Série provoca riso e choro com protagonistas conflituosos que só pensam em um dar ao outro um “troco” cada vez mais mirabolante
Texto por Tais Zago
Foto: Netflix/Divulgação
Até onde um pequeno desentendimento no trânsito pode chegar quando as duas pessoas envolvidas estão profundamente infelizes e insatisfeitas? Essa é a questão central de Treta (Beef, EUA – Netflix). Não, apesar do nome original, a série – iniciada agora em 2023 – não tem nada a ver com culinária ou alguma paixão carnívora. Nos Estados Unidos, a palavra para a carne bovina também serve como gíria para um desentendimento, um ressentimento ou, mais precisamente, uma “treta” entre pessoas. E esse “bife”, aqui, não é para amadores.
Lee Sung Jin é o criador e o roteirista dessa tragicomédia entre dois personagens completamente diferentes. Amy (Ali Wong) é uma bem sucedida empreendedora. Ela tem dinheiro, um marido considerado “perfeito”, uma filha e todo o luxo californiano na classe artística aos seus pés. Já Danny (Steven Yeun) é um empreiteiro endividado e fracassado, lutando para sobreviver e sustentar o irmão mais novo, enquanto sonha em comprar uma casa para seus pais. Em um cenário comum, os dois nunca coexistiriam. Apesar de ambos terem origem asiática, nada mais parece conectá-los. Até que um desentendimento no estacionamento de um shopping center – Amy buzina incessantemente enquanto Danny se recusa a sair da vaga – culmina em uma absurda perseguição pelas ruas de Los Angeles, quando ambos infringem diversas leis de trânsito e colocam pessoas em risco. Logo o acontecido cai nas redes sociais e assim se inicia uma procura dos dois por “investigadores amadores” de bairro da localidade de Calabasas.
A comediante e stand up Ali Wong nos entrega uma Amy profundamente frustrada e em conflito com suas verdadeiras vontades e a realidade da vida que ela construiu para si mesma. Se tudo é tão perfeito, por que ela ainda se sente infeliz? Esta é a questão que já nos acompanha a partir do primeiro episódio e continua até o último. Já Steven Yeun, mais conhecido do grande público por sua atuação como o Glenn de The Walking Dead, interpreta um Danny repleto de medos e insatisfações, apesar da sempre aparente autoconfiança, ele é castigado pelos seus sentimentos de fracasso e uma depressão que esconde de todos. Em cima da base criada pelos dois, cada episódio se torna uma montanha-russa de paybacks, onde cada decepção diária dos personagens consigo mesmos os leva a montar planos cada vez mais maquiavélicos e mirabolantes um contra o outro. Na vida de Amy e Danny, o foco principal se torna o beef, a treta, a qual nenhum deles parece realmente querer resolver ou perdoar.
Apesar da sinopse nos levar a crer que Treta seria mais uma comédia de slapsticks e vinganças malsucedidas, Lee Sung Jin consegue incluir uma miríade de conflitos internos, traumas e experiências que enriquecem seus personagens de tal forma, que, lá pelo meio, já conseguimos nos compadecer com a imagem horrível, mas real e crua, que Amy e Danny tem deles mesmos. É a queda da máscara construída com muito esforço. Os sonhos despedaçados deixando apenas o desespero e o ódio como substitutos da tristeza. A série possui diálogos e situações hilárias, daquelas de rirmos até chorar. Mas também nos arrasta a um abismo onde choramos sem rir. O toque reflexivo chega até a nos lembrar um pouco as divagações filosóficas do vitorioso do último Oscar, Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo. Uma tendência que parece permear muitas das obras da produtora indie A24, assim como uma forte queda para representações de um psicodelismo surrealista.
Será que não existe um pouquinho de Danny e Amy dentro de todos nós? Eu acho que sim. Ao menos quando invariavelmente descontamos nossas frustrações em discussões acaloradas, porém absurdas e sem utilidade prática, em redes sociais ou em situações mundanas do dia a dia. Nesse quesito, Treta vai além das telas e nos traz questionamentos válidos que podem nos conduzir a uma jornada de autoconhecimento.
Oito motivos para lembrar-se sempre da cantora como uma das maiores divas de todos os tempos do olimpo da música pop
Tina Turner em sessão de fotos para o disco Private Dancer
Texto por Abonico Smith
Fotos: Reprodução
Anna Mae Bullock teve seu falecimento anunciado no último dia 24 de maio. Ela morreu em casa, aos 83 anos, na cidade suíça de Küsnacht, próxima a Zurique, onde vivia havia três décadas. A cauda da morte não foi revelada, mas sabe-se que nos últimos anos ela vinha lutando contra algumas doenças, além de ter perdido dos filhos em um curto espaço de tempo.
