Movies

The Eyes Of Tammy Faye

Jessica Chastain brilha como a pioneira do televangelismo americano que ia muito além do moralismo habitual do gênero

Texto por Taís Zago

Foto: Star+Searchlight/Divulgação

Tammy Faye e Jim Bakker são o casal mais famoso do televangelismo americano. Nos anos 1970 e 1980, eles praticamente “inventaram” a “TV da fé” nos moldes que conhecemos hoje também no Brasil. Ao mesmo tempo, os dois foram protagonistas de um dos maiores escândalos de fraude e desvio de dinheiro do canal PTL – Praise The Lord, a rede televisiva que criaram. Contavam nessa jornada com o apoio de outros agentes religiosos da época, como o pastor homofóbico e misógino Jerry Falwell, que ficou famoso ao travar uma guerra contra os Teletubbies por considerar os personagens infantis uma “propaganda homossexual”. Semelhanças com Malafaia et caterva não são mera coincidência. Os pastores brasileiros se inspiraram no modelo dos cristãos evangélicos norte-americanos ao montar seu império (dourado) da fé por essas bandas.

Jim e Tammy se conheceram quando eram estudantes no Bible College de Minneapolis, Minnesota. E a atração foi imediata. Tammy viu em Jim a personificação do pastor evangelista moderno – aquele que, ao invés de defender as sandálias da humildade, não condenava o enriquecimento e o amor ao dinheiro. Jim sabia pregar, tinha desenvoltura e um arsenal prontinho de platitudes para converter e atrair cristãos para seus sermões. Tammy, por sua vez, era, à primeira vista, a própria imagem da religiosa näif – ingênua, wide eyed, devota e idealista. Com voz de Betty Boop e uma presença sensual, mesmerizava os fiéis com cabelos e figurinos extravagantes e com cílios imensos, que viraram sua marca registrada. Mais tarde ela viraria chacota em sketches de programas de humor de TV como o Saturday Night Live por causa da maquiagem exagerada e permanente. Tammy era 100% entretenimento, fazia entrevistas, shows de bonecos e encantava fiéis com suas performances exageradas de hinos religiosos. 

Enquanto Bakker se limitava a seguir a austera cartilha de pregações morais, aquela que conhecemos bem – família, costumes, pecados e punições e propaganda republicana – ditada pelos pastores, todos homens, que o cercavam, Tammy rompeu muitas regras e arrepiou os cabelos dos devotos mais conservadores ao defender direitos LGBT, discutir a aids nos anos 1980 e defender o amor ao próximo acima das regras religiosas. Por essa sua atuação quase ativista e, claro, também pela sua opulenta aparência, Ela foi festejada como a primeira drag queen, servindo de inspiração para muitos outros artistas.

The Eyes Of Tammy Faye (EUA, 2021 – Star+/Searchlight) é baseado no documentário do mesmo nome, de 2000, narrado em parte por RuPaul. O diretor de obras de dramedy Michael Showalter tomou para si a tarefa de transformar Jessica Chastain em Tammy e Andrew Garfield em Jim. Contudo, os louros aqui vão diretamente para os atores. Garfield incorpora Jim como uma figura fraca, infantilizada, dependente, narcisista, gananciosa, insegura e em claro conflito com sua sexualidade, algo que não é confirmado mas insinuado em várias cenas do filme. Já Chastain personifica em Tammy um leque muito maior de características conflitantes. Por um lado vemos uma protagonista que possui fé genuína, empolga todos ao seu redor, está sempre feliz e sempre otimista e é aparentemente alheia a todas as malandragens feitas com o dinheiro dos fiéis. Por outro, vemos uma figura viciada em comprimidos, infeliz e insatisfeita em seu casamento, que não economiza um tostão em suas indulgências materiais e que faz vista grossa para toda a sujeira ao seu redor. Os olhos de Tammy são seletivos e Jim, junto com seus associados, contam com isso para suas falcatruas. O filme recebeu duras criticas por ficar apenas na superfície das relações, por enfatizar o glamour e esconder fatos desconcertantes do casal, como todo o processo da acusação de estupro contra Jim, que junto ao escândalo das fraudes o colocaram na cadeia.

