Movies, Sports

Ferrari

Cinebiografia do criador da escuderia mais cultuada do automobilismo traz empolgantes cenas de corrida mas derrapa na parte dramática

Texto por Abonico Smith

Foto: Diamond Films/Divulgação

Mesmo que não seja assim tão fã de Fórmula 1, todo brasileiro sabe muito bem que o sobrenome Ferrari carrega há décadas o status de símbolo máximo de grife ligada ao automobilismo. Todo piloto quer dirigir uma. Todo milionário sonha em ter uma. Alguns jogadores de futebol que já passaram temporadas em campos europeus já dirigiram uma. Seu fundador e proprietário, Enzo Ferrari, declarou, inclusive, que enquanto outras escuderias participavam de corridas para vender automóveis ele fazia exatamente o contrário: virou empresário para continuar pisando fundo no acelerador. Mesmo que nos bastidores, por trás de tudo, comandando tudo com mão de ferro em boxes, oficinas e escritórios.

Por isso, a chegada de um longa-metragem como Ferrari (EUA/Reino Unido/Itália/China, 2023 – Diamond Films) aos cinemas pode causar bastante alvoroço em tanta gente que ama a velocidade dentro de algum bólido de motor possante e quatro rodas. A assinatura de Michael Mann, então, veterano diretor especializado personagens bastante obcecados por suas atividades, tornava-se um atrativo a mais.

Eis que, com o foco ligado sempre em um Adam Driver completamente transfigurado para se assemelhar ao protagonista, o filme se mostra uma obra dividida entre o drama e a ação. Neste último quesito, a mão de Mann – que havia três décadas tentava levar às telas esta adaptação de uma biografia publicada em 1991 – mostra-se perfeita. As muitas cenas de corrida, seja em circuitos fechados ou pelas ruas e estradas da região da Emilia-Romagna, são de encher os olhos, ainda mais na grande tela. Só que nem só disso vive um bom filme e justamente na outra parte que este Ferrari derrapa.

O arco dramático, que no roteiro acaba de sobressaindo e tendo mais destaque do que as provas em si, começa em 1957, alguns anos depois que o piloto Enzo Ferrari decidiu abandonar de vez o volante depois de ver dois grandes amigos perderem a vida em acidentes ocorridos em um mesmo dia de corrida. Contudo, em uma Itália ainda se recuperando economicamente e juntando os cacos provocados pela Segunda Guerra Mundial, o futuro da escuderia que leva o seu nome parece incerto. O agora entrepeneur busca espantar de vez a assombração da falência tentando levantar dinheiro por meio da família e de empréstimos bancários. Para poder decolar e se manter profissionalmente, entretanto, era necessário se obter vitórias, sobretudo na Mile Miglia, percurso de longa distância (mil milhas, com dizia o nome) que passava por várias cidades italianas que fora retomado naquele pós-guerra. Como Enzo tinha grandes adversários nas pistas sua obsessão por chegar em primeiro aumentava a cada ano, custasse o que custasse, inclusive a vida de vários pilotos da Ferrari.

Aliás, a vida pessoal do protagonista é bastante devassada nas telas. A constante luta contra a morte aparece do início ao fim do filme. Além da perda dos pilotos da escuderia – motivo pelo qual era constantemente atacado pela imprensa esportiva local – também havia o sentimento perene na família. Ainda na adolescência, em 1916, ele já perdera pai e irmão mais velho para um surto de gripe que se espalhara por todo o país. Contudo o abalo maior ficou por conta do falecimento em 1956 de Dino, o único filho com a esposa Laura e por isso seu sucessor, aos 24 anos de idade, vitimado por uma distrofia muscular. Aliás, o nascimento de Dino também havia sido um outro forte motivo para que Enzo fizesse a transição definitiva de piloto para empresário em 1932.

O casamento com Laura, que já não vinha bem desde o período da guerra, já havia virado um leite derramado. Tanto que Enzo mantinha vida dupla com outra mulher e criando um outro filho, mesmo não podendo ser reconhecido legalmente por ele por conta da então ainda inexistente lei do divórcio em território italiano. O que quase todo mundo já sabia veladamente nos bastidores Laura acaba descobrindo, dificultando ainda mais o entendimento entre os dois “sócios” da escuderia.

Aqui, portanto, reside o grande problema de Ferrari, que é a sua parte dramática. Adam Driver termina o filme como começou: quase escondido, não apenas pelo disfarce da caracterização e os quilos de maquiagem. Fala bem pouco em cena, muitas vezes resmungando e lacônico, com a cara fechada, pisando em seus trabalhadores e interlocutores. Pode-se até argumentar que esta seria de fato a personalidade rude do “comendador”, mas também acaba jogando contra a mise-en-scène do protagonista. Penélope Cruz, por sua vez, dá vida, viço e sangue a uma Laura ofendida e impulsiva, capaz de atirar à queima-roupa no marido em casa ou ser tão grossa quanto ele nas ligações da imprensa e de financiadores. Já Shailene Woodley (a sempre resignada Lina Lardi, a amante e mãe do filho bastardo) não diz muito a que veio em seu pouco tempo de tela.

