Books, Music

Britney Spears

Um dos livros mais esperados dos últimos anos, a recém-lançada autobiografia apresenta a todo mundo as várias faces da popstar

Britney em foto recente publicada em suas redes sociais

Texto por Lilian Santos

Fotos: Reprodução

O público parece acreditar que sabe tudo sobre a cantora americana, que dominou as paradas no final dos anos 1990 e início dos 2000. Afinal Britney sempre foi presença frequente nos tabloides e revistas de fofoca. Mas com o livro A Mulher em Mim (lançado no Brasil pela Buzz Editora), Britney toma posse de vez da sua narrativa. Autobiografias são difíceis de entender: afinal, não dá pra saber até onde existe verdade e o que é ficção. Este livro não foge à regra, mas a descida ao universo Britney é, sem dúvida, interessante.

Como todo mundo, ela é complicada, cheia de virtudes e defeitos. A menina interiorana, a filha obediente, a girl next door, a namoradinha da América, a mulher e mãe, a superestrela: são as muitas faces de Britney. A popstar é fácil de se entender. Simples como as letras de suas músicas, uma melodia fácil com um refrão pegajoso. A pessoa por trás dos holofotes, entretanto, é muito mais interessante. A mulher Britney Jean Spears é um indivíduo complexo. Um lado seu está em constate busca por atenção, ao mesmo tempo em que a garotinha se esconde no armário, fugindo do pai alcoólatra e abusivo e do julgamento materno.

Em A Mulher em Mim, Spears não se esquiva dos assuntos polêmicos que permeiam sua vida. O relacionamento com Justin Timberlake, o aborto provocado quando se descobriu gravida do cantor. O casamento-relâmpago com Jason Allen Alexander e a união com Kevin Federline, pai de seus dois filhos. Ela não se esquiva dos detalhes e é fácil ter empatia com o breakdown sofrido em 2007, quando raspou o cabelo e atacou fotógrafos com um guarda-chuva. Britney descreve o evento como resultado da pressão psicológica sofrida pela constante perseguição da imprensa e aos efeitos da depressão pós parto.

Britney se apresentando no VMA em 2001 com uma cobra píton

Segundo a cantora, tanto a adolescente quanto a mulher Britney tiveram sua história mal interpretada e são vítimas do patriarcado. Desde a narrativa do rompimento com Timberlake, quando ele a acusou de traição em várias de suas músicas, ao relacionamento com K-Fed, no qual ele a acusou de ser uma mãe inapta, passando pelo próprio pai, Jamie Spears, e a bizarra tutela que extirpou Britney do controle de sua própria vida. Todo mundo pegou carona no sucesso dela e cuspiu os restos aos paparazzi.

Segundo ela mesma descreve, os homens podem tudo: trair, fumar maconha em quantidades absurdas. Só que a mulher, a mãe, a pessoa mais famosa do planeta, é tachada de piranha, bêbada, viciada. Double standards existem para celebridades também. E não apenas aos olhos do mundo inteiro, mas especialmente no convívio íntimo, entre familiares e amigos.

Enquanto conta seus problemas causados pelo vicio em adderal, Britney nos deixa entrar no horror do circo sua interdição. O pai e os advogados dela entraram com o processo para interditar a cantora. A galinha dos ovos de ouro da família Spears passou a não ser nem mais a dona de seu nariz. Jamie e uma linha de advogados determinavam o que ela fazia, onde gastava seu dinheiro. Dinheiro, aliás, que ela continou a fazer, uma vez que não estava proibida de trabalhar e excursionar pelo mundo. Fuck the patriarchy!

A tutela durou treze anos e a artista, agora, vive o ostracismo da indústria. Desde 2016 não lança um novo material sequer e os filhos Sean Preston e Jayden James vivem com o pai. Quem sabe, então, esta biografia não vira o próximo passo para o esperado comeback da eterna princesa do pop? Depois da “liberdade”, isso é tudo o que a sua legião mundial de fãs deseja.