O que temos aqui uma história clássica de ascensão e queda sem que haja uma verdadeira redenção no final, e que, em alguns momentos, parece muito enamorada de Tammy e sua aparência física. Jessica Chastain, favorita ao Oscar de melhor atriz pelo papel, levou-o para casa. O filme também concorreu ao Oscar de melhor cabelo e maquiagem – e venceu. É inegável o delicioso e colorido pulo entre as décadas de 1960-1980 na produção das músicas, figurinos e fotografia. Todos são fantásticos.

A forma como Jessica transita na personagem entre os opostos, indo da completa euforia até o abismo e a paralisia da depressão é, sem dúvida, sensacional. Tammy coloca um sorriso no rosto, ajeita a maquiagem, abre uma lata de coca-cola light, respira fundo e é cordial até mesmo com quem a ataca. Ela sobe ao palco sempre como se fosse a sua última vez e se entrega de corpo e alma ao que considerava ser sua vocação divina. E nós, aqui, do outro lado da tela, quase nos convertemos.

Movies

Flee

Documentário produzido em animação conta a tocante história de medos, fugas e segredos de um refugiado afegão

Texto por Marden Machado (Cinemarden)

Foto: Google Play/Divulgação

A produção do documentário em animação dinamarquês Flee (Flugt, Dinamarca/França/Noruega/Suécia/Holanda/Reino Unido/EUA/Finlândia/Itália/Espanha/Estônia/Eslovênia 2021 – Google Play) com a participação de outros países: Suécia, Noruega, França, Estados Unidos, Espanha, Inglaterra e Itália. Dirigido por Jonas Poher Rasmussen, acompanhamos aqui a história real de Amin Nawabi, que fugiu, ainda criança, do Afeganistão. Agora, na casa dos 30 anos, ele finalmente revela ao diretor do filme sua tocante história carregada de medos, fugas e segredos. Entre eles o de sua orientação sexual. Sua trajetória de vida é das mais sofridas e hoje adulto, vivendo na Dinamarca, ele é respeitado em seu trabalho como acadêmico e planeja construir um lar com seu companheiro. Mas antes terá que acertar as contas com um passado de dolorosas perdas.

Flee (titulo que, em português, pode ser traduzido como Fuga) é uma animação que insere imagens reais em determinados momentos. Mas o impacto de sua história é tão forte, que esquecemos estar diante de uma animação. E não se trata de rotoscopia, como pode parecer. Os desenhos foram feitos a partir das imagens gravadas da entrevista de Rasmussen com Nawabi.

Em tempo: Flee conquistou algo inédito ao ser indicado na disputa do Oscar 2022 nas categorias de melhor filme internacional, documentário de longa-metragem e animação.

Movies, teatro

A Tragédia de Macbeth

Joel Coen filma clássica peça de Shakespeare e volta a suscitar o debate sobre a diferenciação entre palcos e telas

Texto por Luca Passos

Foto: Apple TV+/Divulgação

Mais uma adaptação do teatro ao cinema, mais uma abertura para voltar à discussão que exercita mãos e bocas de estudiosos das duas artes há tempos: a diferenciação essencial dos palcos e das telas. O rótulo pejorativo “teatro filmado” seguiu por muito tempo, dentro da crítica de cinema, aqueles filmes que não se propunham a ser mais do que uma captação da imagem dos atores e das atrizes e a gravação de suas falas. Ao contrário, o filme real deve, idealmente, tratar o material-fonte escrito – seja uma peça ou um roteiro – de modo a se utilizar do específico do cinema enquanto arte, assim não apenas justificando a escolha da mídia, mas também, pela própria consciência desse dever que o diretor traz, realçando a obra em todos os seus aspectos. Resta-nos, portanto, tentar desvendar se esta nova gravação de uma das mais famosas peças shakespearianas, A Tragédia de Macbeth (The Tragedy Of Macbeth, EUA, 2021 – Apple TV+), consegue tal feito, seja a conquista ao menos parcial. 

Como acontece com toda boa história, são necessárias poucas palavras para fazer um resumo: o enredo versa sobre a ascensão e queda do regicida Macbeth (Denzel Washington), apoiado em sua crescente loucura de ambição pela não menos ambiciosa Lady Macbeth (Frances McDormand). A trama é profetizada logo nos minutos iniciais do filme pelas famosas Bruxas (interpretadas corporal e espetacularmente por Kathryn Hunter) e também é sustentada por elas, que vêm e voltam durante todo o filme. A grande espiral de paranoia e arrependimento em que o casal principal cai durante todo o filme tem grande vazão visual: os delírios, sonoros ou visuais, são constantes. Essa descida é acompanhada por um vasto mosaico de personagens secundários e terciários que orbitam o centro de poder e lamentação dos Macbeth. No entanto, a vida na nobreza, com seus títulos, seus castelos e seu jogo político, não parece ser mais que um adorno da profunda exploração da natureza humana que permeia tanto a peça original quanto, mais por consequência do que por mérito, o filme.

