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Saudosa Maloca

Inspirado na criação das canções (e em parte da vida) do sambista Adoniran Barbosa, longa acerta ao fugir de uma cinebiografia convencional

Texto por Abonico Smith

Foto: Elo Studios/Divulgação

João Rubinato é uma figura ímpar da música brasileira. Filho de imigrantes italianos, falava muita palavra de modo errado perante a norma culta da língua portuguesa. Também não tinha muita instrução formal. Largou a escola cedo, pois não gostava de estudar e ainda precisava trabalhar desde criança para ajudar a complementar a renda de casa. Mesmo assim, com muita perspicácia, criatividade e talento, criou uma série de canções que se tornaram, com o tempo, pérolas icônicas de qualquer roda de samba que se preze, seja na mesa do botequim ou no palco de um pomposo teatro. Entrou para a história da cultura nacional sob o pseudônimo de Adoniran Barbosa. Não exatamente como o cantor que sempre sonhou ser desde jovem. Mas como compositor de fortes melodias aliadas a letras irresistíveis, com muito humor e verve literária do cotidiano ligado às pessoas à sua volta, quase toda vivida na cidade de São Paulo.

O diretor e roteirista Pedro Soffer Serrano é um dos maiores admiradores da obra de Adoniran. Depois de assinar um curta baseado nas principais músicas  (Dá Licença de Contar, de 2015 – clique aqui para assistir à obra) e um documentário sobre o artista (Adoniran: Meu Nome é João Rubinato, de 2018 – clique aqui para ler a resenha do Mondo Bacana), ele agora chega aos cinemas de todo o país com o terceiro produto desta trilogia, um longa-metragem. Saudosa Maloca (Brasil, 2023 – Elo Studios) não é bem uma biografia do ídolo. Em pouco mais de noventa minutos de história, aliás, bem pouco ou quase nada se mostra em cena da vida pessoal de João. Seu dois casamentos, sua família, sua filha, inclusive sua trajetória artística. Esse negócio de “onde nasceu, como viveu, do que se alimentou, do que morreu” pode caber para o Globo Repórter, mas  não aqui. Serrano opta pelo mesmo esquema do curta e costura um Rubinato já na terceira idade contando histórias para um jovem garçom fã de suas canções.

Quase tudo se passa em flashbacks protagonizado pelo trio formado por João, Joca e Mato Grosso. Com calibrada dose de humor no roteiro, detalhes sobre experiências vividas por estes três amigos que se uniram em uma maloca improvisada em um casebre na região central paulistana lá pelos anos 1950, quando a sensação de transformações definitivas vinha com o estabelecimento da indústria cultural forte e o surgimento de arranha-céus no lugar de simples casas. Todos os três já estão bem crescidos, por volta dos 40 anos de idade e com um grande ponto em comum: o amor pela boemia e pela malandragem de uma época ainda de alto grau de inocência cotidiana, sem o menor tino para o trabalho de modo convencional.

É foi justamente este universo ao redor de Adoniran Barbosa o grande trunfo para o surgimento de canções inesquecíveis como “Conselho de Mulher”, “Iracema”, “No Morro da Casa Verde”, “Um Samba no Bixiga” e “Vila Esperança” ou “Samba Italiano” – isso somente listando algumas criações coadjuvantes dos greatest hits (“Samba do Arnesto”, “Trem das Onze”, “Tiro Ao Álvaro” e “Saudosa Maloca”). Por meio de versos e títulos de suas músicas, bairros (mais centrais ou nem tanto assim) como Brás, Bixiga, Jaçanã e Vila Esprança ganharam popularidade extramunicipal na segunda metade do século 20. Este longa destrincha um pouco de como e porquê as famosas obras acabaram circulando, primeiro pela tradição oral e depois sendo eternizadas por gravações lançadas no mercado fonográfico nacional.

Teria tudo o que é mostrado na tela acontecido realmente? Aliás, em um determinado momento o tal jovem garçom lança no ar uma boa pergunta: teriam mesmo existido os tais de Mato Grosso e Joca que estão nas contações e cantações de Rubinato? A resposta acaba vindo nas entrelinhas e de maneira categórica: pouco importa se sim ou se não. O que vale, afinal, é a exímia destreza de Adoniran Barbosa como um observador e cronista social do dia a dia de uma classe trabalhadora e de baixa renda em uma metrópole ainda se desenhando para o agigantamento desenfreado que ainda pode ser presenciado pelo artista no final de sua vida (ele faleceu em novembro de 1982, aos 72 anos).

Saudosa Maloca conta ainda com um elenco afiado. Repetindo os seus papeis no curta-metragem (que ainda tem algumas breves cenas reprisadas no longa), Paulo Miklos (João), Gero Camilo (Mato Grosso) e Gustavo Machado (Joca) estão deliciosamente impagáveis. Uma trinca capaz de arrancar gargalhadas e competir com os Trapalhões no momento áureo do grupo capitaneado por Renato Aragão logo após a estreia do programa na Rede Globo. Sidney Sampaio (o tal jovem garçom de nome Cícero) e Leilah Moreno (a garçonete Iracema, sempre cortejada pelos dois parças de maloca de Adoniran) reforçam a parte mais dramática do roteiro, ao passo que Paulo Tiefenthaler (o rico Pereira, homem da grana, da influência e do contraponto ao trio de zé ninguéns que andam quase sempre duros e sem comida em casa) e Zemanuel Piñero (o chapa Arnesto, aquele que convidou para um samba que não existiu em sua casa) se mostram brilhante como escada. Diversas vezes eles levantam a bola para Gero, Gustavo e Paulo subirem nas alturas e cortarem com tudo a bola rumo ao chão e marcarem diversos pontos.

Quem já é iniciado no fantástico mundo dos versos escritos por Adoniran Barbosa vai se deliciar com este longa-metragem repleto de inesquecíveis frases acidamente filosóficas pronunciadas pelo protagonista. Quem ainda não conhece ou pouco sabe de João Rubinato tem a grande chance de se apaixonar e virar fã de vez dele.

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