Além do desnível das interpretações, Ferrari também “sai da pista” e “bate na mureta” ao cometer o grande erro de muitas produções hollywoodianas ambientadas na Europa continental e com personagens reais que, em seu cotidiano, falam em idioma natal. Este é mais um filme de italianos, de história bem italiana, de característica italiana falado em inglês! (Detalhe: Adam Driver também estava no elenco de Casa Gucci, que chafurdou em críticas e bilheteria por este motivo.) E o que faz ali o competente ator brasileiro Gabriel Leone, fazendo um piloto espanhol (Alfonso de Portago), conversando com o patrão italiano, em inglês?

Ao final da sessão fica aquela lembrança histórica do maior momento de narração de Cleber Machado na F1 – aliás, uma enorme polêmica protagonizada justamente pelos dois competidores da Ferrari na temporada de 2002. Na volta derradeira do GP da Áustria, Rubens Barrichello estava bem à frente do companheiro de escuderia, Michael Schumacher e iria cruzar a linha de chegada e receber a bandeirada da vitória. Contudo, sua equipe obrigou o brasileiro a desacelerar e ceder, nos metros finais, a frente para Schumacher, já que isso contabilizaria mais pontos para que o alemão pudesse vencer o campeonato de pilotos. Ferrari, o filme, faz ecoar na mente o futuro bordão com a empolgação sendo subitamente trocada pelo tom de decepção. Hoje não, hoje não… hoje sim!

Movies, Music

Priscilla

Cinebiografia assinada por Sofia Coppola mostra como, longe dos holofotes, o idolatrado Rei do Rock prendia a esposa em uma gaiola

Textos por Janaina Monteiro e Abonico Smith

Fotos: O2/Mubi/Divulgação

As lágrimas custam a cair dos belos olhos azuis de Priscilla Beaulieu. Aos 27 anos, em 1972, a jovem texana simetricamente perfeita está diante de um Elvis Presley milimetricamente sugado pela exaustão da fama e já em processo de deterioração. Ela, finalmente, consegue dizer “não”.

Cilla, como era carinhosamente chamada pelo eterno Rei do Rock, sai de cena antes de assistir à derrocada de um dos principais artistas de todos os tempos, ídolo de uma geração. Um astro de tamanha magnitude, cujo brilho, aos poucos, ia sendo ofuscado pelos excessos. 

“O casamento transforma muitas loucuras curtas em uma longa estupidez”, escreveu o alemão Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra, obra que inspirou o também alemão Richard Strauss a compor seu poema sinfônico de mesmo nome (Also Sprach Zarathustra). A música foi tema do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço e serviu de introdução para a turnê de Elvis nos anos 1970, em arranjo assinado e gravado pelo brasileiro Eumir Deodato. 

No semblante de Priscilla, interpretada gloriosamente por Cailee Spaeny no filme homônimo da diretora Sofia Coppola, o espectador acompanha a odisseia da ex-mulher do astro. É o desgaste de um relacionamento que começou em um terreno puro e cristalino e culminou em um árido deserto chamado ofuscamento e solidão. 

O que vemos em Priscilla (EUA, 2023 – O2/Mubi) é um blend de emoções: a triste decepção do não finalmente dito se une ao alívio de um sim. Um sim diferente daquele que simbolizava a autorização dos pais de Priscilla em consentir o relacionamento amoroso entre uma adolescente de 14 anos e um dos rapazes mais cobiçados do mundo, que na época tinha 24. 

Era um sim diferente daquele proclamado seis anos antes, quando Elvis pediu o amor da sua vida em casamento. Trata-se do sim à liberdade, do sim à busca pelo sua verdadeira identidade. Uma resposta que exigiu muita força e coragem para ser verbalizada.

Como num soneto de Vinícius de Moraes, o conto de fadas que havia começado em 1959, chegava ao fim. Mas, nesse caso, é Dolly Parton quem entrega a trilha sonora do desfecho de uma das histórias de amor mais icônicas do mundo, “I Will Always Love You”, canção composta por uma das mais representativas cantoras da country music e que, inclusive, Elvis tentou gravar mas não conseguiu. 

Nesse coming of age, Sofia Coppola acrescenta mais uma mulher forte e solitária à sua lista de protagonistas e se torna especialista em levar relacionamentos tóxicos às telas. Como no caso de Encontros e Desencontros, que, aliás, trata do próprio divórcio de Sofia com o diretor de cinema Spike Jonze. 

Coppola, com a montagem frenética e elipses temporais que já se tornaram sua marca registrada, consegue condensar esse romance supostamente improvável diante das inúmeras assimetrias da vida. Mas nem a diferença de idade (10 anos) e nem a diferença de altura (Priscilla tem 1,63; Elvis, 1,82) serviram de obstáculo para o casal. Priscilla estava no lugar certo, na hora certa.  

Inspirado na biografia Elvis e Eu, lançada em 1985 e assinada por Priscilla Presley e Sandra Harmon, o filme chega aos cinemas brasileiros no ano seguinte ao lançamento de Elvis, de Baz Luhrmann, em que todos os holofotes se voltavam ao grande ídolo pop do século 20 e sua relação turbulenta com o pai e o empresário salafrário. Contudo, agora, pela primeira vez, Elvis é o coadjuvante da história retratada a partir da versão de sua ex-mulher.