It’s Britney, bitch!

Movies, Music

Nosso Sonho – A História de Claudinho & Buchecha

Não há como não se emocionar com a trajetória de sofrimento e perseverança da dupla que levou o funk carioca a outro patamar

Texto por Abonico Smith (com colaboração de Luciano Vitor)

Foto: Manequim Filmes/Divulgação

Na segunda metade dos anos 1980, quando o hip hop se popularizou nos Estados Unidos para muito além dos guetos, seus versos também sofreram um processo de transformação. Passaram das crônicas do dia a dia de seus habitantes – que variavam entre a celebração das festas dos finais de semana ao vício em drogas – para críticas sociais bem mais pesadas em profundas, retratando preconceito racial e os frequentes confrontos violentos com a polícia pelas ruas dos bairros de periferia. Até que o gangsta rap tornou-se praticamente sinônimo desse gênero musical.  Entretanto, uma turma oriunda de Miami e região começou a fazer sucesso ao optar por outra vertente lírica: a temática sexual, muitas vezes de modo bem explícito.

Logo, o miami bass – o nome foi dado por conta dos graves pesados embalados por uma batida eletrônica minimalista extraída de uma Roland TR-808, a mesma utilizada por nomes clássicos do electro como Afrika Bambaataa e Mantronix  – foi o incorporado ao léxico sonoro dos bailes funk realizados nas favelas e morros do Rio de Janeiro por equipes de som como a Furacão 2000 (que também investia em programas de TV). A malícia e a malemolência do jeito carioca de ser encontraram identificação imediata e então o funk caiu no gosto do carioca, a ponto de se tornar uma nova vertente musical acoplando o gentílico ao batismo.

Com o Plano Real e a troca definitiva do formato usado pelo mercado fonográfico (os compact discs substituindo os vinis nas lojas e se multiplicando feito chuchu na serra nos ambulantes com produtos piratas), o funk carioca logo cruzou fronteiras tanto estaduais quanto socioeconômicas, emplacou os primeiros hits nas rádios de todo o país e fabricou seus primeiros ídolos, como Abdullah, Mr Catra e Cidinho & Doca (“Rap das Favelas”). Aos poucos, por causa de linhas melódicas mais adocicadas e letras de cunho romântico, uma turma instaurou o segmento do funk melody. Assim se consagraram MC Marcinho (“Glamurosa”, “Garota Nota 100”) e Claudinho & Buchecha (“Quero Te Encontrar”, “Só Love”). Esta última dupla chegou a ultrapassar a marca do disco triplo de platina (750 mil cópias) com os dois primeiros álbuns e duplo de platina (500 mil) com o seguinte. Tudo isso num espaço de apenas três temporadas, entre os anos de 1996 e 1998. O quarto trabalho, registrado ao vivo e com repertório que pegava o melhor já feito até então, foi lançado no comecinho de 1999 e ganhou o disco de ouro (100 mil).

Onipresentes em quase todos os programas musicais da TV (inclusive os mais famosos, como os de Faustão, Xuxa, Gugu, Hebe e Eliana), os dois amigos do complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, voltariam a experimentar o gostinho de mais um hit nacional, “Fico Assim Sem Você”, composta pelo funkeiro pioneiro Abdullah. A letra citava duplas e dobradinhas impensáveis se rompidas (futebol sem bola, Piu-Piu sem Frajola, circo sem palhaço, beijo sem amasso, Romeu sem Julieta, queijo sem goiabada) para falar sobre solidão e incompletude. Contudo, como uma espécie de premonição (tão involuntária quanto sorrateiramente certeza), havia aqui também um verso como “Buchecha sem Claudinho”. A faixa foi incluída no sexto álbum Vamos Dançar, lançado no primeiro dia de abril e 2002. Pouco mais de três meses depois, ao retornar de uma apresentação na cidade paulista de Lorena, situada no Vale do Paraíba, próxima do sul do estado do Rio de Janeiro, veio a tragédia: o carro de propriedade de Claudinho saiu da estrada naquela madrugada chuvosa de 13 de julho e chocou-se violentamente contra uma árvore. O cantor, que dormia no banco do carona, morreu na hora com o impacto do acidente. A van em que estavam Buchecha e o resto da equipe dos artistas, viajava logo atrás. Encerrava-se desta maneira a trajetória de glória, fama e conquistas de uma das duplas mais queridas da música brasileira dos anos 1990.

