Damien Chazelle retrata a passagem do cinema mudo libertino à Hollywood sonora e cheia de regras para tentar ocultar a liberalidade

Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Paramount/Divulgação
Margot Robbie, Brad Pitt e a atmosfera de elegância libertina dos anos 1920. O novo lançamento de Damien Chazelle, que chega somente ao quarto filme de uma carreira em plena evidência no palco do cinema mundial, traz consigo elementos prontos para o hype, mas teve semanas decepcionantes nas bilheterias norte-americanas. No Brasil, Babilônia (Babylon, EUA, 2022 – Paramount) entra em cartaz nesta quinta-feira e os esforços são grandes para não repetir os maus resultados do mercado estadunidense.
Contudo, má bilheteria e mau filme não são sinônimos. Com ou sem esforços de marketing, também, Babilônia atrai a atenção por seu bom elenco, interessante recorte histórico-narrativo e, claro, a ambição aparentemente imparável de seu diretor. Chazelle fez um salto do retraído drama Whiplash para o musical suntuoso La La Land em apenas dois anos e dois anos depois trouxe Ryan Gosling como Neil Armstrong em O Primeiro Homem. Babilônia é, além de seu filme mais caro, o que lhe tomou mais tempo de produção.
O que parece ter-lhe tomado tempo é a dificuldade de lidar com um projeto de tamanha magnitude. A partir dos olhos de Manuel (Diego Calva), um aspirante a diretor que trabalha nas festas de Hollywood, acompanhamos a ascensão e o declínio de três figuras – a novata atriz Nellie LaRoy (Robbie), o figurão Jack Conrad (Pitt) e o trompetista Sidney Palmer (Jovan Adepo). Seus percursos formam o conjunto de um retrato de época: Nellie ganha projeção com suas personagens sensuais nos filmes silenciosos pré-código, mas sofre com a captação de som por seu sotaque e voz esganiçada e perde espaço com o aumento da patrulha da moral.
Por outro lado, Jack Conrad era uma grande estrela do cinema mudo com grandes pretensões de inovação da arte, mas sua atuação para no tempo e passa a ser ridicularizada pelo público. É um ator apaixonado pela potência do cinema, que insiste em defendê-lo como uma grande arte mas não é capaz de acompanhar a evolução desse meio. Já Sidney vê no som a oportunidade que lhe faltava, já que seu trompete pode ser o protagonista das novas películas. No entanto, sua individualidade é ameaçada por um trato espúrio do estúdio no alto dos anos 1930, carregados por seu racismo impassível e embebido em crueldade.
As três narrativas distintas estão mergulhadas no modo de vida dos anos 1920, uma época muito mais libertina que nos é permitido lembrar. A nudez, a escatologia e a completa desinibição dos atores, atrizes, produtores e de todo o rol de figuras que orbitam a indústria se fazem presentes desde a primeira cena de Babilônia, uma luxuosa e descontrolada festa cuja atenção ao excessivo torna quase automática a comparação com O Lobo de Wall Street, que enfrentou problemas com esse retrato.
Em linhas gerais, portanto, a epopeia que Chazelle conta em sua primeira hora é o retrato de duas precisões históricas: I) que o cinema estadunidense dos anos 1920 era marcado por uma postura bastante desinibida, assim como a vida privada de suas estrelas; II) o cinema silencioso era uma arte produzida em campo, com grandes fazendas tornadas sets e ritmo histérico. Não à toa, o longa se inicia na virada para o cinema sonoro, ocasionada principalmente pelo sucesso estrondoso de O Cantor de Jazz, filme com um quê musical que sacramenta o futuro da sétima arte. O cinema sai dos efusivos sets ao ar livre para o silêncio obrigatório dos grandes galpões de Hollywood e, com a pressão social contra as “liberdades morais” de suas histórias, deixa de lado a verve libertina para seguir à risca a censura reacionária que culmina no Código Hays, cuja lista de proibições vai da nudez à escravidão de brancos e a relação sexual entre brancos e pretos.
No entanto, como bem se sabe, a repressão não gera o fim dos excessos. Seu resultado é o exato oposto, pois ao tornar reprovável a natureza da festança tal qual Chazelle retrata, a única mudança efetiva é o ocultamento desse comportamento. Cada vez mais jogado às sombras, qualquer abuso tem liberdade de tornar-se mais severo. Como nos mostra o arco final de Babilônia, com a perturbadora presença de Tobey Maguire como o mafioso James McKay ns submundo de Los Angeles.
A única figura que permeia todos estes contos hollywoodianos é Manny (Calva), por meio de quem o diretor e roteirista nos introduz o mundo que deseja construir e, principalmente, ilustra a paixão pelo cinema e a potência dessa arte. Tenho pensado comigo mesmo que o grande trunfo da arte ocorre quando nos sentimos para além de nós mesmos. Há algo de mais especial quando a sensação é ocasionada pelo cinema, afinal não importam quantos anos se passaram, quais línguas diferentes calhemos de falar ou até mesmo se conhecemos as atrizes e atores que assistimos. O que importa, seguindo o monólogo de Jean Smart, são os fantasmas e anjos que se juntam na tela e seguirão o fazendo até o fim do cinema. Até o fim da história, por que não?