Sob a alcunha de Tina Turner, tornou-se figura de suma importância na música pop dos anos 1960 para cá. Na juventude, fez história ao ser a linha de frente da dupla formada com o marido, o produtor e multiinstrumentista Ike Turner . O relacionamento, sempre movido a drogas, machismo, abusos e violência física, ruiu de vez em 1976. Com o divórcio veio a carreira solo ea famosa tríade “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. Com mais de 40 anos, já em meados dos 1980s, transformou-se em sex symbol dos palcos, sempre chamando a atenção pelos vestidos curtos mostrando as pernas torneadas e favorecendo os movimentos frenéticos das coreografias que sempre foram parte integrante das performances desde o início da trajetória profissional). Também viu sua carreira ser elevada ao status de rockstar mundial. Com a ajuda da MTV e dos videoclipes, passou a vender milhões de discos, tornar-se atriz bissexta cultuada em Hollywood e carregar multidões para ver os seus concertos em grandes arenas. Em 1988, entrou para o livro Guinness dos recordes ao ter um público pagante de quase 200 mil pessoas no seu primeiro show em solo brasileiro, realizado no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro.
Se Anna Mae desencarnou desta dimensão, seu legado deixado como Tina Turner continuará sendo eterna. Por isso, o Mondo Bacana preparou aqui oito motivos para se lembrar sempre da cantora.
Tina Turner cantando no Ed Sullivan Show ainda na dupla com Ike Turner
Furacão nos palcos
Descoberta ainda adolescente pelo produtor Ike Turner – que logo viria a se tornar seu marido – tornou-se estrela solitária em tempos de auge dos girl groups. Ao vivo, à frete da banda comandada por Ike, sempre trazia seu grupo de backings para lhe ajudar a encorpar os vocais e as coreografias do palco. E colocava fogo sempre em todos os palcos nos quais se apresentava, rodopiando feito um furacão, equilibrando-se no salto e soltando o vozeirão em canções que traçavam um diálogo entre o wall of sound de Phil Spector e a energia crua do rock’n’roll. Portanto, se hoje você tem dezenas de divas pop cantando e dançando absolutas em cena, coloque isso na conta de Tina Turner.
Relacionamento abusivo
Ao lado de Ike, Tina conheceu o paraíso em sua trajetória profissional, sobretudo varrendo o mainstream do showbiz norte-americano entre os anos de 1966 e 1975, vendendo discos e discos e arrasando nos concertos. Só que a década áurea também não trouxe apenas sorrisos e boas lembranças. Pelo contrário. Aquela Tina se jogava de cabeça para seu público passava muito sofrimento nos bastidores. As atitudes de Ike, sempre movidas ao abuso de drogas, passaram a se tornar gradualmente cada vez mais insanas frente a Tina. O relacionamento abusivo incluía muita, muita, muita violência física e emocional. No dia do casamento, em 1962, logo após a cerimônia, Ike o obrigou a entrar em um bordel e assistir a um show de sexo explícito. A escalada foi aumentando até que em 1976, depois de uma viagem de carro durante uma turnê, Tina saiu correndo estrada afora só com a roupa do corpo para mudar de vez seu destino e virar, tanto na carreira artística quanto no estado civil, uma estrela ainda maior do que era sob o covarde cabresto do companheiro troglodita.
Tina Turner no filme Tommy (1975)
“The Acid Queen”
Em 1975, o diretor e roteirista Ken Russell levou às telonas uma impactante versão da ópera-rock Tommy, lançada seis anos antes em disco pelo Who. O protagonista era, inclusive, interpretado pelo vocalista do grupo britânico, Roger Daltrey. Outras presenças marcantes neste musical são Elton John (como o mágico do pinball em antando “Pinball Wizard”), Eric Clapton (como o pregador que recupera o antigo blues “Eyesight To The Blind”) e Tina Turner (como o “barato das drogas químicas” em “The Acid Queen”). A interpretação que Tina imprimiu à faixa foi tão poderosa que logo a gravadora embarcou na veia rock’nróll da cantora e bancou um álbum solo dela (ainda que estivesse presa ao casamento e à parceira com Ike naquele ano), também batizado como The Acid Queen. No lado A, Turner arrasa cantando clássicos dos Rolling Stones (“Under My Thumb”, “Let’s Spend The Night Together”), Who (“I Can See For Miles”, a faixa-título) e Led Zeppelin (“Whole Lotta Love”). No outro lado do vinil, quatro composições de Ike, sendo “Baby Get It On” gravada em dueto com ele. Foi o grande rito de passagem de sua trajetória pessoal e profissional, que a fez ficar livre de vez do encosto que passou a tomar conta de sua vida.