Nosso Sonho – A História de Claudinho & Buchecha (Brasil, 2023 – Manequim Filmes) chega nesta semana aos cinemas justamente para contar esta trajetória. Da sólida amizade de infância ao instante fatal, passando pelo sonho adolescente de vencer na vida (fosse como artistas ou, no caso de Buchecha, trabalhando com carteira assinada como office boy) e superar traumas pessoais ligados a problemas de violência familiar e a tênue proximidade com o crime. De um lado o garoto expansivo e descontraído, que se joga nas atividades e inventa soluções criativas para fazer as coisas darem certo (como na já famosa cena do orelhão público servindo como telefone da “firma de agenciamento artístico”). Do outro, um guri mais tímido e racional, mas não menos talentoso e habilidoso com as palavras (a ponto de procurar e achar no dicionário termos nada usuais como abjudicar, só para usar em suas letras). Assim, a vida de Claudio Rodrigues de Mattos e Claucirlei Jovêncio de Sousa é contada em quase duas horas de maneira leve, descontraída e tão certeira quanto as canções gravadas por eles.

A química entre os dois protagonistas é tão impressionantes quanto a dos biografados. Poucas vezes, inclusive, foi visto no cinema nacional uma interpretação tão visceral quanto a de Lucas Penteado na pele de Claudinho. O jeito despachado e de eterno moleque, a língua presa, o sonhar que se permite voar alto e ir atrás para cavar as oportunidades e consegui-las. Mesmo não sendo o foco maior na narrativa, acaba por hipnotizar qualquer espectador. Já o contido Buchecha de Juan Paiva também cativa e conquista um lugar especial para quem assiste ao filme. Dividido entre o temor pela instabilidade da vida de artista e o grande respeito às responsabilidades e obrigações carregados junto com o status social de sua profissão (inclusive na hora de compor versos de pura genialidade como “controlo o calendário sem utilizar as mãos”), o jovem também narra várias cenas e tem sua vida pessoal mais esmiuçada no roteiro. Suas dificuldades são transpassadas na tela diretamente ao coração de todos nós, principalmente na turbulenta relação com o pai, que junta na mesma equação amor, perdão, abusos e sofrimento. Curiosidade: os dois atores trabalharam juntos em Viva a Diferença, a mesma (cultuada e bem-sucedida) temporada de Malhação que revelou a forte união em cena das cinco atrizes que depois viriam a fazer a série As 5ive.

O time de coadjuvantes também brilha. Tal como Lucas, Nando Cunha cresce nas cenas intensas em que faz o Buchechão, muitas delas também envolvendo a paixão pela música. Antonio Pitanga (Seu Américo, o dono do bar frequentado pelo pai de Claucirlei); Tatiana Tiburcio (a mãe, Dona Etelma, que sempre quer imprimir ao adolescente Buchecha uma vida correta e digna); Lellê e Clara Moneke (as namoradas/esposas dos astros, em pequenas grandes pontas); Marcio Vito e Isabela Garcia (Seu Toco e Dona Judite, respetivamente o patrão e a chefe do jovem office boy) abrilhantam o elenco com atuações fidedignas. Se o roteiro não sai muito do trivial, o diretor Eduardo Albergaria aproveita diálogos, interpretações e pequenos trechos musicais (cantados pelos próprios Lucas e Juan, diga-se) para fazer seu filme voar junto com a dupla de funk melody.