Coppola nos faz mergulhar de cabeça entre os anos de 1959 e 1973. Para isso, utiliza outra caraterística de sua cinematografia: uma trilha sonora impecável, que traz hits daquela época, alguns em versões mais recentes como “Baby I Love You”, de Ramones. As músicas que eram sucesso na voz de Elvis e não foram autorizadas para o filme definitivamente não fizeram falta.

De início, já somos fisgados pelo ar angelical da protagonista, que era fã de Elvis (afinal, quem não era?). Da fase idílica do relacionamento até a separação, imergimos no mundo de Priscilla, solitário e puro, que transparece na paleta de cores usada pelo diretor de fotografia Philippe Le Sourd (que trabalhara com a cineasta em O Estranho que Nós Amamos). 

Interpretado por Jacob Elordi (mais conhecido por aqui pelo trabalho no filme A Barraca do Beijo), o furacão Elvis é visto aqui em sua intimidade, com seus caprichos, manias e vícios. Com seu jeito sedutor de falar, suas pernas inquietas, seu gosto por decoração esdrúxula. Mas longe do spotlight e do frenesi ao redor, existia um drama particular: as dores de Priscilla ao se tornar a senhora Presley. 

Sofia permanece fiel ao início da biografia e nos introduz à protagonista ao som dos acordes oníricos de “Venus”, de Frankie Avalon, na fase em que ela está na Alemanha. No livro, Priscilla conta que, como seu pai era oficial do exército, as mudanças eram constantes em sua vida, o que dificultava manter laços de amizade. Portanto, quando ela é abordada por um amigo de Elvis, que a convida para ir à casa do cantor, o tédio de seus olhos se transforma em esperança.

No primeiro ato, acompanhamos o encontro de dois corações solitários. A adolescente tímida, que ainda não usava as maquiagens e roupas cheias de glamour, e um astro da música e do cinema, que havia recém perdido a mãe. Depois do primeiro encontro, a adolescente passa a viver nas nuvens e numa constante espera por alçar voo. Se uma garota já perde o chão por um simples mortal, imagina quando esse namorado se trata de Elvis Presley. 

Apesar da diferença de idade, Priscilla acreditava que Elvis havia encontrado nela uma confidente, alguém para conversar. Aos poucos, entretanto, o filme nos mostra como ela era moldada conforme a vontade do rei. Trata de como o rei a prendeu numa gaiola.

Quando é convidada a se mudar para Graceland, em Memphis, Priscilla passa por uma transformação aquém da sua vontade. É Elvis quem dita como ela deve se vestir (“listras não valorizam o seu corpo”), como se maquiar (devia usar o delineador mais marcado para valorizar os traços) e até a cor do cabelo. Elvis também lhe oferece pílulas para dormir (que são uma constante no filme!) e a introduz no mundo psicodélico do LSD. E assim segue a viagem pelos anos 1960, com olhos delineados de gatinho, sapatos de salto alto adornados com margaridas e laquê. Muito laquê.

Priscilla vira uma espécie de bibelô de Elvis. Uma boneca de porcelana intocável e munida de uma resiliência impressionante. Tanto é que seu relacionamento leva anos para ser consumado. Não por sua vontade, mas por capricho e prudência de Elvis. O romance permanece limitado a beijinhos e abraços, tanto é que muitas das cenas são rodadas com o casal na cama, como num namoro adolescente. Cristão devoto, Elvis pedia para que ela esperasse o momento certo. 

Enquanto o marido viajava para gravar seus filmes, Priscilla passava seus dias em Graceland acompanhando as mesmas revistas de fofoca que agora estampavam os supostos affairs dele. Numa certa altura do filme, a angústia chega a tomar conta. Será que ela vai suportar tudo isso sem se rebelar? Sem gritar? Sem se descabelar? 

Até que, afinal, chega o momento do confronto. E a resposta de Elvis é direta: quero uma mulher que seja capaz de entender e suportar essa situação. Nesse ponto, Cailee mostra porque foi indicada ao Globo de Ouro. Sua fisionomia expressa a dualidade de sentimentos: o olhar frustrado e amargurado diante dos rumores rapidamente se transforma numa postura de conformismo. Priscilla é a oficial e conseguiu cumprir o pacto das vistas grossas que tantos casais famosos acabam assumindo. 

Por outro lado, o roteiro de Sofia mostra um Elvis que também buscava transcender, seja com LSD ou com suas leituras sobre espiritualidade, como o livro Autobiografia de um Iogue, que ele queima depois na fogueira. Infelizmente, Elvis não teve um coach ou um empresário à altura.

E quando os dois finalmente se casam, Coppola opta pela elipse: Priscilla ressurge grávida de Lisa Marie, que, por sinal, não aprovou o roteiro da cinebiografia. À imprensa internacional, disse que pai fora retratado como um sujeito predador e manipulador. 