Rasteira no etarismo
Tina Turner tornou-se popstar de números e recordes mundiais já depois da virada dos anos 1980. De quebra, transformou-se em sex symbol do rock, sempre arrebatando corações com seus looks de pernas de fora, saltos e vestidos curtos. Este período áureo da carreira solo coincidiu com o apogeu da Music Television, que no decorrer dos anos 1980 alastrou-se para o planeta todo com suas filiais inundando de videoclipe as televisões de jovens e adolescentes espalhados pelos quatro cantos. Era o formato audiovisual dando todas as cartas na indústria fonográfica, pautando todas as rádios, alavancando vendagens estratosféricas e dando início ao que passamos a entender por grandes turnês mundiais. Tina Turner conseguir tudo isso – vale bem lembrar – já tendo passado dos 40 anos e em um mundo onde machismo e etarismo ainda rolavam soltinhos na sociedade. Portanto, ela dava um banho de talento, beleza, sensualidade, força, liderança e perseverança sendo uma mulher em uma faixa etária majoriatariamente descreditada pelo então ainda impiedoso patriarcado.
Fase de ouro
Quinto álbum solo de Tina, Private Dancer chegou às lojas no final de maio de 1984 revelando uma artista pronta para ser catapultada ao megaestrelato. Sua nova gravadora bancou vários produtores e compositores de sucesso para as nove faixas, que formavam uma mistura eletrizante de baladas e canções dançantes, além do flerte com elementos do rock, do pop, do r&b e do jazz. O resultado foi a chegada de vários hits nas paradas (“Better Be Good To Me”, “Private Dancer”, “What’s Love Go To Do With It” e a releitura do clássico soul “Let’s Stay Together”). Além de muitos discos de platina em vários países, a obra rendeu ainda quatro prêmios Grammy. Dois anos depois, o sucessor Break Every Rule foi capaz de sustentar Tina no olimpo pop, que rendeu nada menos do que oito singles (!!!). Novamente muitos produtores (entre os nomes, agora, os endeusados Bryan Adams e Mark Knopfler, que compusera a canção “Private Dancer” com Jeff Beck), novamente hits enfileirados nas paradas (“Two People”, “Typical Male”, “Paradise Is Here”, “What You Get Is What You See”), agora participações especialíssimas nos créditos das gravações (Knopler, Adams, Steve Winwood, Phil Collins, Branford Marsalis). Novamente múltiplos discos de platina ao redor do mundo, novamente o Grammy de melhor performance feminina de rock.
Tina Turner cantando no Maracanã
Recorde no Maracanã
O sucesso expandido pelo álbum Break Every Rule rendeu uma megaturnê que levou treze meses girando pelo mundo. Veio parar inclusive por aqui em uma época em que, ajudado pelo Queen e pelo Rock In Rio em 1985, o Brasil estava começando a entrar na rota dos grandes shows internacionais. Tina já havia cantado duas vezes na semana anterior em São Paulo, mas foi a passagem pelo Rio de Janeiro o seu maior momento – no país e, como indicam as memórias transpostas para a autobiografia Minha História de Amor – e da própria tour. A cantora levou 188 mil pagantes ao Maracanã, quebrando o recorde de pessoas em um evento não futebolístico – e superando marcas obtidas por outros nomes gigantes da música como Paul McCartney (184 mil), Frank Sinatra (175 mil), Rolling Stones (141 mil) e Kiss (137 mil). Aproveitando a estrutura utilizada dias antes pela primeira edição do festival Hollywood Rock, aquela histórica noite de 16 janeiro começou com bateria de escola de samba e o puxador Neguinho da Beija-Flor adaptando seu característico bordão para a estrela que chegou ao palco levada por um carro alegórico de Joãosinho Trinta. O set list contou com 19 canções. Começou com “Addicted To Love”, cover de Robert Palmer. Passou por várias canções daquele momento mágico que ela vivia nos anos 1980 (“Girls”, “Private Dancer”, “Typical Male”, “What’s Love Got To Do With It”, “Break Every Rule”, “What You Get Is What You See”, “Show Some Respect”, “Better Be Good To Me”, “Paradise Is Here”, “We Don’t Need Another Hero”), outras releituras de clássicos (“Help!”, “Let’s Stay Together”, “Proud Mary”) e pescou faixas de sucesso do passado (“The Acid Queen”, “Nutbush Cuty Limits”. Esta última, gravada em 1973 ainda como Ike & Tina Turner e uma quase autobiografia em versos e melodias composta por ela própria, encerrou a apresentação. Este show está disponível para streaming na Globoplay, por meio de um especial preparado e transmitido na época pela Rede Globo.