Acompanhar todo o corre vivido por Claudinho & Buchecha faz a gente traçar paralelos com a perseverança, a luta, o sonho e o sofrimento de outros artistas que vieram do underground da música brasileira, lendas como Cartola e Lupicínio Rodrigues ou gente contemporânea como Negro Leo e Lê Almeida. O longa sobre a inocência e a descoberta de um novo mundo para quem veio de uma das muitas comunidades regionais sem a assistência do poder público é um dos mais belos e emocionantes enredos cinematográficos nacionais deste ano.

Movies

Asteroid City

Nova experiência estilística de Wes Anderson abusa da metalinguagem para fundir cinema e teatro com a ajuda de elenco estelar

Texto por Leonardo Andreiko

Fotos: Fox/Divulgação

O cinema de Wes Anderson, exemplo primoroso quando se deseja falar de “estilo”, é conhecido por esconder sob composições pasteis de simetria deslumbrante os conflitos mais fundamentais da experiência de uma vida. O coming of age em Moonrise Kingdom, a perda em Viagem a Darjeeling, para citar alguns. Asteroid City (EUA, 2023 – Fox), é claro, não poderia ser diferente.

Em seu mais recente lançamento, Wes usa sua abordagem lírica para mesclar o conflito existencial ao comentário sobre a própria natureza da arte, na mesma toada de A Crônica Francesa (2021). Se lá o autor se divertia com o ensaísmo e a literatura crítica dos anos 1960 e 1970, aqui seu pano de fundo é o teatro e, assim, permite uma viagem metalinguística que destaca Asteroid de sua filmografia, pelo menos em intento.

No filme, cinco adolescentes geniais e suas famílias vão a Asteroid City, uma minúscula cidade no deserto estadunidense em que só se encontram um complexo de pesquisa militar, um posto de gasolina e testes de bombas atômicas no horizonte. Aqui, uma camada de ficção dentro da ficção: assistimos a Scarlett Johansson, Jason Schwartzmann e um elenco estrelado interpretarem tanto as personagens da peça quanto os atores que os interpretam. Adrien Brody, Edward Norton e Bryan Cranston, por outro lado, só aparecem do lado de fora da peça, em que o verniz preto e branco retrata o próprio processo de produção.

Como mais um dos estrelados projetos de Wes Anderson, a lista de personagens é longa. Atores consagrados e em ascensão dividem a tela na composição de personalidades excêntricas e memoráveis. O foco do diretor, é bem verdade, reside nos conflitos existenciais de Augie (Schwartzmann), fotógrafo de guerra, e Midge (Johansson), atriz de cinema, ambos enlutados permanentemente.

O traço particular de Asteroid City é o conforto com que seu autor se permite esticar a matéria da ficção narrativa. Wes Anderson já está acostumado a desafiar a abordagem realista da sétima arte por meio de sua estética ordenada, mas se dispõe a rasgar estes limites ao escancarar o estatuto da peça de ficção (seja teatro, cinema ou qualquer outra) como ela mesma – criação pura. Desse modo, tudo que há de simbólico na instância teatral da narrativa transborda à instância metanarrativa – isto é, a produção da peça. As mazelas e conflitos de Augie Steenbeck são também as de seu ator e cenas da peça são omitidas do longa-metragem para dar vez a conflitos da produção. Um se torna o outro e vice-versa.

Se a peça revela a sinceridade do roteiro de Anderson, cuja marca como autor é a declamação das condições mais profundamente humanas que transparecem na linguagem apesar – ou melhor, por meio – do lirismo, a metalinguagem mais óbvia e orgulhosa de si a faz resplandecer. Asteroid City, imitando a estrutura formal do teatro, é divido em atos bem definidos, com pausas e intermissões. A partir do segundo, dentro e fora da peça se misturam. Narrador confunde sua deixa, as personagens exibem profundo conhecimento de seus conflitos internos ou de sua falta de resolução. E como tudo vaza, os subtextos e simbolismos de Asteroid City se completam em suas duas instâncias narrativas. A leve e jovial peça sobre o sentido da vida se torna o retrato de uma vida inteira em busca de respostas que jamais serão dadas. Em uma das sequências mais aterradoras e ao mesmo tempo esperançosas de sua filmografia, Wes Anderson faz o diretor da peça dar um conselho-chave a seu protagonista, inseguro sobre estar atuando da maneira correta:

– (JASON SCHWARTZMANN) Eu ainda não entendo a peça.