Nas cenas pós-créditos da vida real, Priscilla conhece um novo amor: o brasileiro Marco Antônio Garibaldi, de Curitiba, com quem teve um filho, o músico Navarone Garibaldi (Garcia), e de quem também se separou. Esta é a prova de que o mundo dá voltas. É a prova que nossas escolhas definem o nosso destino. (JM)

***

Priscilla (EUA, 2023 – O2/Mubi) é, como entrega seu título, sobre Priscilla Presley, por mais que Elvis apareça em cena como um belo coadjuvante da história (e, detalhe, quase nunca em ação em palcos e estúdios). Só que justamente por retratar a intimidade da esposa do astro e sua conturbada relação conjugal que se arrastou por mais de uma década do lado de dentro dos suntuosos portões de Graceland que é perfeitamente possível dar uma de Gay Talese (que em 1965 cunhou um marco do New Journalism fazendo uma extensa reportagem-perfil sobre Frank Sinatra apenas entrevistando mais de uma centena de pessoas que gravitavam ao redor dele e sem trocar uma palavra com o astro) e perceber, no decorrer das cenas dirigidas e roteirizadas por Sofia Coppola, uma “cinebiografia paralela” do Rei do Rock.

Ok, você pode até argumentar que Baz Luhrmann já havia feito isso ano passado, com louvor e inclusive recebendo prêmios e indicações ao Oscar. Só que o objetivo de seu filme era justamente revelar como determindas particularidades da vida pessoal do cantor transformaram-no na persona pública que conquistou o mundo. O longa de Sofia, que faz da ancoragem da perspectiva feminina a principal marca em toda a sua trajetória de cineasta, revela justamente o inverso: como o maior astro do rock’n’roll interferiu no cotidiano de quem mais tempo esteve ao seu lado sem ter  vínculos familiares.

Por meio de aparições do Elvis ídolo pode-se ver como tudo isso o tornou em opressor, agressor, vilão. Claro que a intenção de Coppola passa longe do maniqueísmo, por mais que a filha Lisa-Marie, nos meses que antecederam a precoce morte, tenha chiado publicamente com a diretora e roteirista a respeito do modo como seu pai fora retratado por ela. Também não há a intenção de embate com a extensa legião de fãs do artista. Pelo contrário: entendendo como Elvis interagia com o mundo dá para entender como isto prejudicou (e bastante) a intimidade com a companheira, dez anos mais nova. Vale a pena ressaltar também que o filme é adaptado das memórias escritas por Priscilla e que a própria é diretora executiva da empreitada. Portanto, a fidelidade aqui é alta e sem passar pano para a imagem construída pela indústria do entretenimento.

Aqui estão oito passagens de Priscilla que servem também como testemunho de quem viveu de perto um pouco da História do rock.

A invenção da adolescência

Foi tudo culpa do cinema de Hollywood e seu amálgama com o efervescente rhythm’n’blues que saiu dos guetos noturnos negros para dominar rádios e lojas de discos com o novo batismo de rock’n’roll. No decorrer da primeira metade dos anos 1950 os mais jovens começaram a se sentir representados nas grandes telas. Seus problemas, suas angústias, seus comportamentos muitas vezes erráticos diante de uma sociedade repressora e, sobretudo, o fato de querer gritar ao mundo que, mesmo deixando de usar calças curtas e serem tratados como crianças, eles eram bem diferente do mundo chato de seus pais, tios e avós. O rock fez a função de trilha sonora de toda essa rebeldia que, de fato, já andava sendo reproduzida havia alguns anos nas ruas dos grandes centros urbanos estadunidenses. Os filmes representaram a mola propulsora para amplificar essa nova voz. Elvis era um apaixonado pela sétima arte. Decorava inúmeras falas de longas que via repetidas vezes e seu sonho era atuar em Hollywood, tal qual seus principais ídolos, James Dean e Marlon Brando – inclusive passando um período estudando no Actors Studo, em Nova York. Por sua vez, Priscilla era uma garota que, entre muitos nomes do rock, curtia ouvir… Elvis Presley.

Saudades da mãe na Alemanha

Em razão da carreira do padrasto nas Forças Armadas dos EUA, Priscilla morou em várias cidades e também outros países durante a infância e começo da adolescência. Por isso, sua maior dificuldade era fazer amizades por onde passava. Durante a passagem por Wiesbaden, na Alemanha, acabou conhecendo Elvis Presley por intermédio de um convite de um amigo dele, que a vira numa lanchonete bastante frequentada por jovens na região. Ela tinha apenas 14 anos e ainda estava no colégio. Ele, aos 24, já um astro do rock consolidado e dera uma pausa na carreira musical para, durante 18 meses, prestar o serviço militar em base estadunidense fixada por lá. O cantor estava abalado com a perda precoce da mãe Gladys, com quem possuía uma forte ligação sentimental. Foi justamente na ingenuidade dos 14 anos de Priscilla que Elvis afirmava ter reconhecido a pureza que enxergava na mãe, que falecera aos 46 durante o período vivido em solo germânico. Foi de presente para mãe que Elvis comprou a mansão chamada Graceland, onde morou ao voltar aos EUA e ficou até a sua morte. Foi para Graceland que Elvis levou Priscilla em definitivo, em 1962, depois da garota terminar suas obrigações escolares na Alemanha. Só que, em nome da manutenção de sua imagem pública de sex symbol e a garantia da alta popularidade, o artista se negava a se expor em fotos e aparições junto com a namorada.