“We Don’t Need Another Hero”
Em 1979, George Miller apresentava ao mundo a trama pós-apocalíptica Mad Max, cujo sucesso comercial fez ainda dois títulos (em 1982 e 1985) para a trilogia oitentista protagonizada por Mel Gibson. Recentemente a franquia foi retomada com sucesso de público, crítica e premiações, mas naquele ano de 1985 a recepção fora bem diferente. Se não fosse pela presença de Tina Turner na produção, talvez Mad Max: Além da Cúpula do Trovão tivesse fracassado ainda mais. Nas telas, ela fez o papel de Aunty Entity, governante de Bartertown, uma cidade incrustada no deserto, que tenta a todo e qualquer custo consolidar seu poder na área. A interpretação da cantora transformou-se no ponto mais interessante de um filme perdido em um roteiro confuso e defendido sem qualquer empolgação por seu diretor. O visual marcante da personagem ainda se estendeu para o videoclipe da música-tema “We Don’t Need Another Hero”, esta sim o maior trunfo do longa-metragem. Além de indicações para o Oscar e o Grammy, Tina fez desta balada um hit mundial, capaz de mantê-la nas paradas durante o intervalo entre os discaços Private Dancer (1984) e Break Every Rule (1986).
Tina Turner no filme Mad Max: Além da Cúpula do Trovão (1985)
Cidadania renegada
Em 1986, Tina conheceu o executivo alemão do mundo da música Erwin Bach, com quem logo engatou um namoro. No começo da década seguinte, mudou-se para a cidade de Küsnacht, próxima a Zurique, para morar com Bach. O casamento só foi oficializado em 2013, quando solicitou a nacionalidade suíça em detrimento da norte-americana. Definitivamente os Estados Unidos não lhe encantavam mais. Afirmava apenas ter nascido lá e possuir familiares morando do outro lado do Atlântico. De certa forma, todo este processo de mudança foi uma saída para passar uma borracha em todo o sofrimento pessoal do passado e construir uma nova vida para Anna Mae Bullock, longe dos holofotes ligados para iluminar o glamour vivido como Tina Turner. Haja atitude para um artista dos EUA apagar suas ligações todas com o país natal.
Lulu Santos nunca foi um cantor na acepção da palavra. Tem afinação, noção e inteligência vocais mas ele sempre foi mais notável por conta de sua impressionante capacidade de compor canções de sucesso do que por cantá-las. Tudo bem, vários artistas são assim. A gente entende, compreende e aceita. Porém, à medida que o tempo passa, determinadas questões tendem a ganhar mais importância e, no caso de Lulu, passam a atrapalhar. A estreia de seu novo show, Barítono, via especial no Multishow e Globoplay, exibida no dia 4 de maio, quando ele completou 70 anos de idade, mostrou que Lulu, infelizmente, tem uma capacidade vocal bastante reduzida hoje em dia. Mesmo mudando o tom de algumas canções, mesmo usando backing vocals, a impressão que se tinha era que ele explodiria as veias do pescoço.
Tudo bem, novamente. A gente sabe, a gente entende. Como disseram nas redes sociais, “Lulu tem 70 anos, isso deve ser levado em conta”. Ora, então o que fazemos com outros artistas que, mesmo depois desta idade: seguem nos palcos com capacidade pra lá de razoável? Nem precisa ir muito longe: o que dizer de Maria Bethânia ou do próprio Caetano Veloso, que, como Lulu, também nunca teve grande capacidade vocal? Ou Guilherme Arantes, o finado Erasmo Carlos… Enfim, o fato é que o próprio Lulu percebeu e admitiu o fato, como revelou à apresentadora Fátima Bernardes em entrevista prévia: “Algumas canções dos meus primeiros dez anos de carreira ficaram muito complicadas para cantar”.
Lulu se saiu bem em momentos como “Aviso Aos Navegantes” e “Um Pro Outro”, cujos arranjos comportaram melhor seu registro atual, gravíssimo. Aliás, as escolhas no set list comprovaram outro dado crucial sobre sua carreira: sua capacidade de escrever sucessos se esgotou no início dos anos 2000. Nos 20 anos seguintes, sua fonte parece ter secado. Tudo bem que o álbum mais recente, Pra Sempre (2019), tem sonoridade respeitável e, pelo menos, duas belas canções: “Orgulho e Preconceito” (que entrou no set list) e a faixa-título, mas nunca poderiam ser comparadas a sucessos de outros tempos. Sendo assim, a mais recente que surge no roteiro deste show é “Já É”, de 2003, que, para compensar o fato, é uma das mais inspiradas criações da carreira do homem e foi hit enorme.