– (ADRIEN BRODY) Não importa. Só continue contando a história.

É verdade que Asteroid City apresenta algumas dificuldades de ritmo e demora a engrenar na aventura e nas experimentações metalinguísticas que são seu ponto alto. Contudo, resistir ao início lento pode trazer ao espectador uma obra que permanecerá em sua cabeça para muito além do letreiro de fim.

festival, Music

Coolritiba 2023 – ao vivo

Gilberto Gil, Marisa Monte, Mano Brown, Alceu Valença, Fresno, Liniker e outros bons shows

Gilberto Gil

Texto por Leonardo Andreiko e Luca Passos (com colaboração de Otto Browne)

Fotos: Coolritiba/Divulgação

No último dia 20 de maio, em pleno outono curitibano, 23 atrações musicais dividiram quatro palcos distribuídos entre a Pedreira Paulo Leminski e a Ópera de Arame em mais uma edição do festival Coolritiba, que agitou no frio e no calor de um sábado com mais de 12 horas de música. Foram 12 shows principais nos palcos-irmãos da Pedreira, além da música eletrônica ocupando o palco da Ópera e o caminho entre eles.

Com a missão de abrir o dia no Palco A, Tuyo mostrou a que veio com as nuances eletrônicas de seu pop alternativo ancorado nas belíssimas e potentes vozes das irmãs Lio e Lay Soares – Jean Machado completa o trio com a produção eletrônica e as modulações de guitarra e baixo. As baladas melancólicas da banda curitibana arrepiaram quem chegou cedo para curtir o festival e incumbiram a próxima atração, Agnes Nunes, com a difícil missão de manter os ânimos. E assim ela o fez.

Baiana de apenas 21 anos e uma multidão de seguidores nas redes sociais, Agnes trouxe para o meio-dia de Curitiba seu som fortemente influenciado pelo r&b norte-americano, mas com pegada inequivocamente brasileira. Acompanhada por um pianista e um baixista/guitarrista no Palco B, encantou com sua voz, pôs o público para cantar e deu espaço para os instrumentais românticos de sua ainda incipiente discografia.

Liniker

Em seguida, Liniker trouxe seu álbum Indigo Borboleta Anil para os palcos junto de músicos estelares, com quem dividiu o protagonismo a todo momento. Do início ao fim de sua apresentação, mandou hits consagrados no meio indie brasileiro e novas apostas musicais, que a colocam em evidência como uma das maiores artistas em ascensão do país. Com “Intimidade”, “Baby 95” e outras canções, a artista foi mais uma das atrações que preencheu a Pedreira com presença vocal surpreendente. Ela embalou toda a plateia, agora já encorpada, com uma banda que nada deve às melhores do funk e do r&b mundial, sem deixar de incorporar brasilidade e samba para a equação. Bateria, percussão e baixo montaram uma cozinha espetacular, que dividiu o palco com teclados, guitarra e um naipe de sopros digno das big bands. Liniker provou que a veremos, mais cedo do que imaginávamos, protagonizar festivais como headliner.