Nesse sentido, o diretor (e também roteirista) Joel Coen, no primeiro esforço sem seu irmão Ethan, agora aposentado da cadeira de diretor cinematográfico, filma a história de aproximadamente 400 anos com um grande acento minimalista, elaborando cenários que oferecem apenas o essencial à mise en scène. O apelo dos filmes do diretor Carl Theodor Dreyer, fortemente influenciado pelo teatro, é crucial ao diretor, que faz como o dinamarquês ao sobrevalorizar a atuação, o rosto dos atores e das atrizes. A câmera de Coen não investiga as pessoas que filma, são essas mesmas pessoas que parecem investigar as palavras que saem de suas bocas, e nós apenas observamos esse espetáculo. É, de fato, espetacular acompanhar atores e atrizes do peso dos protagonistas interpretarem personagens que já passaram nos corpos de tantos outros. Mas um filme não pode ser só isso. Existe ainda o risco de se cair no teatro filmado.

O mais velho dos Coen sabe bem usar e movimentar sua câmera e uma composição cadenciada de luz e sombra, a repetição variada de certos elementos geométricos, o som abafado, o desfoque dramático. Mas para quê, exatamente? Em que espaço sua câmera se projeta? De onde vêm a luz e a sombra? No coração de quem elas guerreiam? Esse drama, essa tragédia toda reflete algo ou é apenas o trabalho desinteressado sobre um texto, este sim, profundo? Há, pelo que parece, uma grande fábrica subterrânea nos galpões da A24 (produtora do filme) onde se confecciona um verniz que é aplicado na maioria das obras por ela executadas, um produto que se passa sobre cada obra a ponto de fazê-la brilhar para os prêmios e festivais. Um plasma que encapsula tudo o que é de bom gosto. Não há como mentir: os planos do filme são agradáveis, vistosos, e serviriam, sim, como um bom papel de parede, uma fotografia no centro da sala, perfeita em si mesma como adereço. Porém, o cinema não é o teatro filmado de modo aprazível. O cinema é o que vaza.

É estranho que o texto de Macbeth caia como uma luva na filmografia de Coen – a história da ambição de um homem e sua posterior derrocada apenas transposta dos rincões estadunidenses para a Escócia feudal – e, mesmo assim, o diretor patina ao tentar dar uma significância cinematográfica às palavras do texto de Shakespeare. Tudo cai no vazio dos símbolos imagéticos que já nascem esgotados e teimam em se repetir durante todo o filme, como se Joel quisesse que víssemos neles a essência do texto de William Shakespeare. Se isso fosse verdade, Macbeth, enquanto obra, nunca teria chegado nestes tempos. No entanto, ele bem consegue fazer de todos esses cacoetes ancorados tão somente nas atuações dos personagens o centro de seu filme. Diferente do já citado Dreyer, que compreende os espaços como jogos cênicos, mesmo que sejam quase vazios, Coen realmente faz suas personagens e imagens ficarem presas a um nada.Tudo o que aparece no filme é um mundo que não existe sequer em si mesmo, e que, no entanto, não tem a menor força de atração: é frio e esquemático, algo que repele, mas que ao mesmo tempo temos que acompanhar, por ser a única coisa disponível.

Tudo fica, portanto, contido em si mesmo, nada vaza ou se sobressai de sua própria aparência num estado sentimental. As próprias atuações são, como já disse, atuações. Nunca nos vendem algo fulcral: a realidade. A filmagem vira também um teatro, passível de desacobertamento pelo público durante o próprio ato da projeção: pecado capital do cinema. Tal qual o personagem Macbeth, que às cegas tenta lutar contra seu destino já prenunciado pelas Bruxas, também o diretor parece se debater inutilmente, já desde o começo, contra uma obra que excede muito às suas capacidades enquanto realizador. 