Máfia de Memphis

Graceland era enorme. Não servia apenas como residência de Elvis. Era também seu escritório de trabalho, com direito a duas secretárias para fazer tudo o que o astro, seu pai Vernon e seu empresário Coronel Tom Parker solicitavam. Mas também o local era repleto de seus amigos inseparáveis. Uma turma de machos que ganhou a singela alcunha de Máfia de Memphis. Andavam sempre a tiracolo, parasitando a boa vida que ele levava na condição de artista multimilionário, Rei do Rock e, a partir de então, ator que carregava multidão de fãs ao cinema para ver seus filmes. Elvis carregava o pessoal para cima e para baixo, para suas viagens a Los Angeles e aos sets de filmagem. Com eles fazia tudo o que homens jovens foram acostumados a fazer em uma sociedade machista e patriarcal: se divertir em conjunto, deixando as mulheres de lado e em muitos casos menosprezando-as a maltratando-as verbal, física e psicologicamente. Com Priscilla “trancada” em Graceland, muito de seu cotidiano era acompanhar as travessuras pós-adolescentes do menino Elvis por meio de notas e matérias publicadas pela imprensa.

Viva Las Vegas

Umas das muitas decepções de Priscilla com o comportamento de Elvis ocorreu durante as filmagens de Viva Las Vegas (de 1964, que no Brasil ganhou o título de Amor a Toda Velocidade). Ignorando total e completamente a existência dela Graceland, o astro se apaixonou pela colega de elenco Ann Margret e nem sequer se importou em tomar cuidados para não tornar a relação pública. Só que o caso não durou muito tempo. Foi árduo durante as filmagens, mas, depois que a imprensa descobriu e passou a noticiar o tórrido romance (chegou a se falar até sobre noivado que nunca existiu!), a atriz sueca confrontou o parceiro e Elvis deu para trás no período da divulgação do filme por causa de Priscilla. O astro, também, sequer foi à pré-estreia em Londres porque Tom Parker não tinha passaporte não poderia sair do território estadunidense. Em Viva Las Vegas, Presley interpretava um obcecado piloto de corridas que quer participar de uma disputa na cidade dos cassinos mas é obrigado a enfrentar o revés de perder o dinheiro que usaria para comprar um motor possante. Como solução, passa a trabalhar de garçom. É aí que ele conhece uma bela professora de natação (Margret). Contudo, a relação não engrena por dois motivos: ela se sente incomodada com os riscos à vida que a velocidade do automobilismo pode trazer e ainda fica dividida ao ser cortejada por um nobre italiano que, ao contrário do protagonista, alardeia que largaria a paixão por carros caso encontrasse um grande amor.

Mão de ferro

Tom Parker sempre foi o grande manda-chuva da carreira de Elvis. Muito pela ingenuidade e credulidade do jovem, que deixava todas as questões “burocráticas” na mão do empresário para ficar livre para se divertir e performar. Isto deixou Parker com poderes totais para negociar e decidir tudo o que envolvia os bastidores da marca Elvis Presley. Se com o tempo este fator foi deixando-o com ares de vilão, trouxe também benefícios à então estrela em ascensão meteórica: o velho coronel soube trabalhar como ninguém a imagem do galã em seus primeiros anos de carreira. O licenciamento de Elvis foi vinculado a diversos tipos de produtos do dia a dia e impulsionou ainda mais a conquista da horda de fãs, primeiro nos Estados Unidos e depois mundo afora.

Frustração com o cinema

Se para o jovem Elvis Presley o cinema era uma grande paixão, ao longo de sua pausa na carreira musical tornou-se também sua grande frustração. Longe de ser aclamado publicamente pela imprensa especializada como um grande ator, passou a culpar os papeis, personagens e roteiros escolhidos por Tom Parker pelo “fracasso” na investida. Os milhões de dólares feitos pela sucessão de longas-metragens não faziam seus olhos brilharem. Ele estava cada vez mais inclinado a retomar de vez o caminho da música.

Retorno aos palcos

De saco cheio com os filmes “vazios” que estrelava para Hollywood, Elvis começou a forçar a barra com Tom Parker para retornar ao seu “habitat natural”: os palcos. Depois de quase uma década de ausência, acertou seu retorno em um especial para a TV no fim de ano. Já estava mais do que atrasado para isso. Afinal, o posto de Rei do Rock já estava mais do que perdido para os Beatles, que havia quase meia década mandavam e desmandavam nas paradas, vendagens e histeria da juventude. As filmagens ocorreram em meados de 1968 e o que seria inicialmente um programa voltado ao Natal transformou-se em um furioso retorno de um Elvis, agora bem mais velho e seguro de si, vestindo preto e voltando a flertar com a música negra, sobretudo o furioso soul de um EUA embalado pela luta por direitos raciais, civis e femininos. No dia 3 de dezembro, a NBC levou ao ar em rede nacional o programa. A melhor parte foi a seção intimista, com o astro ladeado pelos músicos de sua banda e em um palquinho cercado pelo público.