Depois de uma das mais promissoras novas vozes da música brasileira foi a vez de um de nossos maiores patrimônios tomar o microfone. Encaixado em um horário que não faz jus a sua história, Alceu Valença subiu ao Palco B da Pedreira às 14h30 para levar a um público majoritariamente jovem sua sonoridade profundamente brasileira. Ainda que as interações com a plateia não estivessem com tamanha energia, o bom humor e a irreverência do pernambucano colocaram Curitiba para dançar e cantar “Tropicana”, “La Belle de Jour”, “Anunciação” e “Táxi Lunar”. Sua apresentação, ladeada por novas promessas e tendências fonográficas, foi um instigante ponto de toque para se refletir acerca das distâncias e proximidades entre o passado, o presente e o futuro da MPB.

Fresno

O Fresno, que sucedeu Alceu, ocupa um espaço particular nessa conjuntura temporal. Apresentando uma versão reduzida de sua turnê mais recente, que acompanha o álbum Vou Ter Que Me Virar, os gaúcho-paulistas teceram um set list que conjuga os sucessos emo da primeira metade de seus 24 anos de carreira com a refinada estética construída nos últimos projetos, que agregam elementos do synth pop e demais vertentes eletrônicas a uma gutural e crua herança do hardcore.

O show do grupo ostentou, junto à posterior presença agigantada de Mano Brown, o tom mais político desse festival. Entre os fortes riffs de “FUDEU!!!”, o vocalista Lucas Silveira comemorou a cassação do ex-deputado federal da Lava-Jato com um grito de “Deltan, tu se f*deu!”. Ainda, os versos “E o prеsidente, basicamente/ Quer te exterminar” foram acompanhados da projeção “ex-presidente” no telão, que complementa e cria a atmosfera de toda a apresentação da banda. Em “Eles Odeiam Gente Como Nós”, projetavam-se as silhuetas da pífia demonstração de força do Exército Brasileiro durante o desgoverno militarista de Bolsonaro.

Em seguida, o Lagum, banda de pop rock com uma influência de reggae que acaba de lançar o quarto disco, Depois do Fim, entregou-se nas interpretações de suas músicas, cativando o público forte interação. Além de prometer voltar para outro show na cidade até o fim do ano, os mineiros brindaram os fãs mais assíduos com uma palhinha de uma música vindoura.

Agnes Nunes

Embora o baiano Teto e o cearense Matuê sejam parceiros de muitas composições e constassem juntos na programação (como parte de sua turnê em conjunto), eles não dividiram o palco em nenhum momento. No entanto, ambas as aparições animaram o público com suas potentes presenças de palco e sucessos mais recentes (do primeiro, “Flow Spacial”; do outro, “Conexões da Máfia”), além de seus maiores hits. Fizeram a alegria dos fãs que compareceram em peso no festival.

Se o trap de Matuê o faz um dos artistas em maior evidência do país, o palco de seu show catapulta a experiência àquela dos grandes performers mundiais, com luzes e um telão que ostenta animações psicodélicas que expandem a toada estética iniciada no álbum Máquina do Tempo, de 2020. A última música do set, “777-666”, seu píncaro artístico, entregou a exata atmosfera do artista: os dois acompanhantes, guitarrista e tecladista (que, inclusive, surpreendeu com um solo que parecia saído dos álbuns contemporâneos de jazz), juntaram-se num palco “em chamas”, efetuando solos com seus instrumentos já quase inaudíveis pela batida da música. Deliberadamente tosco, um jeito perfeito de terminar.

Em seguida, L7nnon deu sequência coerente aos artistas anteriores. Um dos nomes mais evidentes do rap nacional, suas músicas, já conhecidas por boa parte do público, cativaram a juventude que o esperava – a despeito de uma possível qualidade da interpretação, que não passou do mais básico. Dificilmente alguém que não o conhecia – justamente uma das qualidades do formato do festival, o contato com o choque entre gêneros e carreiras – foi atraído pelas canções, com a notável exceção de “Ai Preto”, não à toa seu maior sucesso.