Movies

Drive My Car

Concorrente japonês ao Oscar é um belo convite à contemplação de nós mesmos e a revisão de nossos traumas e experiências negativas

Texto por Tais Zago

Foto: O2 Play/MUBI/Divulgação

Duas horas e cinquenta e nove minutos. Praticamente três horas. Essa é a duração do novo filme do diretor japonês Ryusuke Hamaguchi (que também fez Roda do Destino, lançado no ano passado). Drive My Car (Doraibu Mai Kâ, Japão, 2021 – O2 Play/MUBI/Divulgação) é uma saga histórica, cheia de reviravoltas e personagens espetaculares? Não é. É um romance que se desenvolve ao longo de anos com laços duradouros entre várias famílias? Também não. O roteiro é bem simples e baseado em três contos de Haruki Murakami: um diretor recentemente viúvo é chamado para trabalhar por dois meses em uma produção multicultural da peça Tio Vânia, de Anton Tchecov, na casa do teatro local de Hiroshima. Para ir e voltar de suas acomodações, ele conta com uma motorista. 

Boa parte do filme se passa na sala de ensaios do teatro onde o elenco trabalha junto ao diretor e à produção, nos diálogos famosos do escritor e dramaturgo russo. Outra parte grande são as viagens, com uma hora de duração, que o diretor, Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), faz com sua jovem motorista, Misaki Watari (Tôko Miura), entre o teatro e a casinha idílica onde está hospedado. E em boa parte dessas viagens o pano de fundo são diálogos de Tio Vânia, gravados em uma fita cassete pela finada mulher de Kafuku, Oto (Reika Kirishima).

Com essa descrição crua, provavelmente, 80% da audiência fugiria do filme. Mas não. O público não só não fugiu como ficou sentadinho até o último minuto e a crítica cobriu a obra dos mais belos louros como o prêmio de melhor roteiro em Cannes em 2021. Agora, no Oscar de 2022, Drive My Car concorre em quatro categorias (filme, direção, roteiro adaptado e filme internacional). Eu imagino (até aposto) que vai levar pelo menos uma dessas para casa.

Hamaguchi faz parte daquela restrita lista de cineastas que conseguiram fazer mais de um filme por ano. Uma categoria de peso que inclui Steven Spielberg e Ridley Scott. No Japão, o diretor já possui uma rica carreira e suas produções são bem conhecidas e festejadas. Nessa outra metade do globo ainda estamos conhecendo seus trabalhos. E ele não decepciona. Seus filmes tratam de dores psicológicas, de perdas, de amor, de reencontros consigo mesmo. De luto.

Yusuke e Misaki estão tão distantes um do outro quanto duas pessoas poderiam estar. Ele, um dramaturgo e ator consagrado de 47 anos. Ela, uma menina de origem extremamente humilde, de 23 anos, cuja única habilidade é dirigir. Mesmo assim, o que une esses dois personagens é tão forte, tão visceral, tão comovente que somos embalados e suavemente conduzidos nessa viagem. Sentimos junto com eles os quilômetros rodados num inverno frio e escuro, de montanhas nevadas, de mar revolto. O filtro azul nos carrega do começo ao fim na fotografia que contrasta com a hospitalidade dos funcionários do teatro ou da leveza do elenco. Pessoas felizes, vivendo suas vidas, sem, aparentemente, grandes sofrimentos. Enquanto isso, Watari e Kafuku afogam seus sentimentos, os sufocam, os escondem no porta-malas do pequeno carro SAAB vermelho. A dureza e o silencio é a única coisa que permite que ambos não desmoronem, que não saiam da estrada em alta velocidade rumo ao abismo do desespero.

Em tempos de gratificação rápida e instantânea, às vezes, desaprendemos a importância de degustar os momentos solenes, a contemplação de nós mesmos. Por isso, Drive My Car é, acima de tudo, um convite a saborear a dor e os caminhos que as pessoas escolhem para trabalhar suas experiências negativas e seus traumas. E quem prestar bastante atenção vai ver que não são poucas as desilusões que preenchem esses 179 minutos, algumas refletidas nos textos de Tchecov, outras no compartilhamento de experiências. Como nas confissões que o jovem ator Kôji Takatsuki (Masaki Okada) faz a Kafuku ou a bela/triste história de Lee Yoon-a (Park Yu-Rim), a atriz coreana que interpreta Sonia na peça, usando a linguagem de sinais.

Drive My Car não é um filme leve, mas tem um final feliz. Ou pelo menos ele pode ser interpretado assim, pois deixa um pouco aberto o que ocorreu com seus personagens. E é exatamente isso que faz o destino dessa viagem ser ainda mais interessante.