Residência em Las Vegas

Tom Parker não podia sair do território americano: ele não tinha passaporte por ser imigrante ilegal nos EUA. Então, a saída foi armar uma residência triunfal de Elvis em Las Vegas, terra da gastança de dinheiro em hotéis luxuosos e cassinos. A ideia deu tão certo que, entre 1969 até a morte do cantor em 1977, foram realizados 636 concertos, sempre com plateia lotada e o recebimento de todos os convidados VIP no camarim logo após. Durante  cada período de shows, eram realizados dois deles por noite. Portanto, esta intensidade provocou um turbilhão movido a drogas na vida de Elvis, cada vez mais, deixando o cotidiano com Priscilla completamente de lado até o envolvimento dela com o professor de artes marciais e as consequentes separação e “fuga” de Graceland. (AS)

Movies

Wes Anderson

Netflix libera de uma só vez quatro curtas-metragens do icônico diretor e roteirista, todos inspirados em contos de Roald Dahl

A Incrível História de Henry Sugar

Texto por Tais Zago

Fotos: Netflix/Divulgação

Anderson ataca outra vez e agora em todos os fronts. Quatro curtas foram liberados ao mesmo tempo no canal de streaming Netflix, há alguns dias. O projeto, que supostamente chegara a 1 bilhão de dólares, é uma jogada ambiciosa da parceria entre a plataforma e o cineasta. Compõem a tetralogia de produção anglo-americana Veneno(Poison, 17 minutos), O Cisne (The Swan, 17 minutos), O Caçador de Ratos (The Ratcatcher, 17 minutos) e A Incrível História de Henry Sugar (The Wonderful Story of Henry Sugar, 39 minutos)

Nestes quatro curta-metragens inspirados na obra de Roald Dahl (que já inspirou Wes em outros projetos como O Fantástico Sr. Raposo, de 2009, e escreveu o livro que deu origem ao cultuado filme A Fantástica Fábrica de Chocolate), Anderson adapta e dirige com mão leve um roteiro teatral. Como vimos em Asteroid City, seu ultimo longa, lançado em agosto nos cinemas brasileiros (leia aqui a resenha do Mondo Bacana), Wes mergulhou fundo na dramaturgia e na representação teatral do seu próprio roteiro. Quebra constantemente a quarta parede e vai além dos limites até então conhecidos da metalinguagem. Temos uma história dentro de uma história e , às vezes, com outra história por trás. Uma matrioska technicolor, uma trama elaborada com palavras e cenários meticulosamente trabalhados, que trazem nos narradores, praticamente, uma leitura do roteiro acompanhando a ação.

O Caçador de Ratos

Wes é mundialmente famoso pelo seu estilo único de fazer cinema usando cenários minuciosos com um detalhismo que satisfaz até aos olhares mais exigentes. A riqueza dos detalhes, a simetria da fotografia, a perfeição da maquiagem e do figurino. Nunca vemos um único fio de cabelo (pelo menos não intencionalmente) fora do lugar. 

Agora Anderson traz para as telas e encena com atores histórias que funcionariam tanto no palco quanto em forma de stop-motion. Nenhum artifício de representação estética é deixado de lado – animação, CGIs, cenários elaborados feitos manualmente, filtros vintage e tons pastel. A beleza esmaecida da idiossincrasia de seus personagens se repete, mas nunca cansa o olhar. O comportamento extra-humano, robótico, típico de nerds, é o centro e o tom das interpretações no hiperdescritivo texto elaborado pelo diretor-roteirista. O comportamento pitoresco e fora do lugar-comum de seus personagens é perfeitamente alinhado a esses textos e aos figurinos. O homem comum em situações aparentemente mundanas abre a porta para o fantástico e o lúdico.

Nos quatro contos vemos personagens aparentemente comuns se envolvendo em situações pouco convencionais com desfechos fantásticos. A digital de Anderson está em cada olhar, na postura corporal dos atores, mas descrições e nas expressões faciais. Ao fim de cada um dos curtas, o cineasta presta uma homenagem a Roald Dahl em um pequeno parágrafo contando brevemente o contexto da criação de cada um dos contos do autor.

Veneno

O elenco não poderia ser mais estelar. Tem Ralph Fiennes (que entre outros papéis interpreta o próprio Dahl em todos os curtas), Benedict Cumberbatch, Rupert Friend, Dev Patel, Ben Kingsley e Richard Ayoade. Os atores se revezam em diferentes papéis nos quatro curtas. Todos executados primorosa e intensamente, em especial Cumberbatch e Kinsgley em Veneno e Henry Sugar.

Em seu estilo único e inconfundível, Wes Anderson cumpre de novo a tarefa de nos apresentar contos (não tão) modernos, sobre personalidades triviais que realizam feitos fantásticos. Existe a possibilidade de uma análise profunda, assim como a leveza de um humor quase inocente, o que faz dos filmes dele um deleite para todas as idades – um feito raro nos dias atuais. A tetralogia de curtas é essencial para os fãs e também uma agradável descoberta para os novatos que recém adentraram o mundo maravilhoso de Anderson.

O Cisne

Movies

Nosso Amigo Extraordinário

Misteriosa criatura que literalmente cai do céu transforma o dia a dia de um idoso rabugento em tocante drama de premissa sci-fi

Texto: Abonico Smith

Foto: Synapse/Divulgação

Na língua inglesa, o termo stranger designa tanto “estranha/o”ou “estrangeira/o”. Pode ser algo ou alguém que chega de outro lugar ou mesmo da própria região mas que não seja codificável de alguma forma para a gente. E é justamente esta ambiguidade de significados que faz esta palavra ser a grande norteadora de um filme como Nosso Amigo Extraordinário (Jules, EUA, 2023 – Synapse), que estreou nesta quinta-feira nos cinemas brasileiros.