Mano Brown

Um dos destaques do festival neste ano foi o veterano Mano Brown, que nos brindou com o que pode ser considerado um concerto duplo. Os primeiros 20 minutos foram dedicados a canções de seu álbum solo lançado em 2016, Boogie Naipe. As composições, executadas com o cantor Lino Kriss, deram boas-vindas calorosas ao som do boogie e do r&b. No telão, uma miscelânea de capas de álbuns clássicos dos gêneros que inspiraram o álbum: um convite a explorar a história musical que claramente encanta Brown desde os primórdios. Curitiba dançou “dois pra cá, um pra lá” contagiada com os ritmos dançantes de músicas como “Gangsta Boogie” e “Mal de Amor”.

Na segunda parte do espetáculo, a plateia foi presenteada com hinos do clássico álbum de 2002 dos Racionais MCs, Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, interpretadas no sentido mais puro da palavra: o palco, decorado de forma quase minimalista, foi usado à exaustão para dar forma aos versos. Com as gigantescas presenças de Ice Blue e KL Jay, músicas que já integram o substrato mais profundo da cultura brasileira foram entregues com suas forças sempre vivas: “Vida Loka (Parte I)”, “Eu Sou 157” e “Jesus Chorou” foram algumas pedradas que rolaram em som na noite. Aliás, é necessário um contraste entre a apresentação de Brown, de 53 anos, com os rappers da nova geração: o único que levou dançarinos e intérpretes de libras, Mano, em certo momento, brincou com o fato de ainda estar antenado, mas de um modo meio duvidoso. Talvez seja justamente por esse anacronismo que ainda se pode falar de arte, que os corpos ainda se movimentam no espaço e que as palavras sobrevivem.

Sandy

Dez minutos depois, Sandy entrou no palco ao lado, numa produção grandiosa em seu trabalho de luzes e da própria sonoridade. A cantora, que parece ser incapaz de sair da afinação, evidentemente não parecia afinada à programação: apertada entre Mano Brown e Gilberto Gil, sua presença foi um pouco anódina. Foi um show voltado a fãs da cantora, que interagiram bastante com o público e cantaram seus grandes sucessos, como “Aquela dos 30” e “Me Espera”, em parceria com Tiago Iorc. Ainda assim, a música que mais fez vibrar os curitibanos foi um dos sucessos dela com o irmão, Júnior: “A Lenda”, num soturno exemplo que pode resumir a carreira da cantora.

Em seguida, um dos protagonistas da noite: Gilberto Gil, 80 anos e com sua banda, ofereceu um dos mais destacados espetáculos do Coolritiba, com uma sequência de músicas de seu repertório próximas da sonoridade do forró entrecortadas por interlúdios  quase industriais. Ninguém ficou parado ou calado na plateia: de crianças a senhoras, todos cantavam a plenos pulmões (ok, havia alguns mais comedidos, aqueles cuja vergonha ataca mesmo nessas ocasiões) músicas como “Eu Só Quero Um Xodó”, “Toda Menina Baiana” e “Esotérico”. A movimentação, preenchida pela harmonia com as notas, não foi exclusiva da plateia, já que em cima do palco toda a banda parecia estar em enorme entrosamento, rendendo sobretudo bons solos de guitarra e sanfona, esta nas mãos do ilustre Mestrinho. Vale o destaque à filha mais velha de Gil, Nara Gil, que acompanhou o acordeonista nos vocais.

Alceu Valença

Uma das coisas que mais indicam a qualidade de um show é a interação entre o público e o artista – tanto entre as músicas quanto durante elas. Gil falou de tudo um pouco sobre a capital paranaense: citou os times de futebol, o quentão e o frio. Essa proximidade com a cidade rendeu uma das partes mais bonitas do espetáculo: a homenagem para a filha mais nova de Paulo Leminski e Alice Ruiz, “Estrela”. O concerto de Gil, portanto, foi à altura de seu nome gigantesco, uma pequena janela de paraíso musical.

