelas depois da implantação do som nas salas de projeção, Cousins é o guia de um esmiuçado passeio analítico que virou objeto de culto entre estudantes e pesquisadores de cinema, sendo até hoje celebrado em salas de aula. O cineasta Jean-Luc Godard celebrou este trabalho considerando-o “o ponto de partida de todo cinéfilo revisionista futuro”.

Passada uma década – e mais alguns outros longas e curtas envolvendo, claro, o cinema – Cousins volta não só com um mas com dois filmes que voltam a explorar todo o encantamento de sua então obra-prima. Ambos os documentários, finalizados durante a pandemia e lançados no exterior no ano passado, acabam de chegar ao Brasil, tendo sido selecionados para a programação do É Tudo Verdade, principal festival sul-americano dedicado ao gênero cinematográfico que neste ano conta com sessões em salas cariocas, paulistas e virtuais (para quem não tem disponibilidade de locomoção ou nem está em alguma destas cidades – todas as informações sobre o evento você encontra clicando aqui).

A História do Olhar

Na abertura do festival foi exibido A História do Cinema: Uma Nova Geração, uma “sequência” de Uma Odisseia, na qual Cousins gasta “apenas” 160 minutos (portanto, somente quase três horas) para lançar um novo e curioso olhar a respeito das obras que movimentaram o cinema mundial após a virada do século 21. A outra produção envolve também a sétima arte mas vai além das projeções. Nela os filmes são utilizados trechos filmes como elementos – assim como outras expressões artísticas, como a pintura e a performance – para tentar explicar, como diz o título, A História do Olhar, o nosso jeito de ver e perceber o mundo ao redor.

Em A História do Olhar, entretanto, o realizador acaba tomando parte como protagonista do roteiro. Toda a análise começa quando o espectador se depara com o próprio Cousins deitado em uma cama, preparando-se para sofrer uma intervenção cirúrgica para tratar de uma catarata que irá restaurar a sua visão. Ali, praticamente imóvel, sem poder expandir territorialmente sua hiperatividade, ele começa a refletir, partindo de sua própria situação, como podemos usufruir de toda a beleza e riqueza de detalhes do mundo visível. Por estarmos em uma época na qual a condição do sensível e predominantemente comandada pela visão, torna-se ainda mais fundamental o discorrer analítico de Cousins a respeito da experiência humana em todas as etapas do pensamento. Mark fala de descobertas, prazeres, dores. Cores e brilhos, contradições e complexidades. Vai da beleza escondida do borrão aparentemente assustador (o olho com a catarata) à luminosidade total (o olho pós-operação). Entre os filmes mais famosos que analisa estão Persona (Ingmar Bergman), A Infância de Ivan (Andrei Tarkowsky), Um Corpo que Cai (Alfred Hitchcock), O Mágico de OzCrepúsculo dos Deuses (Billy Wilder), Romeu + Julieta (Baz Luhrmann) e Grease: Nos Tempos da Brilhantina. Nos paralelismos, trata do narcisismo das selfies, a ebuliçãoo dos corpos adolescentes, Frida Kahlo entre México e EUA, os azuis de Van Gogh e Leonardo da Vinci, a encarada direta e fulminante de Marina Abramovic, a poesia épica de Homero, os dois tipos de luz da Idade Média (Lux, que vemos diariamente; Lumen, espiritual, que leva à dor ao êxtase), o olho de rá do Egito Antigo e a cúpula suntuosa da Igreja de Santa Sofia. No fim, assombrado pelo medo da cirurgia não ser bem-sucedida e pelo vazio planetário provocado pela pandemia de covid-19, Cousins se questiona: como contar a história do olhar quando não se pode sair e olhar as coisas ao redor?

Já em A História do Cinema: Uma Nova Geração, o documentarista divide o roteiro em introdução, duas grandes partes e uma pequena conclusão. Inicialmente, compara a experiência de assistir a um filme à sensação de estar mergulhado em um grande sonho. Na primeira “metade”, fala sobre como os autores do século 21 ampliaram a linguagem cinematográfica em temas como dança, comédia, corpos, terror e suspense, ritmos lentos, aspectos irreais e documentários. Na outra, tenta responder à pergunta “pelo que temos procurado?”, por meio de uma viagem que vai surrealismo à evolução tecnológica de equipamentos (câmera go pro, realidade virtual, 3D, celulares), passando pelo formato mockumentary e histórias que levam espectadores a se reconhecer em versões sombrias de si próprios ou procurar identidades que transcendem a existência humana. No total, passeia por observações e trechos de quase uma centena de filmes. Somados a muitos escondidos no rótulo de cult, há alguns títulos bem conhecidos do cinéfilo comum: CoringaHomem-Aranha no AranhaversoDeadpoolPantera NegraFrozenNósParasitaMad Max: Estrada Para a FúriaO IrlandêsPlaneta dos Macacos: A GuerraBlack Mirror: BandersnatchHoly MotorsBooksmart: Fora de SérieAs TrapaceirasUma Mulher ExtraordináriaO Filho de SaulBabadookMidsommarMoonlightGravidadeBaby Driver: Em Ritmo de Fuga e Beyoncé: Lemonade.

Mark Cousins provoca fascínio nos cinéfilos justamente por toda essa variedade de repertório. Seu jeito particular de fazer a narração, falando suave e pausadamente cada frase, muitas vezes reforçando a entonação de palavras-chave, ajuda a garantir a imediata atração dos espectadores. Entretanto, em Uma Nova Geração, corre sério risco de provocar um certo fastio justamente por toda essa overdose de informação espremida um tempo estendido além do normal de um longa-metragem. O que indica que daqui a uma ou duas décadas ele bem pode fazer um novo seriado para contar a história do cinema no século 21. Ou um novo jeito de se ver cinema, que pode ser contado pelo mesmo Cousins em breve: a de “picotar” um filme como se ele fosse composto por vários episódios em série prontinhos para serem degustados fora das salas de projeção, on demand, dando intervalos de horas e até mesmo dias.

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