Primeiro conhecemos Milton Robinson (Ben Kingsley), que representa o estranho. Aos 78 anos, ele vive sozinho em uma pequena cidade do oeste do estado da Pensilvânia. Viúvo, ele não fala com o filho por causa de divergências parentais do passado. A filha Denise, veterinária, é o seu único elo familiar, embora as conversas sejam poucas, praticamente por telefone e à base de algumas turras. A idade avançada ainda dá indícios de que desenvolve sinais de Alzheimer, como uma constante apresentação de repetições e esquecimentos. Sua vida consiste basicamente em ficar em casa assistindo a alguns programas de televisão e se reunir periodicamente com outros moradores da região em uma assembleia pública para sugestão de ideias que possam vir a causar algum tipo de benfeitoria para o município. Contudo, ninguém parece levá-lo muito a sério, sobretudo quando abre a boca para dizer alguma coisa.

O cotidiano de Milton começa a ganhar um novo sentido quando em uma noite, de uma hora para a outra, desaba um OVNI no quintal de sua casa e uma criatura alienígena se vê presa e perdida na Terra, sem poder fazer muito para voltar logo para casa. De aparência humanoide, cor cinzenta e temperamento pacífico e amigável, ela não emite qualquer som. Apenas se comunica com Robinson por meio de olhares expressivos e poucas movimentações corporais. Também não existe nela indicação de gênero sexual. Por isso, o batismo de Jules – dado por uma amiga de Milton que acaba descobrindo a/o “hóspede secreto” – lhe cai bem. Afinal, este nome de origem francesa é neutro, serve tanto para o masculino quanto o feminino.

Jules comanda uma revolução na vida do aposentado. Aos poucos, sua rabugice, em muito provocada pelo sentimento de solidão, transforma-se em amizade. Quem também experimenta a mesma sensação são duas amigas de mesma faixa etária (porém de pensamentos, progressista e conservador, completamente em oposição uma da outra).Elas não só descobrem o grande segredo do protagonista como também passam a dividir confidências de vida e nutrir amor pela criatura que literalmente caiu do céu. O ser alienígena passa a atuar como uma espécie de psiquiatra: dá ouvidos para as confissões e lembranças dos terráqueos e, assim, faz com que eles se sintam melhor ao passar a limpo tudo o que sentem com as pessoas e as coisas ao redor deles. Tudo porque agora já possuem uma companhia para conversar e que lhes dê a devida atenção.

Mais conhecido em Hollywood por outra função nos bastidores de Hollywood, a de produtor (no seu currículo estão longas como Pequena Miss Sunshine, Uma Vida Iluminada e o recente Um Lindo Dia na Vizinhança), o diretor Marc Turtletaub esbarra na tangente da ficção científica para conceber um bom drama sobre o comportamento humano. O roteiro dá umas capengadas, ainda mais na fase em que o governo americano, que procura esconder dos cidadãos a existência do disco-voador visto no céu da cidade, manda os policias locais investigarem (e depois invadirem) a casa de Milton. A trilha sonora assinada pelo alemão Volker Bertelmann, vencedor do último oscar da categoria por Nada de Novo no Front, também exagera nas pontuações do stacatto em demasia para demonstrar toda a tensão vivia pelos quatro personagens principais do ato final.

Uma coisa, porém, é inegável: a grande atuação de Jade Quon como Jules. Debaixo de uma caprichada maquiagem de rosto e corpo (que levava horas e horas para acabar e precisou ser feita trinta vezes no total durante as filmagens), a atriz, de traços e ascendência asiática, um metro e meio de altura e que também é mais conhecida em Hollywood por outra função, a de dublê, se mostra soberba nos olhares e nos gestos econômicos, sutis. Somando-se à experiência e ao talento de Kingsley, provoca uma bela química na tela e mostra que nem sempre o uso de CGI é tão necessário assim para um filme de premissa sci-fi.

Nosso Amigo Extraordinário é obra pequena no orçamento e nas pretensões, mas grande no resultado e nas emoções despertadas em quem a assiste. Pena que o título em português soe tão deslocado (e óbvio demais) ao perder a ambiguidade e o mistério do nome original. Certas vezes, para o bem desta obra, torna-se recomendável manter os trunfos de um idioma estrangeiro e achar estranho que o público brasileiro possa vir a entender.

Series, TV

The Idol

Nova série do criador de Euphoria se inspira levemente em Britney Spears para contar uma nova história de abuso nos bastidores do showbiz

Texto por Taís Zago

Foto: HBO Max/DIvulgação

Para quem estava à espera da mais nova, polarizante e hipersexualizada série da gigante HBOMax, The Idol (EUA, 2023) é um prato cheio. Aliás, como dizem os americanos: “ela morde um pedaço maior do que é capaz de mastigar”.