De resto, as canções com Gabriel O Pensador (“Astronauta” e “Cachimbo da Paz”, cantadas pela dupla nessa noite) e “Janela Indiscreta” (num bom resgate de repertório), todas do Acústico MTV, lançado em 2000, são as mais recentes se não for levada em conta também a inédita “Presente”. O forte se concentrou nos anos dourados da década de 1980, quando Lulu, de fato, foi absoluto. Porém, mesmo com canções do calibre de “Casa”, “Condição”, “Satisfação”, “Tempos Modernos”, “Um Certo Alguém”, “A Cura” e várias outras no bolso do colete, a questão do registro vocal puxou a coisa para baixo. Pelo menos para ouvidos mais exigentes. A banda que o acompanha é competente e enxuta, com destaque para o baixista Jorge Ailton – que também ajuda nos backing vocals – e o baterista Sergio Melo, que segura a onda com firmeza e joga para o time, mas não consegue driblar a limitação vocal. Em tempo: se há algo realmente notável na banda, é o próprio Lulu, que segue como um dos grandes guitarristas da história do pop rock nacional em todos os tempos.
No Teatro Multiplan (RJ) com a plateia com vários globais – que iam de integrantes da Central Globo de Jornalismo a pessoas como o chef Felipe Bronze, o cantor Leo Jaime, o genial comentarista carnavalesco Milton Cunha e uma procissão de rostos novos que me pareceram absolutamente desconhecidos –, o clima do show era de uma grande festa da firma, com um convidado especial, que também é da firma (lembrem-se, desde 2012, Lulu Santos é jurado do The Voice – ironia define).
Lulu é artista competente e dono de uma carreira com muito mais acertos do que erros. Torço para que sua turnê Barítono o leve para palcos mais diversos e interessantes.
Set list: “Toda Forma de Amor”, “Um Certo Alguém”, “O Último Româmtico”, “Janela Indiscreta”, “Adivinha o Quê?”, “Tudo Azul”, “Assaltaram a Gramática”, “Cachimbo da Paz”, “Astronauta”, “De Repente”, “Tempos Modernos”, “Tudo Com Você”, “Esse Brilho em Teu Olhar”, “A Cura”, “Apenas Mais Uma de Amor”, “Um Pro Outro”, “Presente”, “Orgulho e Preconceito”, “Satisfação”, “Condição”, “Aviso Aos Navegantes”, “Já É”, “Assim Caminha a Humanidade”, “Lua de Mel”, “Sereia”, “De Repente Califórnia” e “Como Uma Onda”. Bis: “Tudo Bem”, “Certas Coisas”, “Tão Bem”, “Lei da Selva” e “Casa”.
No último dia 25 de abril, uma terça-feira, a região da Grande Florianópolis recebeu uma das maiores lendas do rock mundial. O Kiss apresentou-se pela última vez no Brasil, depois de trazer para cá (pela terceira vez) sua turnê de despedida (batizada End Of The Road) e passar (desta vez) por outros quatro pontos do país (Manaus, Brasília, Belo Horizonte e São Paulo).
Alocado estrategicamente do lado direito do palco montado no Hard Rock Live (na cidade catarinense de São José), cheguei diretamente do trabalho para poder cobrir este que deve ser o último concerto do quarteto pelas terras de Machado de Assis ou, melhor falando, do poeta Cruz e Sousa. Incrivelmente dez minutos antes do horário previsto (21h), os quatro cavaleiros do apocalipse já desciam por enormes plataformas para chegar próximo de nós, meros mortais, entoando a seminal “Detroit Rock City”. A essa altura, meu amigo, a audiência era um verdadeiro delírio musical, com homens e mulheres de todas as idades cantando a plenos pulmões toda a música. E todas as que estariam por vir. A plateia era composta, em maioria, por muitas famílias, onde era nítido o amor geracional pelo rock e pela banda destes quatro senhores. Algo lindo e épico demais.
Diferente da última passagem da banda por este sul do sul do mundo, no ano de 2015, desta vez sim tivemos o espetáculo completo, recheado de trajes extravagantes, maquiagens marcantes, plataformas levadiças, efeitos visuais, pirotecnia, fogo, sangue, luz e demais elementos que tornam o show do grupo algo único, simplesmente o maior espetáculo da terra. Também foi nítido que, desde o início da perfoirmance, o Kiss demonstrou toda a sua energia e paixão pelo rock, coisa pouco vista em vários shows de pessoas que possuem a metade de idade de Paul Stanley, Gene Simmons, Eric Singer e Tommy Thayer.
Sobre as músicas, nenhuma surpresa. O set list cravou só clássicos da banda, que há meio século percorre o mundo tocando “I Was Made For Lovin’ You”, “Calling Dr Love”, “I Love It Loud”, “Deuce”, “Psycho Circus”, “Love Gun”, “God Of Thunder”, “Black Diamond”, “Do You Love Me” e “Rock And Roll All Nite”, entre outras. Esta última, inclusive, foi a que fechou a noite histórica, com aquela tradicional chuva de confetes, fogo e loucuras que precedem a saída de cena da banda – e, neste caso, o fim da passagem física do Kiss pelo Brasil, iniciada já exatos 40 anos, lá em 1983, no Maracanã.
