Acompanhe toda a angústia de dia de muita humilhação, abuso e assédio no trabalho de uma jovem aspirante a produtora de cinema

Texto por Andrizy Bento
Foto: Amazon Prime Video/Divulgação
Não são raros os casos de mulheres que já passaram por algo parecido: ouvir, ver, testemunhar ou, pior, viver na pele uma situação de assédio/abuso no ambiente de trabalho e, ao tentar reportar a alguém que, a princípio, dispõe-se a ouvir, entender e ajudar, vê-se em uma situação ainda mais difícil. São dadas duas opções: prosseguir com uma denúncia formal e correr o risco de ser demitida ou se calar, silenciar, fechar os olhos e se manter no emprego. A ameaça de demissão vem disfarçada de “conselho de amigo”: não desafie ou lute com alguém mais poderoso que você na hierarquia da empresa. É desse tópico delicado que trata A Assistente (The Assistant, EUA, 2020 – Amazon Prime Video), filme dirigido por Kitty Green, estrelado brilhantemente por Julia Garner e lançado diretamente em streaming durante esta pandemia.
O longa, que se concentra inteiramente em sua protagonista, acompanha um dia de trabalho de Jane (Garner) – aspirante a produtora de cinema, que arrumou um emprego de assistente em uma companhia cinematográfica – e deixa evidente o quanto sua rotina é repetitiva e imutável. Ela está só há dois meses no emprego, mas já apresenta óbvios sinais de que está sofrendo de síndrome de burnout.
Jane é sempre a primeira a chegar e a última a sair. Até mesmo na hora de deixar o elevador, recusa gentilezas e cede passagem àqueles que tomaram o elevador com ela para que saiam primeiro. Executa as tarefas diárias corriqueiras – atender ligações, organizar agendas, imprimir e tirar cópias de scripts, pedir o almoço e fazer reservas de voos e hotéis – e até coisas que não são de sua alçada – lavar a louça que outros funcionários, que sequer olham para ela, deixam acumular na pia, limpar a mesa de seu patrão e tirar o lixo para fora. Tudo feito mecanicamente, com uma apatia até incômoda.
Isso até receber o telefonema do chefe, uma espécie de Harvey Weinstein que jamais aparece na tela e nem mesmo tem seu nome revelado na trama. Só somos capazes de ouvir a voz ameaçadora no telefone, dirigindo impropérios e rebaixando moralmente sua assistente. Aí a apatia da protagonista cede espaço à melancolia. Assim que ele desliga o telefone, após a sessão de humilhação diária que, aliás, pode ocorrer mais de uma vez por dia, Jane imediatamente redige e-mails pedindo desculpas ao chefe e, auxiliada por seus colegas (dois homens que não hesitam em transferir muitos de seus afazeres a ela), finaliza-os agradecendo pela oportunidade de trabalhar na empresa e prometendo que não vai decepcioná-lo novamente.
Além disso, Jane nota com certa estranheza o comportamento do patrão que se recusa a atender os telefonemas da esposa e recebe diversas mulheres jovens para supostas entrevistas e testes de câmera em sua sala, sempre com a porta trancada. Ao expressar ao departamento de gestão de pessoas sua inquietação e preocupação com o bem-estar de uma nova e inexperiente assistente, suas alegações são recebidas com escárnio e desdém. Além de desencorajá-la com uma ameaça de demissão, a conversa com o responsável pelo setor de recursos humanos é coroada com um repulsivo “você não precisa se preocupar, você não faz o tipo dele”.
A decisão de retratar apenas um dia de trabalho da protagonista é inteligente, pois transmite ao espectador a sensação de que esse longo e exaustivo dia – bem como todos os outros – parece se prolongar mais do que deveria, por semanas ou meses a fio. É como se o expediente da jovem assistente durasse uma eternidade.
Combinados e afinados, direção de fotografia e design de produção são bem-sucedidos na composição de um ambiente extremamente claustrofóbico, sufocante e opressivo. Abusando de enquadramentos fechados, planos detalhe reveladores e close-ups constantes na expressão de Jane, as lentes registram todo o estresse do dia a dia e a angústia contida em seu semblante.
O espectador ainda tem acesso a alguns fragmentos de informações dispersas pelos papéis na copiadora, fotos e objetos incomuns encontrados no escritório do chefe sem nome e sem rosto, que poderia se tratar de qualquer um. Poderia ser o meu ou o seu chefe. Jane também não pode evitar ouvir algumas conversas paralelas degradantes, mas absorve tudo calada. Cada quadro, cada diálogo, evidencia o quão tóxico é o local em que trabalha a assistente que dá título ao longa.
A protagonista se encontra em uma situação em que mesmo as palavras de incentivo e os elogios podem machucar. Às vezes, não conscientemente – quando partem daqueles que torcem pelo seu sucesso e não têm a mínima noção do que ela está passando diariamente, dos abusos sofridos. Frases como “estamos orgulhosos de você”, “é uma excelente oportunidade” doem. Doem porque ela não quer destruir a ilusão e as expectativas que as pessoas de seu convívio criaram com relação ao seu trabalho e, assim, submete-se a mais um dia longo e extenuante de tarefas repetitivas e humilhações sem falar nada para ninguém – já que, ao tentar, é desacreditada.
Quanto aos elogios, esses podem vir carregados de segundas intenções, de condescendência ou passivo-agressividade: “Você é inteligente, você se formou com honras, você vai conquistar um cargo respeitável rapidamente se continuar assim, trabalhando duro…”. Mentirinhas contadas para fazer com que a funcionária se sinta lisonjeada e feche os olhos e os ouvidos para tudo o que acontece na sala logo atrás dela. Assim, a assistente se resigna à solidão e ao silêncio.
Há uma cena pós-créditos que mostra Jane chegando em casa após o expediente, traçando um paralelo com a cena inicial, que a mostra saindo de casa para o trabalho, como se ela estivesse presa em uma espécie de looping e evidenciando que o amanhã será exatamente igual a todos os dias que o precederam desde que a protagonista passou a trabalhar para a empresa. Não há sinais de mudança à vista.
Este é um filme capaz de acionar gatilhos por se tratar de uma situação infeliz e absurdamente comum, abordando, a partir de uma perspectiva intimista, o assédio e o abuso – infelizmente, tão comuns e presentes na indústria do entretenimento. O longa é tão realista que a identificação é imediata. E, ao contrário de outros produtos de ficção que nos fazem sentir vingadas ao mostrar a justiça sendo feita ao final, A Assistente, em contrapartida, nos faz refletir sobre o longo caminho que ainda precisamos percorrer para combater o patriarcado.