O diretor e criador Sam Levinson atingiu o olimpo do stream e caiu nas graças da diretoria da HBO ao nos presentear com Euphoria (iniciada em 2019), um grande e incontestável sucesso que trouxe várias figuras novas e talentosas da jovem Hollywood como Zendaya, Hunter Schafer, Barbie Ferreira ou Sydney Sweeney. Euphoria virou instantaneamente uma febre mundial ao esfregar em nossas caras o lado sombrio, caótico, depressivo e borderline que também faz parte da geração Z. Levinson, obviamente, não gosta de uma digestão fácil: ele nos confronta com cenas, diálogos e situações que ficam conosco mesmo após o término dos episódios.

The Idol já havia preenchido há tempos as páginas dos folhetins de fofoca. sua produção não foi suave. Após ter sido quase que totalmente filmado pela diretora Amy Seimetz (que fez episódios de AtlantaThe Killing e Stranger Things), tudo foi jogado no lixo por desagradar Levinson, que a partir dali tomou para si a direção em colaboração com o músico e ator The Weeknd (Abel Tesfaye). Para eles, a versão da saga de uma pop queen estava centrada demais no personagem principal de Jocelyn (Joss), interpretada por Lily-Rose Depp, e deveria envolver mais o personagem Tedros, feito por Abel Tesfaye. Nesse processo, muito do material empoderado feminista que Amy havia incluído em sua versão foi eliminado. Levinson e Tesfaye preferiram colocar o foco no lado mais misógino, sombrio e abusador da indústria fonográfica norte-americana.

Então, todos os limites do tolerável foram ultrapassados, The Idol é uma grande festa de abusos físicos, psicológicos e emocionais. Isso não agradou a grande parte da crítica internacional. A série acabou virando o enfant terrrible dos lançamentos de 2023 feitos pelo canal. Ainda antes de sua estreia, rumores de comportamentos abusivos nos sets de filmagem também começaram a circular, o que tornaria a experiência ainda mais meta para todos os envolvidos.

Em resumo, The Idol trata da ascensão/queda/ascensão de um ídolo pop, algo levemente inspirado em Britney Spears e seus dramas pessoais – vemos os abusos de familiares, amigos, produtores e parceiros de carreira de Joss. A cantora atravessa um calvário e luta diariamente uma guerra em busca de manter status e fama. Joss não estabelece limites. Um cenário que a torna presa fácil de narcisistas interessados em se banhar em sua fama. É neste contexto que surge Tedros, um dono de casa noturna com um rabo-de-cavalo e layout de cafetão que construiu ao seu redor uma espécie de seita de pessoas talentosas e criativas, as quais ele “estimula” com o intuito de potencializar a força criativa dos artistas. Os métodos de Tedros são criminosos. Com ele tudo é permitido: estupro, abuso verbal, violência, tortura.

Muitas cenas são extremamente difíceis de assistir, a ponto de nos perguntarmos o quanto o sadismo pessoal de Levinson e a ambição de Tesfaye não estariam ali representadas de forma real. Nudez e cenas explicitas pipocam o tempo todo na tela, assim como o abuso de drogas e absoluta falta de caráter de todos seus personagens. Quem está ao redor de Joss só pensa em ascensão ou vingança. Quem está em torno de Tedros procura, em vão, um reconhecimento paternal que lhes foi negado. As relações de codependência são muito dolorosas e provavelmente potentes gatilhos para quem já sofreu abuso de alguma forma – e isso, infelizmente, inclui uma boa parte da audiência. Quando pensávamos que o limite do violence porn em produções já havia chegado ao seu ápice, Sam Levinson aparece para nos abrir o alçapão escuro no fundo do poço.

A questão que resta a avaliar são se seria isso necessário. Qual o valor artístico de forçar audiências constantemente além seus limites de tolerância? Para mim, as respostas se espelham no quanto o ser humano sente prazer, mesmo que não assuma, em se colocar na posição de voyeur de tragédias que não o atingem pessoalmente. Como alguém que não consegue deixar de olhar para o resultado de um acidente de carro violento mesmo que aquilo lhe traumatize. Pelo mesmo motivo que muitos de nós encontram diversão em filmes de horror. Uma dissociação da realidade momentânea mergulhando na ficção. Um desejo inconsciente de ver celebridades serem punidas pela atenção e dinheiro que recebem. Principalmente quando se trata de uma mulher que ousa se sentir livre e que vive sua sexualidade de forma irrestrita.

The Idol não é uma obra sobre o brilho. É sobre trevas, doença mental, seres destruídos por suas próprias realidades que buscam em um pseudoguru uma espécie de salvação de si mesmos. Talvez nos machuque exatamente por não maquiar feiúras. Lily-Rose teceu inúmeros elogios a Levinson, afirmou que ele foi o melhor diretor com quem trabalhou até agora, indo contra o tsunami de críticas e acusações direcionadas à série. A filha de Johnny Depp e Vanessa Paradis é incrivelmente talentosa e certamente tem pela frente uma carreira espetacular como atriz. Sem dúvida alguma, apesar da insistência de The Weeknd de puxar, sempre que possível, os holofotes para si, Lily é uma força da natureza em ascensão. Ela carrega essa série nas costas em um papel extenuante e difícil. Já Tesfaye, por sua vez, é o festejado do momento no crossover entre ator e músico, só que não entrega o que promete. The Weeknd mirou em Childish Gambino e errou feio. Não chega nem aos pés, pelo menos ainda, da genialidade de Donald Glover e sua obra-prima Atlanta.