Em resumo: se de fato foi a última vez, será épico ter vivenciado ao vivo e em cores um verdadeiro espetáculo de rock’n roll. Deixará saudades em todos os fãs brasileiros e marcará a história catarinense para sempre.
Set List: “Detroit Rock City”, “Shout It Out Loud”, “Deuce”, “War Machine”, “Heaven’s On Fire”, “I Love It Loud”, “Say Yeah”, “Cold Gin”, “Lick It Up”, “Makin’ Love”, “Calling Dr Love”, “Psycho Circus”, “God Of Thunder”, “Love Gun”, “I Was Made For Lovin’ You” e “Black Diamond”. Bis: “Beth”, “Do You Love Me” e “Rock And Roll All Nite”.
Billie Eilish, Modest Mouse, Jane’s Addiction, Paralamas, Aurora, Baco Exu do Blues, Tove Lo e Cigarettes After Sex: shows que marcaram o festival
Billie EIlish
Texto por Abonico Smith
Fotos: Reprodução
Entre os dias 24 e 26 de março foi realizada a décima edição brasileira do festival Lollapalooza, a última em parceria da produtora T4F com a americana LLC, detentora da marca do evento. Depois de cinco recentes cancelamentos de concertos programados para este ano, todo mundo foi surpreendido com a não vinda ao Brasil do headliner da última noite, o canadense Drake, horas antes dos portões do Autódromo de Interlagos serem abertos. A desculpa oficial do artista, esfarrapada, não colou: a de que estariam faltando pessoas de sua equipe no país. Entretanto, ele foi visto na madrugada anterior festando em Miami em conjunto com o rapper 50 Cent. E mais: estas pessoas de sua equipe já estavam em SP instalando no autódromo os telões e o material de seu espetáculo. Mas como é sempre melhor falar de coisas boas, deve também ser registrado um marco desta edição: pela primeira vez o line-up estava dividido quase igualitariamente entre artistas dos dois gêneros.
O Mondo Bacana comenta um pouco dos oito shows que deixarão esta edição do Lolla na história dos grandes festivais de música pop do Brasil.
Billie Eilish
Única headliner originalmente anunciada a se apresentar em Interlagos (além de Drake, o Blink 182 também não veio para cá), ela já era aguardada havia algum tempo por aqui. Afinal, este seria seu primeiro concerto no país, já que o anterior fora cancelado por causa da pandemia. Em cima daquele palco enorme, tendo a companhia apenas de seu inseparável irmão e produtor Phinneas e um baterista, ela – com o verde e amarelo predominando no figurino grande e largo sobre a malha preta que lhe escondia o corpo – entregou o que prometia: uma boa coleção de letras intimistas a respeito de observações, sensações e sentimentos de uma garota vivendo os anos finais de sua adolescência. Intimista também foi sua performance: sem muitos pulos, correrias ou coreografias ensaiadas, era quase apenas ela cantando ao microfone. Quer dizer, cantando às vezes. Billie só cantava o necessário e muitas vezes sua voz ecoava pelo autódromo junto com os instrumentos também pré-gravados. O que deixava o show redondo, sem espaço para improvisos ou erros. Só que teve momentos em que os manos abriam mão do playback e se arriscavam em momentos semiacústicos para mostrarem que não são uma fraude ao vivo: foram cerca de meia dúzia de canções com Phinneas dedilhando o violão ou o piano para a irmãzinha soltar o gogó de alcance não muito grande.
Modest Mouse
Quem foi a genial pessoa responsável pela grade de shows que conseguiu jogar o grupo para uma tarde de sexta-feira? Modest Mouse – um dos ícones do indie rock americano dos anos 2000 – não é para a GenZ, é para gente mais velha. Melhor: para quase todo mundo que não tem a) grana disponível de salário ou frilas para pagar o caro ingresso do festival; b) saco ou corpo para aguentar ficar um dia sequer em uma maratona de shows; c) horário disponível para ir assistir a uma banda tocar às quatro da tarde de sexta-feira. Sob um sol escaldante, o vocalista Isaac Brock estava vermelho feito um camarão, à frente de seu quinteto que foge da musicalidade óbvia e mistura lo-fi, folk e psicodelismo em doses nada comerciais. O resultado foi uma banda competentíssima tocando para quase ninguém, sendo a maior parte disso gente que desconhecia por completo o repertório loteado entre sua boa discografia. Hits como “Float On” e “Dashboard” ficaram desperdiçados naquela escala gigantesca ao ar livre. De qualquer maneira, quem viu in loco ou pelo streaming foi abençoado pela tardia estreia do Modest Mouse em solo brasileiro. Antes tarde do que muito mais tarde. Antes de tarde durante a semana do que nunca.