Para fechar a noite, Marisa Monte vestiu-se de deusa e trouxe a Curitiba um espetáculo não apenas musical como também visual. Seu telão com projeções em 3D criaram uma espacialidade magnânima onde a voz de Marisa pudesse ecoar, acompanhada de uma banda de dar inveja a qualquer artista nacional. Conduzindo os sopros, o trompetista Antônio Neves, que ostenta um dos melhores lançamentos brasileiros do jazz contemporâneo, levou a especial textura que torna sucessos como “Ainda Bem” tão especiais na discografia de Marisa.

A cantora também presenteou as plateias com hits da carreira, como “Vilarejo”, “Beija Eu” e “Velha Infância”. O show ainda contou com a presença do percussionista Pretinho da Serrinha, que dividiu o palco com a estrela para apresentar a colaboração dos dois, em homenagem à Portela, chamada “Elegante Amanhecer”.

Marisa Monte

Assim se encerrou mais uma edição do Coolritiba, que faz aterrissar no Paraná a megaestrutura dos grandes festivais, mas também traz consigo seus problemas. É impossível ignorar as reclamações com os preços abusivos e a falta de transparência em relação à promessa de água e ônibus gratuitos, assim como é impossível ignorar a qualidade do aparelho cultural disposto à cidade, ainda que com a mácula da inacessibilidade.

Movies

Muribeca

Documentário registra a luta dos moradores um conjunto habitacional contra a condenação ao descaso e a demolição de suas memórias de vida

Texto por Frederico Di Lullo

Foto: Descoloniza Filmes/Divulgação

Já nos primeiros minutos de Muribeca (Brasil, 2023 – Descoloniza Filmes), documentário dirigido por Alcione Ferreira e Camilo Soares, entendemos a intensidade e o descaso com a população mais vulnerável. Seja pela citação ao poeta norte-americano T.S. Eliot (“Com tais fragmentos foi que escorei minhas ruínas”) ou pelas filmagens carnavalescas no final dos anos 1990 (que apresenta a felicidade do bloco de moradores), o filme se desenvolve em ritmo acima de tudo melancólico.

E ele carrega afeto, memórias e tristeza. Tudo isso contado pelos moradores da “cidade fantasma” do complexo habitacional Muribeca, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana de Recife. Com depoimentos dados por vários moradores do complexo, Muribeca permeia seu roteiro apresentando a histórias dos mesmos, intercalando com filmagens antigas que mostram o total declínio do local, propiciado pelo descaso público. 

O Conjunto Habitacional Muribeca foi construído em 1982 e contava com 69 blocos de apartamentos, totalizando 2240 unidades. No ano de 1995 foram verificados os primeiros problemas estruturais de diversos blocos e a deterioração foi rápida. Depois anos de disputas jurídicas, a Caixa Econômica Federal foi condenada em última instância a reconstruir os imóveis no mesmo local. Mas isto nunca aconteceu. Em 2019, a 5ª Vara de Justiça Federal autorizou a demolição completa do conjunto e o despejo de todos moradores que ainda moravam no local. Até hoje as organizações de moradores e de comerciantes locais continuam lutando para que a comunidade não desapareça para sempre. 

Entre os moradores que dão depoimentos estão o poeta Miró e o quadrinista Flavão, que também trabalhou como produtor local do documentário. Quando começaram o projeto, os diretores também assistiram a algumas audiências que a comunidade teve com o Ministério Público e conheceram outras personagens que estavam ali, lutando e tentando viver em meio a tanta confusão e insegurança jurídica – além das próprias pessoas que se aproximaram espontaneamente deles interessadas em participar do filme. As entrevistas foram feitas em 2018, e os diretores filmaram a comunidade algumas outras vezes – inclusive logo após o resultado da ordem judicial que autorizou a demolição de todos os blocos do conjunto habitacional.

Por tudo isso, assistir a Muribeca é imprescindível. Necessário se faz para não apenas manter ainda viva as memórias das pessoas que ali instalaram a sua vida. Mas também para sentir na alma aquilo que elas sentem: a dor e a agonia que rapidamente substituíram toda a felicidade do local.