Jane’s Addiction
Perry Farrell idealizou o Lollapalooza em 1991 como um festival ambulante, que pudesse rodar algumas grandes cidades norte-americanas com uma escalação de excelentes bandas alternativas como suporte para a turnê de despedida de sua banda. Deu tão certo que o Jane’s Addiction se separou mas o Lolla continou trilhando seu caminho de sucesso durante os meados dos anos 1990. Perry, então, quase sempre vem prestigiar a edição brasileira. Agora trouxe a tiracolo a reformada banda que o revelou para o mundo da música. Integrantes originais… ou quase, já que o guitarrista Dave Navarro (que saiu do JA para tocar no Red Hot Chili Peppers) continua afastado dos palcos para tratar da saúde (covid longa como justificativa oficial, rehab longa como rumor alimentado entre os fãs do grupo). De qualquer forma, seu substituto, o também ex-guitarrista do RHCP Josh Klinghoffer, mostrou ser uma escolha acertada. Enquanto o baterista Stephen Perkins e o baixista Eric Avery (que também costuma ser músico de apoio do Garbage) se entendem perfeitamente em uma cozinha rítmica hipnótica e dançante, Josh jorrava os efeitos de pedais que fazem a sonoridade da banda flutuar entre o hard rock, o psicodelismo e o groove. Para completar, uma trinca de dançarinas comandada pela atual mulher de Farrell faziam pole dances sensuais ao fundo do palco, dando um approach cênico diferente às canções. Em Interlagos, o set list foi reduzido por conta do tempo destinado ao show, socado no meio da programação da tarde do segundo dia. De qualquer forma, ficou bem dividido entre os dois primeiros e incensados discos da banda, concebidos entre 1988 e 1990, antes das brigas internas que levaram à implosão precoce da carreira. De qualquer forma, reunidos já nas casas dos 50 e 60 anos de idade, os músicos mostraram por aqui que estão como vinho: quanto mais velhos, melhor. Maturidade e experiência – e um longo hiato interrompido por outras duas reuniões e discos criados em 2003 e 2011 – fizeram bem. Em um sábado fraco de opções, o Jane’s Addiction chegou quietinho e fez uma puta (e despretensiosa) apresentação. Ainda terminou com uma batucada em homenagem ao amigo Taylor Hawkins, que morria havia exatamente naquela data, no ano anterior… horas antes do show do Foo Fighters na Colômbia e de viajar para tocar no Lollapalooza brasileiro.
Paralamas do Sucesso
Ter 40 anos de carreira fonográfica não é para qualquer um. Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone sabem disso e utilizam um arsenal de clássicoscolecionados em sua extensa discografia para disparar um show magnífico. É hit atrás de hit quase sem intervalo para respirar. Foi assim neste Lollapalloza, na tarde de sol de um domingo para uma maioria de plateia formada por GenZ e millennials. O repertório começou com canções mais representativas da faceta ska (“Vital e Sua Moto”, “Patrulha Noturna”, “Ska”, “Loirinha Bombril”) e passeou por toda a galeria das duas primeiras décadas de carreira, misturando reggae, dub, afrobeat, rock, citações (Tim Maia, Titãs, Raul Seixas) e muita injeção rítmica contínua para não deixar ninguém totalmente parado – pelo menos um dos pezinhos não teve como resistir. Herbert começou enfrentando problemas técnicos, contornados sabiamente com conversas fora do microfone com um roadie enquanto não parava de cantar as letras para a plateia. Tirando este pequeno detalhe, que não chegou a comprometer a apresentação aliás, os Paralamas mostraram toda a sua realeza na música pop nacional. Não precisa de firulas, telões, coreografias, trocas de roupa, andar para lá e para cá no palco ou ao redor dele. Só precisa de música. E muito boa música. Referências para se criar música de qualidade eles sempre tiveram também. São uma banda pós-punk brasilis roots (a sonoridade two-tone em verde e amarelo, inclusive com versos politizados e críticos transformados para a nossa realidade!) e isso ainda faz toda a diferença. Mesmo diante de uma molecada que não chegou a viver os tempos dos vinis e CDs lançados com essas músicas.
Aurora
É só começar a ouvir a sua extensão vocal de soprano que não tem como não embarcar junto nesta fantasia musical que é seu show. Ela mesma parece uma pequena e adorável duende, sempre a saltitar feliz e travessa pelos vastos campos verdes. Seu look também ajuda: vestes claras e em tonalidades pasteis, pés descalços, pele alva e um cabelinho curto e de um chanel tão branco quanto sua melanina norueguesa. Muita gente que estava ali na plateia sabia de cor e salteado as letras, cantava junto e se emocionava por estar na frente de Aurora Asknes. Pudera. A artista faz da voz um belo poder instrumental, além de ser hábil nas palavras para demonstrar seus mais profundos sentimentos acerca da vida e da natureza. Mas também não precisa ser expert na obra dela para se render ao poder desta guria escandinava, solta, espontânea, natural e sem qualquer maquiagem, capaz de provocar um midsommar tão contagiante aqui no hemisfério sul e em pleno cair da tarde de um domingo quente brasileiro.
Baco Exu do Blues
Ele entrou na grade do Lolla como uma rápida solução caseira para suprir o cancelamento quase em cima da hora de Willow, filha do astro Will Smith. E ainda entregou uma das mais emocionantes performances em língua brasileira deste Lollapalooza. Generoso, o baiano de quatro discos lançados nos últimos seis anos fez questão de não brilhar sozinho. No telão, prestou reverência a personalidades negras já falecidas como Marielle Franco, Elza Soares, Muhammad Ali, 2Pac Shakur e Nelson Mandela. E no meio do repertório montado com alguns de seus grandes sucessos ainda cedeu espaço lá na frente para cada uma de suas backings (Aísha, Alma Thomas e Mirella Costa) dividirem as atenções, o microfone e o gogó poderoso. Mirella, por sua vez, protagonizou uma emocionante homenagem à também soteropolitana Gal Costa, ao mandar, a capella, um trecho de “Força Estranha”. Mancando e dando passos lentos, Baco fez o que pode, cenicamente, para superar o estiramento na panturrilha sofrido poucos dias antes. E ainda mandou a letra para espinafrar o grande ausente da noite, Drake, sendo complementado por xingamentos dirigidos pelo público ao astro chiliquento canadense. Mostrou, como Kevin Parker (Tame Impala) na noite anterior, que nem sérias limitações físicas para a locomoção não podem servir como desculpa para não cantar aos fãs.
Tove Lo e Pabllo Vittar
Tove Lo
Outra atração nórdica dominical, a sueca mostrou que um show de música pop pode muito bem ser construído em cima de… música pop. Nada pode tirar o primeiro plano. Pelo contrário. Figurinos podem ser um bom complemento (no caso, uma roupa colante em tons verdes que lhe permitiu fazer o manjado gesto de mostrar os seios à plateia). Coreografias também. Mas um palco deve ser povoado por musicistas tocando seus instrumentos, cantora realmente cantando e dispensando playbacks descarados e a ausência de um time de bailarinos indo para lá e para cá, chamando mais a atenção dos olhos do que os ouvidos. Tove Lo é muito mais discípula de Madonna do que muita gente pode pensar. Ela canta, dança, brinca com a sexualidade diante de uma multidão e mostra ser uma artista de força suficiente para ter um longo futuro pela frente. E olha que ela já tem cinco álbuns feitos de 2014 para cá.
Cigarettes After Sex
Todo ilusionista sabe muito bem que o segredo do sucesso de sua performance está na habilidade de deslocar a atenção do público para um local diferente daquele onde realmente “acontece” o truque. A derradeira das três noites do Lolla, de fato, foi equivalente a um show de ilusionismo. Todo mundo esperando o headliner Drake e depois todo mundo desapontado e xingando o arredio Drake por nem ter viajado ao Brasil. Muita gente comentando o fato de que o DJ e produtor de IDM Skrillex havia sido escalado de improviso para ocupar o horário e o palco anteriormente destinado ao fujão. Muita gente indo embora ao cair da noite, já desesperançoso de que ali em Interlagos acontecesse mais alguma coisa estupenda no autódromo. Espertos, porém, foram aqueles que não arredaram o pé e ficaram no local (ou sintonizados no streaming) até as nove da noite, de olhos bem atentos a um dos palcos secundários. Ali, já aos 45 minutos do segundo tempo do festival, os acréscimos permitiram uma magnífica performance de um singelo trio norte-americano que, por meio da internet, tornou-se objeto de culto nos últimos anos por um pessoal mais antenado. O Cigarettes After Sex veio para impactar com todo o seu minimalismo. Cênico, com seus integrantes tocando quase sempre parados no palco, dispostos geometricamente lado a lado. Sonoro, com somente um vocal (de seu líder e criador Greg Gonzalez) e a mínima movimentação possível de baixo, guitarra e bateria. Havia uma textura de teclados pré-gravados disparada como pano de fundo para a maioria das canções. Mas isso só reforçou a atmosfera etérea e hipnótica do concerto. Fotógrafos não foram permitidos no pit à frente do palco. Quem ficou em casa assistiu a uma transmissão noir, que impôs a ausência de captação de qualquer cor pelas câmeras que não fossem o preto e o branco. Com ares de cabaré decadente, algo tipicamente David Lynch, o CAS fechou as cortinas da décima edição premiando poucos felizardos com algo meio difícil de acontecer em um grande festival. Truque de mestre.